“Eu tenho mesmo que fazer literatura de suspense”

Entrevista com Joaquim Nogueira
Joaquim Nogueira, autor de “Vida pregressa”
01/01/2004

• O senhor nasceu no Acre, mora em São Paulo desde 1960. É filho de seringueiro, foi servente de pedreiro, pintor de paredes, ajudante de serraria, auxiliar de escritório, bancário, oficial de justiça e delegado. Gostaria que o senhor contasse como toda essa trajetória culminou na carreira de escritor de romances policiais?
Aí por volta de 52 ou 53, quando eu tinha 12 ou 13 anos e morava em Rio Branco, no Acre, li um romance chamado Vidas marcadas, que fora escrito pelo promotor da cidade, José Ribamar. Talvez se o lesse hoje, eu achasse muito ruim. Mas na época, ele simplesmente me empolgou. Fiquei encantado com os personagens, as cenas, os diálogos, o desfecho. E me prometi que um dia escreveria também um romance. Hoje, penso que tudo o que eu fiz, os cursos, o ganha-pão, os lugares onde morei e moro — Sena Madureira, AC, Rio Branco, Manaus, Rio, São Paulo — tudo não passou de meros “expedientes” que me levavam em frente, tocavam minha vida. Porque todo esse tempo o que eu queria mesmo era escrever… Tudo o que eu queria era escrever um romance tão marcante como Vidas marcadas.

• No seu romance de estréia, Informações sobre a vítima, o senhor mostrava, além das peripécias do investigador Venício, a corrupção de policiais. O senhor recebeu algum tipo de “represália” de ex-colegas?
O livro realmente descreve a polícia de São Paulo com muito realismo. Muita imparcialidade. Muita frieza. Isso decorre de um compromisso que eu assumi quando me propus contar histórias policiais — escrever tramas fictícias, criar personagens fictícios, mas que se movessem, que amassem, rissem e chorassem num cenário real. Esse cenário é São Paulo. E parte dele são as delegacias de polícia, os plantões, as viaturas, telefones, celas. Dentro desse compromisso, descrevei a polícia da maneira que ela me parece. Tal como eu vi. Claro, não sou ingênuo para pensar que TODA a polícia aprovou o livro. Mas não houve represálias. Posso dizer que sou benquisto na minha associação, que é a Associação dos Delegados. Tanto que no primeiro programa de rádio que a associação bancava, Segurança para todos, a única entrevista foi a minha. Também não recebi manifestações de outros setores. Mesmo o sindicato dos investigadores, que podia ter-se doído com meu romance, ficou de boca fechada.

• O que é necessário para se construir um bom romance policial? Há uma fórmula a ser seguida?
Existe uma fórmula que vem sendo seguida através dos tempos. Que foi usada (e abusada) por N autores em N países e literaturas. A trama começa com um crime, de preferência assassinato, que é grave e por isso tem um castigo pesado, aparece um investigador — policiais, detetives particulares, professoras aposentadas — segue-se a investigação e, por último, vem a revelação do culpado. A meu ver essa trama, justamente por ter sido usada tantas vezes, encontra-se desgastada, fazendo-se necessário hoje que os autores de histórias de suspense procurem novos modos de montar suas histórias. Para se construir um bom romance policial, penso, é necessário apenas que haja o estabelecimento do suspense e que o autor saiba conduzir a história de tal modo que o leitor fique “em suspenso” até a última página.

• A literatura policial é vilipendiada no Brasil? O que vemos com freqüência é que tal gênero é considerado um subgênero (tanto pela crítica como por ficcionistas) e muitos escritores olham de esguelha para os romances policiais.
Eu não diria que a literatura policial é vilipendiada no Brasil. Realmente, não tenho elementos para fazer esse tipo de afirmativa. Também não saberia dizer se os escritores olham de esguelha para os romances policiais. Em todo caso, me parece que, no mundo todo, a literatura policial é vista pela crítica como um subgênero, isto porque existia, e ainda existe, uma porção de escritores que escreviam e ainda escrevem histórias de terceira categoria, esquemáticas, mirabolantes, autores que produziam e produzem de maneira fácil e rápida, e ainda por cima tentando ganhar dinheiro. Eu me arriscaria dizer que isso está mudando, posto que hoje já existem escritores que levam a sério a literatura policial, dando-lhe a importância que ela merece. A crítica terá que refletir melhor sobre o assunto.

