O acaso desenhador de sentidos

"A literatura, no meu caso, tem a ver com identidade — ser quem eu sou."
Maria Cecília Gomes dos Reis por Ramon Muniz
01/06/2012

Nas duas obras de ficção de Maria Cecília Gomes dos Reis, a experimentação com a linguagem, na forma de diversas vozes, referências e estilos que se misturam para compor as narrativas, salta aos olhos do leitor. Contudo, o trabalho intelectual de busca pelo aspecto formal da obra só se completa em O mundo segundo Laura Ni (2008) e no recém-lançado A vida obscena de Anton Blau a partir de uma “colheita livre” pessoal, com base na identidade da autora, e universal. Nascida em São Paulo em 1956, Maria Cecília é professora na UFABC, com doutorado em Filosofia pela USP e graduação em Artes Plásticas pela FAAP, e tradutora, tendo vertido do grego o tratado de Aristóteles, De Anima, trabalho que recebeu menção honrosa no Prêmio União Latina de Tradução Especializada. Desta formação interdisciplinar sua escrita se serve com liberdade para realizar o diálogo que a literatura é capaz de travar com o leitor, e que parece estar além de estruturas narrativas ou enredos. Na entrevista abaixo, concedida por e-mail, Maria Cecília Gomes dos Reis fala sobre sua incursão na literatura, seu processo de criação e a busca por tornar-se dona da própria voz, entre outros assuntos.

A vida obscena de Anton Blau é composto por fragmentos de narrativas superpostos, separados em espécies de capítulos que podem parecer desconexos (na forma, tempo e espaço) mas contam, juntos, a história de Anton Blau. Como foi a construção deste romance? A articulação entre as diversas camadas narrativas foi seu maior desafio?
Penso que uma maneira fácil de entender a estrutura da novela é imaginar o seguinte: o tempo pode ser concebido na vertical. Estamos acostumados a pensá-lo como um eixo horizontal, avançando em uma única direção — o passado que ficou para trás, o futuro que vem pela frente —, tudo tendo um status igualmente abstrato, em sucessão e com nexos de causalidade. Por outro lado, cada um de nós — se é alguém como eu — experimenta a absoluta hegemonia do presente — algo imenso que abarca tudo. Em A vida obscena de Anton Blau me concentrei nesta idéia — tratar o tempo como uma pilha de eventos, acontecimentos, instantes. A vida de cada um de nós é uma espécie de empilhamento sempre coroado por um agora. E por isso estabeleci algumas condições para o trabalho: primeiro, empregar sempre o presente e explorar os aspectos modais dos verbos, explorando um viés verticalizado para a temporalidade. Além disso, como a vida de uma pessoa se sustenta em bases que estão para além daquilo que ela própria viveu. A pilha da vida de alguém inclui então bem mais do que os momentos do período em que ela efetivamente existiu; já que ser de certa religião, por exemplo, é ter em suas bases uma camada que envolve tremendas questões numa ou em outra direção, com este ou com aquele impacto. Isso comparece neste agora de maneira meramente incidental, embora em outra atualidade tenha tido uma emergência bem diversa. Ou mesmo a consciência moderna de liberdade da escolha — é um traço que traz sob si uma verdadeira etapa da humanidade. Tudo isso são camadas possíveis que fundamentam a vida de alguém.

A senhora parece ter uma grande preocupação com a forma e a experimentação — o que exigiria mais cálculo e planejamento e menos acaso. O quão próximo chegou de suas intenções iniciais em Anton Blau? Onde entra a intuição na sua literatura? Há espaço para surpresas?
Depois que a idéia está clara para mim — o tratamento vertical do tempo, por exemplo — e que o tema está definido — no caso de A vida obscena de Anton Blau, o assunto central é desperdício de talento, numa espécie de paródia a Alcibíades —, aposento então completamente as balizas intelectuais e me coloco à disposição de uma colheita livre, por assim dizer. O processo de escrita a partir de um plano de certo modo intelectual se dá, para mim, em plena autonomia da imaginação: é um jogo livre entre a memória, a observação atual — e auto-observação principalmente —, que envolve uma concentração extrema naquilo que costuma não ser percebido e pode incentivar alguma pesquisa adicional. Mas é sobretudo uma forma de entrega à sincronia, quer dizer, ao acaso desenhador de sentidos, à construção de uma coerência de dentro para fora, que vai plasmando as coisas imaginadas, muito mais que uma estrita obediência ao comando intelectual. A alegria é ser surpreendida por algo que é e não é aquilo que estava planejado. Ou melhor, algo que atende exatamente às condições impostas, mas de um modo único e inesperado.

