O país dos ponteiros desencontrados é uma homenagem à literatura — uma valorização. Hoje, é notória a desvalorização do escritor no centro das grandes discussões que movem o país. O escritor perdeu força, perdeu o status, muitas vezes não passa de um mudo falando a um surdo. A que poderíamos atribuir este desdém ao escritor como um intelectual participativo do processo de desenvolvimento de seu país?
Eu valorizo, talvez intuitivamente, o que sempre me valorizou, o que vem me definindo como ser humano desde minha mais remota infância. E que já me tirou de poucas e boas, em poucas e talvez misteriosas palavras: que me salvou e salva a vida diariamente. Tenho a impressão que se eu fizesse um exame de sangue (e se houvesse um teste para isso) iriam constatar uma série de palavras e fluxos ou surtos de frases. Uma alta dose de linguagem, correndo lá dentro e pedindo para sair. A psicanálise diz que escrever é um sintoma, pois eu vivo do meu sintoma. Eu não escrevo porque quero, escrevo porque não consigo não escrever. Tua pergunta tem duas perguntas. Responder à segunda, seria politizar ou ampliar a primeira: o que eu poderia dizer sobre a (verdadeira) desvalorização do escritor na nossa sociedade? Só especulações. Há uns vinte anos, eu participei de uma série de palestras nas bibliotecas pública de São Paulo, junto com a Lygia Fagundes Telles, e ela começou sua fala dizendo: “O escritor é um animal em extinção”. Ótimo, não é? Mas não creio, no fundo, que sejamos como o mico-leão, embora sinta que somos assim tratados por uma sociedade (ou por sua suposta elite) que sistematicamente infantiliza ou neutraliza a vida e a obra de um artista, falando em termos gerais. Ao longo da história, um bom exemplo disso é a domesticação, a pasteurização que se fez e se faz de Machado de Assis. Ele é fundamental, mas o discurso que a intelectualidade faz para que ele seja aceito só serve para suavizar sua força e mesmo seu pessimismo (precisamos proteger nossas crianças) ou seu poder devastador (que é o da grande literatura), que é o de nos perturbar. Basta ler Memórias póstumas, ou contos como O enfermeiro, O espelho ou A causa secreta (que acabei de incluir numa antologia de horror a sair pela Nova Fronteira) para entender o que estou tentando dizer. Por outro lado, o próprio escritor tem lá sua parte de culpa por essa desvalorização do ofício. É comum o escritor reclamar da vida, das editoras, da repercussão da sua própria obra, que ninguém lê no Brasil, etc. (eu mesmo às vezes caio nesta furada), mas o escritor continua fazendo a sua parte, isto é, continua se aprimorando e produzindo apesar de tudo? Ele ocupa o espaço que é seu e que acabou ocupado por burocratas da literatura e da cultura, por ensaístas e professores, por grupinhos e grupelhos, pela própria vida literária? Alguns sim, a maioria não. Finalmente, o que a gente chamava de “sistema” nos anos 60 ou 70 está pouco ligando para a literatura como criação. No máximo, bate palmas para as lantejoulas, para a literatura como status. Em outras palavras, louva o literato, ignora o escritor. Qual é a proposta literária de um ministério da cultura que não tem sequer um projeto cultural? Estamos vendo agora mesmo, às vésperas do “ano do Brasil”, na França, a crônica de um fracasso anunciado. Vai ter muito baião, festa de São João (com o próprio ministro auto-escalado para cantar), literatura de cordel e absolutamente nada da literatura brasileira atual ou passada. O Ministério da Cultura deveria se chamar Ministério do Folclore.
À página 41 de O país…, lê-se: “O povo sempre sofre, não é mesmo? Quando não reage e quando reage”. De que mais sofre o povo brasileiro e como aplacar um pouco este sofrimento?
Eu venho da esquerda — fui preso aos vinte anos, conheci o exílio e nunca votei na direita. Mas costumo dizer brincando, que hoje, entre a esquerda e a direita, optei pela alienação, pelo menos pela alienação criativa, como Kafka, Borges, Clarice. Nos meus vinte anos, ouvi Guimarães Rosa dizer, falando dessas coisas, “não adianta, a solução é individual”. Fiquei indignado, e pensei comigo mesmo que ele era um “alienado”. Hoje, acho que ele tinha razão. A tua pergunta não vai arrancar de mim um discurso “participante”. O povo brasileiro sofre porque não nasceu numa casa com livros, aliás às vezes nem nasceu nem mora numa casa; porque não lhe é oferecida uma educação — ele entra analfabeto na escola e sai de lá semi-analfabeto ou analfabeto funcional. Aí, as estatísticas dizem que esse problema melhorou — numericamente — e pronto, ninguém mais fala no assunto. Então, quando ele cresce, não tem, claro, classificação para empregos e sobrevive como pode. A culpa é dele? Vou dar um exemplo que eu presenciei: anos atrás convivi com a malandragem/bandidagem de Copacabana, atrás de vivência para um livro (e que só resultou em alguns contos de Nem todo canário é belga). Depois de ter adquirido confiança, um jovem traficante-do-asfalto, muito vivo e articulado, se aproximou de mim e me pediu, em segredo, que eu o alfabetizasse, porque ele tinha só o quarto ano primário. E não tinha se alfabetizado? — perguntei, surpreso. Ele: — Não, a professora ia me passando de ano sem eu saber nada. Pano rápido.