• Por que o Brasil não tem ainda tradição (uma escola) em literatura policial, como acontece nos Estados Unidos e na Europa?
A grande influência sobre a literatura brasileira, creio eu, veio de Portugal e da França, países não muito chegados aos romances policiais. No Brasil se escrevia principalmente romances sentimentais (Sra. Leandro Dupré), políticos (Jorge Amado, Graciliano Ramos), psicológicos (Carlos Heitor Cony), históricos. Com o desgaste desses gêneros, havia mesmo de surgir um novo modo de escrever romances, e este novo modo me parece ser o romance policial. Se não temos, hoje, uma tradição em literatura policial, temos uma plêiade de escritores fazendo histórias de suspense, o que pode vir a se tornar uma tradição a seu tempo.

• Os romances de um ex-delegado de policial têm muita verdade ou são apenas frutos da imaginação?
Eu não poderia generalizar sobre isso, até pelo fato de não conhecer muitos ex-delegados que façam romances. De qualquer modo, creio que mesmo escritos por delegados de polícia, ou ex-delegados, romances podem conter muitas verdades ou serem apenas frutos da imaginação. No meu caso, antes de escrever a primeira linha do meu primeiro livro, Informações sobre a vítima, me propus escrever histórias verdadeiras, realistas, inspiradas pelo contexto social, aderidas à realidade. Evidentemente, não espero que outros autores pensem da mesma forma. Creio que artistas (a palavra parece boçal, mas no momento não tenho outra: desculpem) creio que artistas não devem ter qualquer tipo de obrigação — a não ser aquelas que eles mesmas se auto-impõem. Cada escritor tem o seu assunto, seu tema, e deve ser fiel a ele. Quanto mais fiel, mais probabilidade ele terá de fazer uma boa obra.

• A violência urbana brasileira, principalmente a de São Paulo, tem alguma interferência na sua ficção?
Não tenho a menor dúvida sobre isso. A violência de São Paulo faz parte do nosso dia-a-dia. Entra pelos nossos sentidos e pela nossa imaginação. Quando abro a porta da minha casa de manhã, eu penso em ladrões e assaltantes. Antes de enfiar o carro na garagem, no fim do dia ou à noite, penso em assassinos e estupradores, que podem estar dentro de casa, aguardando uma nova oportunidade e uma nova vítima. A interferência na minha ficção é inevitável. Antes de escrever cada cena, penso na maneira como os fatos que vou imaginar ocorreriam na realidade. Penso em quantas vezes e com que detalhes eu li algo parecido nos jornais. Eu sou um homem engajado. Leio jornais, ouço rádios, assisto à televisão. Sem contar que fui delegado durante 12 anos, dez deles sofridos nos plantões da periferia da cidade. Eu tenho mesmo que fazer literatura de suspense. Esse é o meu assunto… Meu destino… Meu carma.

• Venício é um policial ético, honesto e sensível aos problemas do “cidadão comum”. Esses traços não destoam muito da idéia (muitas vezes preconceituosa) que se tem de um policial? Como tem sido a recepção dos leitores a seus livros?
Não creio que Venício destoe da polícia. Porque na polícia tem muito policial ético, honesto e sensível. É incrível a quantidade de policiais — investigadores, escrivães, carcereiros — que trabalha nos plantões, mas não se envolve com grana e no dia seguinte pega seus livros e seus cadernos e vai para a faculdade, geralmente de direito. A maioria dos policiais dos baixos escalões, das fileiras, como dizemos, não bebe em serviço e grande número deles sequer fuma. Agora, é evidente que Venício destoa de uma parte da polícia. Aquela parte que falta ao serviço para “tocar” seu próprio negócio, a parte daqueles que pensam o tempo todo em promoções e cargos mais altos, que troca o cumprimento da lei por dinheiro. Em outras palavras: Venício destoa da banda podre da polícia, justamente por pertencer à banda sadia. A recepção dos leitores tem sido positiva. De simpatia e empatia. Porque leitores — e a maioria do povo — também pertencem à banda boa.