O que é uma vida obscena?
Se consultar um dicionário, “obsceno” é literalmente algo de mau augúrio; mas na linguagem corrente, se diz daquilo que tem aspecto frio ou horroroso, que se deve evitar ou esconder — donde ser algo que gera pudor ou sentimento de vergonha. Digamos simplesmente que, na proposta descrita, “obscena” é a vida escondida sob o agora — e que tudo o mais são apenas tons do que está por debaixo do presente.

Aulas de filosofia e dilemas do cristianismo compõem algumas das várias faixas narrativas de Anton Blau, construído a partir de diversas histórias, tempos e lugares. O livro se coloca sempre mais próximo da alusão, com uma prosa que forma imagens densas, muitas vezes se contradiz e é composta por intertexto e múltiplos registros. Preocupou-lhe em algum momento o risco de cair na recorrência de citações e idéias ou ainda na experimentação do vazio, na pura e mera forma?
A narrativa, no meu caso, se alimenta em duas fontes não-literárias: por um lado, os andaimes gráficos dos (digamos assim) rascunhos, e, por outro, os temas surgidos na filosofia. A origem disso está no perfil interdisciplinar: venho de um curso secundário em desenho técnico muito importante na minha formação — o colégio IADÊ [Instituto de Arte e Decoração] —, de onde fui para a filosofia e artes plásticas, e não para a arquitetura como pretendia. Vem daí o meu apego à caligrafia, aos cadernos e papéis nos quais vou registrando as idéias e os estudos que elas envolvem, uma espécie de amor pelas cores como formas de qualificar os conceitos, criando a partir delas vozes com registros próprios — o magenta expressando a crítica e o super-ego na figura da professora Sand, por exemplo; o azul identificado à máxima abstração. O trabalho cresce em meio a esse mundo material em que o texto toma o lugar de um bordado, um tricô. Todos esses papéis são expostos no lançamento do livro — é o aparato concreto em que a minha imaginação ao se desdobrar chega até o livro editado e publicado. O estudo de filosofia antiga, por sua vez, bem como minhas incursões pela língua grega quando enveredo no trabalho de tradução, é para mim um verdadeiro laboratório de linguagem — é o que aduba e faz germinar os vastos terrenos da minha ignorância. E é a área em que vou montado um acervo de elementos. A literatura se serve disso tudo com liberdade, pois o trabalho de criação não se confina em gêneros e nem respeita limites — para o bem ou para o mal. Tudo isso compõe o que escrevo e traz os riscos que lhe são inerentes — pode dar certo ou não…

Seus livros nascem a partir de uma história (enredo) ou de uma premissa formal? Em que medida estes dois aspectos dialogam, moldam e influenciam um ao outro?
Como já disse, o trabalho nasce de uma idéia — de certa condição que me imponho para fazer com que determinada premissa da nossa maneira habitual de ver as coisas deixe de operar — e também de um tema, mais do que de um enredo propriamente dito. Não sou boa em contar estórias… Mas entro numa obstinada empresa de fixar os olhos em certos aspectos e então vou me servindo das palavras até alcançar perfeitamente aquilo que vi e acho que precisa ser dito. É um trabalho exigente, pois pede que a linguagem ceda e se entregue, até que certa visão esteja razoavelmente registrada e uma região que me parecia escondida tenha sido alcançada. Escrevo o tempo todo, sem saber exatamente em quê aquilo se aplica, embora saiba que é uma peça do jogo.

