“Minha paranóia é me perseguir”

Entrevista com Fabrício Carpinejar
Carpinejar: “Antologia costuma ser publicada quando o poeta está no estertor da carreira”
01/09/2003

• Uma antologia aos 31 anos prova o quê?
Não preciso provar nada. Só quem prova é culpado. Minha única culpa é ter nascido e já desisti de me livrar dela. Aceito essa condicional. Estou disposto a quebrar expectativas. Chega de preconceitos e planos de viagem. Quem me espera lá no final vai me encontrar antes. Antologia costuma ser publicada quando o poeta está no estertor da carreira. Como não é uma profissão para mim, mas vocação e fome, publiquei a seleta na minha juventude. Algo a menos para pensar depois (risos). Ninguém precisa envelhecer para reler o que escreveu ou para dizer a que veio. A juventude não depende de uma hierarquia etária para opinar. Há duas formas de medir a idade: por aquilo que deixamos de viver ou por aquilo que amamos em demasia. Prefiro a segunda hipótese. Pecar pelo excesso de afeto. Caixa de sapatos não é a substituição de meus livros anteriores, mas uma outra obra, de invólucro inédito, sem o contexto narrativo, que pode agregar valor ao que disse antes.

• Você sempre diz que a poesia não pode ser crime premeditado. Por quê?
É passional, livrando-me dos condicionamentos intelectuais, morais e religiosos, das implicâncias da vaidade. É fúria, não há meios de requentar a paixão. Não sou de ficar fiando álibis e forjando cúmplices para justificar minha escrita. Ser escutado depende do entusiasmo do timbre. Uma voz que não se entusiasma não levanta nem a si mesma. Minha solidão é grande o suficiente para assumir a responsabilidade. Intensifico tudo o que vivi imaginando. Não há totalidade de um sentimento, mas a lembrança que nos remete ao que poderia ser essa totalidade. Há poetas tão perfeitos tecnicamente que não se acha a emoção, muito menos o poema. É construção civil. Cimento ao invés de semente. Sou do erro, dos nervos estalando, do pensamento que se desmente no meio da fala, da contradição, da loucura desorganizada que é minha única forma de chegar perto das pessoas. Nunca fui bom de dicção, fazia desenho para dizer onde a palavra estava, me esforcei em reconstituir a imagem pela sinuosidade da caligrafia.

• A prosa está em seus planos literários?
Não tenho planos, muito menos jazigo antecipado. Plano é para quem faz seguro de vida. Minha poesia não me salvaguarda dos riscos, das apostas. Em cada poema, ponho o que já ganhei e posso falir em um único verso. Essa sensação derradeira me comanda. Ensaio sempre um aceno quando começo a digitar. A poesia não é rascunho do ficcionista, uma preliminar, é a própria ficção em carne viva. O que faço são fábulas. Na infância, escutava as lendas de Leonardo da Vinci e de Simões Lopes Neto. Essa mistura foi explosiva. Meus ouvidos puxaram mais a tempestade do que a brisa. Curava verrugas com o leite das folhas das figueiras. Nunca tive medo das cicatrizes. É a única pele que rivaliza com a longevidade do osso.

• Como se constrói o seu projeto poético?
Destruindo. Todo o texto tem que sobreviver ao esquecimento. Ninguém é pai de um poema sem ter sido filho dele antes, sem ter o esperado na janela. A humildade serve ao amor e à literatura. Quando se está a fim de um mulher, o homem é capaz de ser extremamente patético, se rebaixar e sacrificar o orgulho. O mesmo funciona para a poesia. Não se deve se importar com o que já foi feito, mas com o que pode ser dito. Nunca olhei para trás para ver se estou sendo seguido. Minha paranóia é me perseguir.

• Quem é o grande poeta brasileiro atual?
Não vivemos em uma monarquia para venerar um único rei, para eleger um único poeta. A pluralidade nos salva de nossos defeitos. Há essa mania crítica de querer encontrar uma única realeza literária para dispensar a procura e a leitura de nossos contemporâneos. É mais preguiça do que profecia. O grande poeta pode estar onde menos se espera.

• O fardão da Academia Brasileira de Letras e a pilcha gaúcha combinam?
Nem o cantor Falcão faria essa combinação. Isso é redundância.

• O Rio Grande do Sul é o seu país?
Não sabia que eu vivia no Uruguai (risos). Quando nasci, me falaram que era um poeta brasileiro e nunca fui notificado da dupla nacionalidade. Acredito que meu olhar começa no Rio Grande do Sul, mas minha voz não está regrada a uma geografia. O poeta não reproduz um mundo, mas cria o seu mundo. Minha pátria, minha bagagem, é o corpo. Quando me tirarem dela, pensarei no exílio.

• Os compadres poéticos vão vencer a guerra?
Minha guerra é a trégua. Chega de guetos e tribos, de bandos e bandas, de pensar que a poesia é uma competição própria de hipódromo. Os poetas podem e se ajudam mais do que é visto. Traduzem e doam sangue para que seus textos preferidos de outros autores ganhem o devido destaque. É estranho que essa solidariedade espontânea não seja identificada. Quanto maior o espaço para a poesia, maior será a predisposição dos leitores com o gênero. Conheci a carência quando pequeno e posso dizer que ela, ao invés de me tornar avarento, me ensinou a repartir. Reparto o que não tenho, mas aquilo que posso me tornar. A poesia passou as últimas décadas se negando e negando a vida. É o momento de ser afirmativa, bem humorada e com a coragem de suscitar um mundo compatível com o cotidiano e a verdade da imaginação.

• Ser filho de poetas é nascer rimado?
É quebrar a rima. Quebrei o soneto do pai e a elegia da mãe. Nasci para incomodá-los com um poema conversado. Sou órfão de vôo. Eles não merecem minha culpa. Tem coisas que só sei contar ao texto, a mais ninguém. A poesia é minha confidente, onde me calo para falar. Escrever por necessidade é a minha liberdade.

• A crítica literária brasileira é anêmica ou medrosa?
Machado de Assis já advertia: “melhor cair das nuvens do que do terceiro andar”. Os críticos brasileiros ainda não desceram das nuvens, festejam os clássicos ao invés de respirar os novos. Têm uma dificuldade congênita de desafiar previsões e modismos. São canônicos, passam a idéia de que já nasceram centenários. Outra coisa: nota-se uma ausência de ensaístas que não sejam ficcionistas ou poetas, que não tenham essa ligação com a própria criação, com um distanciamento salutar para opinar no descompromisso. Falta-nos puros críticos, fascinados unicamente pela alegria da leitura.

• Que tipo de poesia te desagrada?
A que fez o leitor acreditar que era burro, que partia do princípio de que o mais complicado é o melhor. Da mesma forma, não gosto da poesia de realismo publicitário, de trocadilhos infames feitos para vender espuma, de brincadeiras inconseqüentes. Respeito a linguagem e é ridículo testar sua força. Ela é tudo o que posso.

• Você tem medo de que sua vida caiba numa caixa de sapatos?
Não. Uma caixa de sapatos nos prepara a aceitar os limites. Ela é o pátio das mãos, onde se coloca os objetos e recordações que nunca pararam de nos visitar e de nos reinventar. A vida é intensa em seus pequenos espaços. Quero cada vez mais o mínimo, desescrever, aquecer os olhos com o vento, sentir a delícia da simplicidade.

• Que ausências te assustam mais?
As distrações que nunca serão poemas, nunca serão amores, nunca serão filhos, nunca voltarão a ser.

LEIA RESENHA DE CAIXA DE SAPATO

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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