Longe de si mesmo

Entrevista com Alberto Mussa
O escritor Alberto Mussa, autor de “Meu destino é ser onça”
01/04/2009

Por Rogério Pereira e Suênio Campos de Lucena

Alberto Mussa só descobriu que era míope aos 13 anos. Isso, segundo ele, ajudou-o a aproximar-se ainda mais dos livros, que sempre habitaram todos os cômodos de sua casa. “Vivi muito tempo sem óculos e a televisão não me despertou muito interesse. Os livros, pelo contrário, tinham letras até maiores que as de hoje”, diz.

Desta paixão um tanto embaçada no início, Mussa nunca mais se libertou. Vive integralmente da literatura. Uma literatura, diga-se, muito descolada da realidade que nos cerca. Prefere investigar outros mundos, outras possibilidades: “procuro o exótico, as distâncias, no tempo e no espaço, os mundos em que eu não posso viver. Gosto de imaginar situações ficcionais de que eu nunca poderia ser um personagem”. Livros como O trono da rainha Jinga, O enigma de Qaf e O movimento pendular estão aí para comprovar.

Agora, Mussa empreende mais uma viagem rumo ao “exótico”, ao restaurar o mito tupinambá em Meu destino é ser onça. Nesta entrevista por e-mail, o autor fala sobre o novo livro, dos preconceitos que nos cercam, de sua literatura, de livros, de autores…

• De que maneira você espera que Meu destino é ser onça contribua para que os leitores conheçam um pouco mais da construção do Brasil? Lembro que nas páginas iniciais do livro, você escreve: “Há 15 mil anos somos brasileiros; e não sabemos nada do Brasil”.
Não acredito numa função utilitária da literatura, pelo menos não escrevo para provocar uma efeito específico — leio e escrevo para me divertir, para ter prazer, um tipo particular de prazer, que é o intelectual. O processo de leitura é tão subjetivo que muitas vezes produz efeitos completamente diferentes daqueles desejados pelo autor. É o leitor, apenas ele, quem faz um livro. Um exemplo disso é o caso do Dom Quixote: Cervantes escreveu uma sátira do romance de cavalaria, quis debochar da nobreza, ou dos heróis que representavam os ideais aristocráticos. Foi isso que ele fez. Mas hoje a personagem Dom Quixote virou, para a maioria das pessoas, um símbolo de idealismo, de martírio. Ser quixotesco, hoje, é sacrificar-se por um alto ideal que sabemos não ser alcançável. Suspeito que Cervantes não entenderia nada. Mas, voltando ao primeiro ponto, o prazer intelectual ligado à leitura, pelo menos na minha forma de sentir, está geralmente vinculado a uma provocação reflexiva, ou seja, quando algo que você lê te faz pensar e às vezes rever seus próprios conceitos a respeito do mundo. Neste livro, fiz uma provocação, que é essa que você cita e que vem sendo recebida de maneiras distintas. Tem gente que não leva a sério, tem gente que diz “não em relação a mim, eu sou uma exceção”, enquanto outros caem em si, começam a valorizar nossa indianidade, começam a reconhecer que os índios têm uma sensibilidade poética e um pensamento metafísico tão sofisticados quanto os herdeiros das culturas “civilizadas”, particularmente as européias. Se essa for a leitura dominante, ficarei feliz.

• Quais as maiores dificuldades e recompensas ao escrever Meu destino é ser onça?
A redação desse livro teve, grosseiramente, duas fases: a das leituras, em que eu revi toda a literatura colonial, brasileira e sobre o Brasil, para extrair os excertos que me interessavam (e que constam da segunda parte do livro); e a da restauração, em que montei, ou tentei montar, um método matemático que me permitisse alcançar, com um mínimo de interferência pessoal, o que chamei de original teórico. Essa segunda fase é que foi muito trabalhosa e não me deu tanto prazer, devo confessar. Porque a cada nova descoberta, a cada nova informação, eu tinha que alterar o texto inteiro e reler tudo o que eu já tinha escrito. Esse sistema de trabalho está explicado na terceira parte. Quanto à recompensa, é sempre o prazer de ver o livro pronto.