O escritor argentino Mempo Giardinelli afirmou que sua geração, que se seguiu à época de “ouro” e ao boom da literatura latino-americana, foi restringida e sofreu com o peso desse cânone, ao passo que a atual geração de escritores não tem tanto sobre si o peso que foi escrever depois de Cortázar e Borges, por exemplo. Este é um período particularmente bom para “movimentar”, inovar na literatura? Pelo que observa, as possibilidades narrativas estão sendo bem exploradas pelos autores contemporâneos?
Preciso confessar que o trabalho literário, no meu caso, é comandado por impulsos internos e tem origem em algo absolutamente pessoal — é quase um episódio autista. Tenho uma noção muito clara de que não sei me situar objetivamente entre outros escritores — a minha inserção social, por assim dizer, é difícil e talvez seja a má adaptação justamente o que me leva para a literatura.

Em contrapartida, qual a importância de manter um diálogo com a tradição e o cânone?
Acho que estamos em conversa permanente com o meio cultural de uma época e todas as suas raízes — é com isso que se dialoga.

Em que circunstâncias a senhora começou a escrever ficção? Por que só veio a publicar recentemente?
Em um determinado momento fiquei curiosa com a possibilidade de explorar algumas inquietações por meio da literatura, e não de forma teórica, ensaística. Tive vontade de dar um depoimento estético, isto é, sensível sobre as expansões internas e as reformas que uma certa filosofia tinha me levado a fazer, particularmente o impacto sobre a minha imaginação de um tratado de Aristóteles que estudei anos a fio — o Peri psykhês ou De anima, como é conhecido.

• Podendo optar por trabalhar com outras formas de arte, por que opta especificamente pela literatura como trabalho de criação e expressão?
Certamente porque é nesta linguagem que me sinto mais à vontade.

A senhora escreve e lê pelas mesmas razões? Em que medida a literatura que realiza é determinada pelas suas preferências enquanto leitora?
Eu leio para ter companhia e não me sentir tão só. Com alguns livros tenho uma afinidade muito grande — sei bem do que o autor está falando. Isso me tranqüiliza. E aquilo que pretendo realizar foi claramente formulado por uma escritora ao sugerir às mulheres que buscassem expressar na literatura aquilo que podem dizer e que é de interesse geral, universal. Penso que isso foi um disparador e um objetivo que me motivou a escrever. A perspectiva da mulher está ainda sub-representada — e não estou falando de uma literatura de gênero. Escrever é colocar todos os meus recursos a serviço disso, é usar uma técnica — que no meu caso é intuitiva e obedece a critérios pessoais — para descrever o mundo que dê sentido às emoções que experimento. A literatura, no meu caso, tem a ver com identidade — ser quem eu sou.

Para que a perspectiva da mulher esteja mais bem representada na literatura basta que haja mais mulheres escrevendo? A perspectiva do indivíduo, relacionada à sua identidade, não é mais significativa?
Estou convencida de que as mulheres têm uma perspectiva própria na qual precisam se situar e a partir dela podem formular um ponto de vista sobre as questões que dizem respeito a todos. Talvez por conta de papéis e formas peculiares de inserção no mundo, essa mediação por uma via especificamente feminina esteja ainda a se fazer.

Alguns escritores buscam na filosofia idéias, reflexões e conceitos para seus livros. De que maneira seu conhecimento nessa área dialoga com a sua produção literária? Em que medida a literatura é detentora e transmissora de conhecimento?
A literatura me parece ser o terreno propício para um tipo de experimentação bem preciso: ver o que acontece com a nossa descrição da realidade quando fazemos certas premissas pararem de operar automaticamente na nossa linguagem. É essa a idéia central que, no meu caso, migrou da filosofia. Além disso, a literatura é onde está nosso maior acervo sobre a psicologia humana.

Maria Cecília Gomes dos Reis, autora de “A vida obscena de Anton Blau”

Enquanto em O mundo segundo Laura Ni “a boca de Laura é uma gaveta atravancada de coisas por dizer” e ela afirma viver “às bordas de [seu] próprio precipício”, Anton Blau “é um anão sentado no ombro do antigo gigante de si mesmo”. Os personagens estão presos, limitados, incompletos. O que os preenche? Se estamos presos ao tempo presente e a nós mesmos, para onde ou como podemos escapar?
Não podemos escapar… Ou melhor, estamos condenados a ter visões, a criar imagens — idéias, planos, sonhos… — e a depender de nossa imaginação para sustentar tudo isso que, de fato, não existe, mas precisa estar lá, diante de nós como uma miragem norteando o caminho. Cada um tem a chance de um breve período para dar corpo a isso. A vida é alguma realização de nossas potencialidades determinadas — essa é a brincadeira, essa é a graça ou desgraça, depende do ponto de vista.