• O crítico Wilson Martins diz que “de uma forma geral, acho que os brasileiros não têm a ‘cabeça detetivesca’”, ao afirmar que a literatura policial brasileira é muito frágil. Como o senhor encara tal afirmação?
Encaro do seguinte modo: a literatura policial brasileira está engatinhando. Ainda está naquela fase de separar o joio do trigo, descartando os livros de carregação e abraçando as obras feitas com denodo e seriedade. À medida que o gênero for se firmando, os literatos brasileiros passarão a ter uma “cabeça detetivesca”. E ela, a literatura policial brasileira, deixará se ser frágil, passando a ser forte e arrojada. É nisso que eu acredito. Veremos.

• O que podemos esperar para o futuro de Venício?
No momento ele está envolvido numa investigação em causa própria, pois se tornou vítima de alguns maus-caracteres. De umas pessoazinhas que se dedicam a fazer o mal para os cidadãos comuns, pacatos, pagadores de impostos. Acho que ele vai trabalhar neste final de ano, até mesmo no réveillon, e por todo o primeiro semestre de 2004. Depois disso, talvez em 2005, ele se envolva em outra investigação, tentando descobrir quem cometeu três homicídios dessemelhantes — três assassinatos que não parecem ter qualquer relação entre si. Depois disso… Bem, depois não sei o que ele vai fazer. É muito cedo para dizer. Vamos esperar. O cara é meio invocado, esquisito, metido a cu de ferro, pode meter os pés pelas mãos e fazer uma coisa inteiramente inusitada — até mesmo pra mim, que sou o pai dele.

• Quais autores têm lugar de destaque em sua biblioteca? Quais são as suas referências na literatura policial?
Muitos autores têm lugar na minha biblioteca. Luiz Alfredo Garcia-Roza, Rubem Fonseca, Raymond Chandler, Dashiel Hammet, Elmore Leonard, Lawrence Block, Manuel Vasquez Montalban. Eu diria que a principal referência que tenho é Raymond Chandler, pela maneira triste e desencantada como ele via o American Way Of Life, pelo seu estilo direto e incisivo, com aquelas frases curtas e cortantes, pejadas de crítica e tristeza. Talvez aqui eu diga uma blasfêmia. Gosto de comparar R.C. com Machado de Assis… num certo aspecto. Ambos eram gênios. O Chandler escreveu em 30 e 40 livros que são modernos até hoje. O Machadão escreveu no final do século 19 romances que são únicos (no gênero dele) até hoje. Outro dia li Acqua Toffana da Patrícia Melo. Foi uma surpresa agradabilíssima. Ela escreve de forma supermoderna — assustadoramente supermoderna.

• Como é o seu processo criativo?
Não tenho um processo seguro, definitivo, final, acabado, pronto para uso. Mas geralmente a coisa funciona assim (pelo menos, nos últimos tempos é como tem sido): no geral, aparece uma idéia, que não sei como nem por que se alojou na minha cabeça. Depois que ela passa um tempo ali, esperneando, metendo bronca, como um pássaro ainda no ovo, eu decido acatá-la, dar vez, apostar nela. Escrevo uma sinopse e deixo arquivada no computador. De tempos em tempos, abro o computador, olho, peso a idéia, avalio, tentando descobrir suas possibilidades, imaginando possíveis vôos. Acrescento coisas, novos personagens, novas cenas, mato personagens, deleto idéias para diálogos. Se um dia me convenço que aquela sinopse dá mesmo uma história, com força, originalidade e significado, então ligo de novo a máquina e escrevo a primeira frase. Daí em diante, procuro escrever cinco ou seis laudas todo dia, chova ou faça sol — sábados, domingos, dia de eleição, sexta-feira da paixão, dia de internar a mãe, o escambau. Quando chego ao fim, após digitar a última palavra, começo tudo de novo, deletando, acrescentando coisas, etc. e tal. Aí eu mando pra editora e fico em casa me coçando e fazendo figa.

• Quais são os seus próximos passos literários?
Eu disse acima que estou trabalhando em mais uma aventura de Venício, A mão armada. Fora isso, não tenho nada planejado. Quando aparece uma idéia para conto, escrevo e deixo no disco rígido, porque não sei o que fazer com ele. Se surge uma idéia para crônica, escrevo e guardo também. Eu gostaria de escrever e publicar crônicas regularmente. Como obrigação. Para virar rotina. Acho um gênero fantástico (os livros de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e outros que não me deixem mentir), e que ainda pode render muito, há todo um campo em que autores modernos podem se aprofundar. Isto não são bem “passos literários”. São mais sonhos.

LEIA RESENHA DE VIDA PREGRESSA

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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