Meu destino é ser onça funde literatura e história. Você não teme que o livro seja criticado pelos historiadores e deixado de lado pelos leitores de ficção?
Toda pessoa que escreve sabe que se expõe a críticas. Faz parte. É importante. Não me sinto pessoalmente atingido quando alguém me critica, ninguém é obrigado a gostar das coisas que eu faço. Em relação a esse livro especificamente, eu tinha sido advertido pelo Eduardo Viveiros de Castro (que me tirou muitas dúvidas sobre as culturas tupi) exatamente sobre o tipo de crítica que eu poderia receber. Isso porque eu parti de um propósito absurdo: o de restaurar um original que nunca existiu. Contrariei também com isso a posição corrente da antropologia contemporânea a respeito da natureza do mito — que não possui origem, muito menos texto original, que não tem versões falsas ou verdadeiras, sendo todas culturalmente válidas. Mas é esse propósito absurdo que torna o livro uma peça literária, e não estritamente ensaística ou etnológica. Aqueles que conseguem sentir nisso uma aventura, ou uma ironia, se divertem. Os que não conseguem, se irritam (e com razão, diga-se de passagem). Mas eu tinha muito receio de que este livro passasse despercebido, que não fosse ter leitores, não porque misturasse ensaio e ficção (já que isso acontece em outros livros meus), mas por causa do assunto. Não achava que fosse haver muito interesse, em se tratando de índios brasileiros. E o resultado me surpreendeu. Pelos primeiros números, é provável que este venha a ser o meu livro mais vendido.

• Por que motivo os temas indígenas são tão desprezados pela literatura e pela historiografia brasileiras? Não é um contra-senso, já que descendemos (quase todos) de alguma linhagem indígena?
A razão é simples: o Brasil ainda é um país profundamente racista. Contra índios e negros (embora a questão negra esteja hoje numa outra posição). E quando eu falo em racismo não me refiro apenas às modalidades agressivas, às pessoas que discriminam conscientemente. Nossa principal forma de racismo é branda, é o racismo camarada, que atua por omissão e se permite pequenas concessões. Não é necessário desprezar os índios ostensivamente. Basta esquecer que eles existem. E fazer a história começar em 1500.

• Pode-se afirmar que o canibalismo está no cerne de Meu destino é ser onça. Há muitos equívocos na maneira como o canibalismo é apresentado ao grande público? Quais as diferenças entre o canibalismo dos indígenas brasileiros do de outras culturas?
Em geral, o canibalismo é visto como um ato de selvageria elementar, uma prática incompatível com a noção de cultura. Às vezes tentam explicá-lo dizendo que o canibal procura absorver as qualidades da pessoa morta. São, evidentemente, simplificações, que não dão conta dos fatos conhecidos. Acredito que, embora deva haver um fundo comum, uma simbologia muito profunda herdada da alta pré-história, cada cultura concebe o rito canibal de forma própria. Os tupi matavam e comiam inimigos, que eram fundamentais para que eles alcançassem a vida eterna de prazer após a morte, dando simultânea e contraditoriamente a esses mesmos inimigos o dom dessa mesma vida eterna. Por isso, afirmei que o canibalismo tupi era uma forma simbólica de eliminar da vida o conceito de mal. Se o mal que eu te faço dá a você um bem eterno, então esse mal é a própria manifestação do bem. Mas há no Brasil outros povos que ou não eram canibais ou praticavam um tipo inverso do canibalismo tupi, como, por exemplo, os tarairiú, que em vez de inimigos, comiam parentes — para não permitir que apodrecessem na terra. Há uma frase célebre do índio Janduí, cacique dos tarairiú, que diz: “nenhum túmulo é mais honroso que o estômago de um parente”.

• Por que a ausência de imagens no livro? Ele não se enriqueceria ainda mais com uma contextualização do período histórico brasileiro abordado (a fim de explicar ao leitor menos informado), bem como, uma apresentação que explicasse a biografia dos cronistas, e a inclusão de ilustrações da época, como as de Hans Staden, Frans Post e Rugendas?
Na verdade, nunca me ocorreu a idéia de pôr gravuras, talvez porque eu prefira mesmo a abstração das palavras. Não sou uma pessoa muito visual. A imagem é direta demais, tira um pouco da fantasia, me parece. Mas não deixei de fazer a introdução histórica e também dei uma breve biografia dos cronistas. Poderia ter escrito mais, é claro, mas tem hora que o livro cansa e dá vontade de acabar pra começar outro, com outro assunto, de outra época e outro lugar.