Laura Ni, personagem principal de sua primeira novela, guarda semelhanças com a senhora: pesquisa filosofia e letras clássicas, é tradutora e deseja ser escritora. É apenas aparente ou de fato houve no livro seguinte uma menor “contaminação” de sua vida na ficção? A ficção autobiográfica lhe agrada?
A única fonte genuína de todas as experiências é a própria pessoa e eu não me furto dessa auto-exploração e retratação caso veja nisso um traço humano suficientemente geral para suscitar o interesse de qualquer um. Em Laura Ni me ocorreu que as dificuldades de manter um trabalho em andamento, quando isso depende estritamente de nossa própria força de vontade e do sentido que damos a ele, talvez fosse uma das lutas que cada um trava consigo mesmo, tentando não ser sugado pela preguiça e falta de motivação. Resolvi então escrever um solilóquio absolutamente identificado com a minha própria escravidão a um plano longínquo de me tornar quem eu sou. O curioso é que o resultado me parece muito engraçado, foi uma parte da novela que particularmente gostei de escrever. Não me custa apresentar minhas idiossincrasias, pois a literatura deve estar muito além de vaidades pessoais e pede retratos genuínos de tudo aquilo que é humano e nos aproxima uns dos outros. Mostro traços que não são confortáveis para ninguém, tampouco para mim… mas fazem parte de nossa cômica condição.

A certa altura do livro, Laura confessa: “Queria ter feito outra coisa da minha vida. Ter escrito algo que ao ser lido fizesse do leitor alguém melhor”. A literatura tem esse poder? É este o seu objetivo como escritora?
Em uma conversa, por exemplo, quando duas pessoas concordam com alguma idéia, então algo compartilhado vem à luz e o efeito disso é prazeroso, pois a nossa imaginação recebe o assentimento mútuo como um raio de sol depois da sombra de uma nuvem. Na arte, o autor e o receptor estão separados, mas o efeito que se busca é similar — o impacto de algo que parece real e tem a beleza de um item verdadeiro. É este tipo de impressão que me interessa criar com aquilo que escrevo. O efeito do belo sobre a alma das pessoas, para dizer de maneira convencional. Tem mais a ver com eficiência do que com melhora moral, com progressão do estado turvo para o translúcido.

O que busca na literatura está mais próximo da negação ou da afirmação da realidade?
O que busco na literatura está completamente voltado para a afirmação da realidade.

O quão importante é inovar, progredir e melhorar em sua arte? Não lhe interessa escrever um romance “tradicional”?
Em um determinado momento, percebi que se trata simplesmente de dizer de outra maneira e mais uma vez aquilo que se tem a dizer, até ser claramente ouvida e percebida. Não é o caso de se repetir, mas de completar, ocupar um terreno até o último bastião e fazer-se dona daquela voz. Nesse sentido, não é exatamente uma questão de inovar, mas de preencher os espaços que ainda estão vagos e ameaçam a compreensão daquilo que queremos retratar: uma perspectiva muito singular sobre o humano, que por esta fiel particularidade poderia paradoxalmente se fazer entender por qualquer um.

Julio Cortázar disse que “a literatura é uma das possibilidades da felicidade humana. Fazer e ler literatura. (…) E quando digo felicidade, não estou me referindo a uma felicidade beata: felicidade pode ser exaltação, amor, cólera… Digamos, potencialização”. A senhora acredita nisso enquanto leitora e escritora?
Não entendo bem o que ele quer dizer com “felicidade beata”, mas concordo que a literatura seja uma das possibilidades da felicidade humana, no sentido de eventualmente permitir um funcionamento integral de diversas capacidades, sendo assim uma experiência muito gratificante quando isso é eficiente — para quem faz e para quem lê.