• Como você conseguiu definir o que é falso, verdadeiro, etc.?
Na verdade, falso e verdadeiro estão no livro entre aspas. Quando me dei conta de que havia muita informação conflitante entre os cronistas (porque, como os antropólogos ensinam, os mitos são sempre recontados para reorganizar uma nova forma de pensar), decidi elaborar um método de compor uma narrativa em que minha interferência ou meu gosto pessoal na escolha dos episódios fossem praticamente anulados. O princípio que eu segui é simples (e está descrito na seção que chamei “cálculo textual”): verdadeiros eram os fragmentos que, se aproveitados, permitiam o aproveitamento de outros e descartavam um número mínimo de fragmentos conflitantes. E vice-versa: falsos eram aqueles fragmentos que, se considerados verdadeiros, acarretariam o descarte de um número grande de outros fragmentos. O objetivo foi, assim, aproveitar o maior número de informações possível.

• Concorda que Meu destino é ser onça trata, não apenas sobre como o outro (em geral, o europeu colonizador e que detinha o poder e a escrita) “nos via”, ou melhor, aos nossos antepassados, mas que, no fundo, também tem a ver com a discussão sobre cor, etnia, raça, racismo, etc.?
Precisamente. Quis deixar bem claro duas coisas: que somos também descendentes dos indígenas, queiramos ou não; e que aquele conjunto de mitos, que eu reuni numa narrativa só, tinha o mesmo valor literário e filosófico das grandes epopéias e mitologias fundadoras dos povos antigos, como o Gênese, a Ilíada ou o Rig Veda. Até porque todas essas obras existiram muito tempo na forma oral. A passagem para a forma escrita se deu muito mais tarde. Os nossos mitos, os mitos tupi, são os mais antigos das Américas, no sentido de que foram os primeiros a serem recolhidos pelos europeus. Se existe alguma obra que deva ser considerada a primeira da literatura brasileira, qualquer que seja o critério, é esse conjunto mitológico. Não estou falando da minha versão, mas das versões indígenas propriamente ditas. Assumir essa obra como patrimônio literário e intelectual é uma forma de diminuir nossa rejeição histórica por esses povos, é uma forma melhor de entendê-los e de entender a história do Brasil. É também um poderoso instrumento de elevação da nossa auto-estima — que talvez seja a mais baixa do mundo e que é uma das causas, no meu ponto de vista, da nossa falência social.

• Você dedica-se a uma literatura muito descolada da realidade, ao contrário da maioria dos autores contemporâneos brasileiros. Por que esta opção? O que mais o move no momento da construção ficcional?
Na verdade, não é uma opção mas uma predisposição da minha própria personalidade. Parodiando Oswald de Andrade, só me interessa quem não sou eu. Talvez por isso, sempre gostei de romances de aventura, de literatura fantástica, de novelas policiais (daquelas bem inverossímeis, tipo Agatha Christie, Borges ou Conan Doyle), de mitologia, de etnografia, de história antiga. Procuro o exótico, as distâncias, no tempo e no espaço, os mundos em que eu não posso viver. Gosto de imaginar situações ficcionais de que eu nunca poderia ser um personagem. E só na literatura se pode fazer isso. Minhas histórias partem sempre de algum livro que eu li, de um mito ou de um fato histórico que me tenha provocado alguma espécie de reflexão. De certa forma elas são a exposição puramente ficcional de uma idéia qualquer. Por exemplo, em O trono da rainha Jinga montei uma história para desenvolver uma hipótese interpretativa de um mito quimbundo (o povo de Angola que deu mais palavras à língua portuguesa do Brasil): a de que existe uma quantidade finita e constante de Mal no universo. Em O enigma de Qaf, a idéia foi imaginar uma máquina do tempo diferente das tradicionais (que fazem grandes viagens pelo passado e pelo futuro), uma máquina que recuasse apenas alguns minutos e fizesse as pessoas reviverem o que tinham acabado de fazer. Em O movimento pendular, a idéia foi defender a “tese” de que o conceito de adultério é anterior ao de incesto (normalmente apontado como uma das bases da organização social da humanidade). Evidentemente, todas essas teses e idéias são literárias, são provocações. Não têm nenhum compromisso com a verdade e nem refletem, necessariamente, o que eu penso.

• Em toda a sua obra, nota-se um grande amor pelo conhecimento e, conseqüentemente, pelos livros. De que maneira você transformou-se no leitor que hoje é? Que caminhos indicaria nesta árdua tarefa de aumentar o pouco expressivo número de leitores no Brasil?
Acho que vem de muito longe. Tanto meu pai quanto meu avô tinham bibliotecas muito grandes. Sempre convivi com livros. Até no meu quarto tinha estantes com livros do meu pai, incluindo um compêndio de mitologia universal e os clássicos da Aguilar. Cresci como um garoto normal, jogava bola na rua, ia às rodas de samba, mas, quando estava em casa, lia. Sempre li muito, de tudo, desde os livros do meu pai até romances de espionagem que eu comprava nas bancas de jornal. Acho que minha miopia (que sempre foi alta) também ajudou. Como só descobri que era míope aos treze anos, vivi muito tempo sem óculos e a televisão não me despertou muito interesse. Os livros, pelo contrário, tinham letras até maiores que as de hoje. Nunca abandonei a literatura, nem quando estudei matemática, que foi minha primeira faculdade. E desde que comecei o curso de Letras passei a ter uma meta de leitura. Hoje, tenho que ler pelo menos dez livros por mês, e no mínimo a metade é de literatura brasileira. Mas não sei o que faria se tivesse a incumbência de aumentar o número de leitores, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Acho que as pessoas andam tão deslumbradas com a tecnologia eletrônica que sobra pouco espaço para o livro, objeto antigo, embora seja a maior invenção da humanidade, depois do cachimbo e do arco-e-flecha.

• O que o impulsiona a dedicar-se à literatura em um tempo tão afeito à pressa, ao frugal, ao imagético, distante da lentidão da leitura, dos livros?
Precisamente para poder fugir da tecnologia. Hoje é um tal de tempo real, de realidade virtual, de mundo sem fronteiras, de câmeras e telefones celulares, dessas coisas medonhas que tornam tudo muito óbvio e muito verdadeiro e tiram nossa capacidade de imaginar e de memorizar. A literatura é o contrário disso.

• Que autores lhe são imprescindíveis como escritor e leitor? Quais nunca o abandonam?
Como leitor, muitos. Mas posso mencionar os que releio mais: Machado, Lima Barreto, Borges, Bioy Casares, Nelson Rodrigues, Camões e Jorge de Lima. Poderia incluir aí também, numa escala menor, Guimarães Rosa, Mario Benedetti, Conrad, Zweig, Schnitzler, Pérec e os poetas árabes pré-islâmicos, que entraram por último. Quando pensei em me tornar escritor, senti um peso muito grande do Machado e do Guimarães. Particularmente o Guimarães. Naquela época, no ambiente do curso de Letras, a moda era discutir “linguagens”. A literatura parecia ser feita apenas de linguagem, de forma. Como se não mais houvesse histórias para contar. Eu sempre fui muito racional, muito mais clássico que moderno. Conseguia ser um razoável autor de ensaios, mas não criar uma “linguagem” nova e pessoal. Foi quando descobri A invenção de Morel, de Bioy Casares. Aquele livro passou a ser o meu modelo, porque valorizava a história, o enredo, a narrativa, o pensamento. Logo depois, em função do Bioy, descobri Borges. Foi o passo final, porque com Borges descobri que eu poderia escrever com minha própria linguagem, que era a do ensaio acadêmico. Foi Borges quem me ensinou que, inclusive na literatura, eu podia ser eu mesmo.

• Como é o seu dia-a-dia literário, de que maneira o fazer literário lhe ocupa a vida diária?
Hoje me dedico quase que integralmente à literatura. Mas leio muito mais que escrevo. Até porque escrevo à mão, num caderno. Muitas vezes passo o dia sem ter posto uma linha no papel. Estou agora terminando um conto, que deve ter umas 20 páginas e que me levou três meses e meio. Só consigo escrever depois que estabeleço completamente o plano da narrativa, seja conto ou romance. Às vezes esboço até pequenos mapas. É a parte mais gostosa, a concepção pura da história, antes das palavras. Uma coisa que me faz muito bem é contar a história, oralmente. Isso vai fortalecendo as imagens na minha cabeça e facilita o processo mais árduo de escrever. Acontece freqüentemente de eu ter que parar a escrita para reler livros. Como minhas histórias se passam em lugares que eu nunca vi, preciso estudar, não de forma muito sistemática, mas apenas para dar aquele tom de verossimilhança, que é fundamental à narrativa, ainda que seja fantástica. No fundo, gosto mesmo é de ler e de pensar. Escrever é um tanto desagradável.

Leia resenha de Meu destino é ser onça

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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