Em ambos os livros, mesmo nas passagens em que as idéias aparentam ser o foco principal, há um cuidado com a palavra. O que a senhora busca em uma frase?
A língua materna é uma matéria maleável que cada um pode empregar com muita precisão para atingir aquilo que pensa e vê — isso é um mistério incrível. Tenho a noção clara de que nem sempre conseguimos isso com as palavras, pelo contrário, na maior parte do tempo elas saem truncadas e são incapazes de atender às nossas pretensões — e isso para mim é sempre frustrante, e sei que é a origem de tantas incompreensões e sofrimentos entre as pessoas. É um negócio difícil, esse de podermos dizer e escrever aquilo que nos ocorre. Na maior parte do tempo, estamos indicando coisas simples, mas quando pedimos mais que isso em geral dá-se facilmente a não-comunicação.

Obteve respostas de leitores sobre sua obra? Qual tem sido sua recepção? Se não resultar na compreensão de seus objetivos, que sentimento espera que a leitura cause no público?
Realmente não sei se os meus objetivos são alcançados… não há como saber. E por isso mesmo me preocupo em ser muito exata na maneira como tudo isso se apresenta, pois é o que está nas minhas mãos, e o resto — que é muito — me foge completamente. Imagino que esse tipo de literatura não seja do interesse de todos, talvez de bem poucos. E sei também que posso ser mal interpretada ou incompreendida. Entretanto, as novelas só me deram alegrias, ainda que o travo de um ou outro aspecto seja amargo.

O marido de Laura, Mario, um financista bem-educado, se vê distante da vida intelectual e cultural da esposa e com isso sente-se “excluído, traído e humilhado”. Falando especificamente da literatura, qual o peso de sua expressão artística na sociedade? A “nova classe média” cresce financeiramente, mas não tem acesso aos bens culturais. Como garantir e incentivar esse acesso?
Tenho a convicção de que a única forma de dar acesso a bens culturais é pela qualificação das pessoas — e isso envolve não apenas educação formal, que é o ponto de partida. No meu modo de ver, cada ser humano precisa ser formado artesanalmente, um a um, e isso envolve recriar em cada um de nós toda a humanidade — embora dizendo assim pareça uma tarefa quase épica. E por isso mesmo o meu pessimismo, face à explosão populacional no mundo. A primeira novela nasceu de um impulso também muito claro: registrar a convivência íntima de mentes muito diferentes, expondo em detalhes os conteúdos díspares lado a lado, com a intenção de mostrar contrastes e deliberadamente provocar um humorado estranhamento. Pretendia, ao mesmo tempo, esmiuçar as bordas da vida mental, explorar suas fronteiras com os eventos objetivos, revelar a porosidade e a continuidade desses mundos — interno e externo — que em geral são tratados na literatura de maneira por dizer assim dualista. É uma daquelas premissas que me empenhei em fazer não operar enquanto escrevia. Tudo começou, de fato, com um exercício que me impus: descrever minuciosamente a passagem do sono/sonho para a vigília — um negócio que nos acontece todo o santo dia e é simplesmente monumental. Tinha a impressão de nunca ter visto isso bem registrado na literatura. Demorei muito tempo para chegar a algo que me agradasse, ou melhor, que me convencesse. E é isso exatamente o que abre a novela e deu início à minha aventura literária.

Com o Brasil ganhando destaque no cenário internacional, e se pensarmos nos incentivos à tradução e publicação de nossos autores no exterior, que retrato da sociedade brasileira um estrangeiro teria a partir da nossa literatura? Seria um panorama razoável?
Não saberia dizer, mas imagino que a literatura que se produz no Brasil em língua portuguesa seja um retrato desta época — interesses, mazelas, preocupações —, o que mais poderia ser? É preciso acrescentar a isso, contudo, todas as dificuldades de tradução e incongruências entre culturas. Mas penso que as questões humanas mais gerais e importantes — ainda que nem se pense sobre elas — concernem igualmente a toda e qualquer pessoa, e nenhuma sociedade tem prerrogativas neste quesito sobre as demais. Nisso pelo menos somos todos iguais.

LEIA RESENHA DE A VIDA OBSCENA DE ANTON BLAU.

Yasmin Taketani

É jornalista.

Rascunho