Entre as tantas referências literárias de seu novo romance, lê-se à página 47: “quem ia parar e escutar um poeta embriagado”. O livro todo demonstra uma constante preocupação com a poesia. Como o senhor avalia o panorama poético atual brasileiro? Em quem podemos apostar e a quem falam os poetas e escritores?
Eu falo em poesia num sentido mais amplo, e básico, da “poiesis” grega, isto é, poesia como criação. “Poesia”, então, é um poderoso e ignorado ramo de conhecimento, e de autoconhecimento, tão importante ou mais do que os ramos de conhecimento aceitos e consagrados, como a ciência, a filosofia, etc. Freud não inventou, apenas sistematizou e estudou o complexo de Édipo, que século e séculos antes havia sido percebido e mostrado por Sófocles, um poeta-dramaturgo. É nesse sentido que falo. Já na adolescência, eu li muita poesia — acho até hoje que, para ser um bom prosador, é preciso se ler muita poesia — o que de certa forma me marcou. Li os poetas românticos brasileiros todos, li Quintana, os simbolistas, Sá Carneiro e Pessoa, e posso dizer que ninguém lê impunemente aos quinze anos poetas tão positiva e negativamente devastadores como esses dois. Eles fizeram a minha cabeça. Mas com o tempo a prosa (que também faz parte da “poieses”) me ocupou. Não poderia, de uma forma isenta e com conhecimento de causa, discursar sobre os poetas contemporâneos. Leio Jorge de Lima (para mim, em certo sentido, maior do que Drummond), os maranhenses Gullar e Nauro Machado, o peruano César Vallejo, Borges, franceses como Rimbaud (sim, ele é muito contemporâneo), Max Jacob, Henri Michaux, os italianos Ungaretti, Quasímodo, os espanhóis Pedro Salinas, Miguel Hernandez, Garcia Lorca. Mais Auden, Elliot, enfim, seria uma lista grande. Mas desconfio que você queira que eu fale sobre os novos brasileiros. Não quero cometer injustiças, porque não conheço a fundo. Mas existem boas surpresas, alguns mais conhecidos, como Carpinejar, e outros nem tanto como a carioca Angela de Campos ou o pernambucano Magela Collares. A chamada Geração Mimeógrafo foi minha contemporânea, o Cacaso, por exemplo, fez Filosofia comigo e era meu amigo. Mas acho que eles foram mais importantes abrindo caminho de que deixando uma poesia sólida e luminosa. Da mesma forma os poetas que fazem barulho hoje. Isso é normal, e positivo. Mas a verdadeira poesia, além das ondas e dos grupos, é sempre pouca e rara, em qualquer época.
Durante a leitura de O país…, vislumbra-se um país enfermo, onde as coisas não acontecem, ou acontecem de maneira torta. Quais as enfermidades mais urgentes a serem tratadas no Brasil?
Dizem que uma pessoa que não sonha é uma pessoa doente. Eu disse num depoimento na época da Ditadura que um país que não sonha é um país doente. E um país sonha através de suas artes, todas elas. E às vezes somos obrigados a sonhar contra o país, que age aqui como superego, ou pelo menos como aquele mecanismo que todo mundo tem, que faz com que a gente se esqueça do próprio sonho assim que acorda. A enfermidade mais urgente do país — volto à velha tecla — é a falta de um sistema educacional sólido, nacional e universal. (Não seria preciso inventar muito: bastaria voltar, adaptando, ao que existiu no Brasil com as reformas de Anísio Teixeira. Minha formação deve muito à excelente escola pública que me formou no Rio Grande, nos anos 50/60.) Em conseqüência — os sintomas da doença — temos a desvalorização da cultura, a miséria, a violência, etc. Uma vez, Autran Dourado me disse uma frase que ficou meio misteriosa na minha cabeça durante muito tempo: “No Brasil, os viadutos e os prédios caem porque os engenheiros não lêem literatura”. A explicação que acabei encontrando foi a seguinte: se eles lessem romance, poesia, teriam uma formação mais humanista, e não errariam nos cálculos, não poriam mais areia no cimento para os incorporadores ganharem dinheiro, portanto. Da mesma forma, com os políticos: se eles lessem mais literatura não seriam cúmplices de tanta corrupção, não prometeriam tanto em seus discursos, que aliás não teriam tantos erros de português. Parodiando Autran, então: no Brasil, as pessoas morrem de fome, violência e miséria, porque os políticos são despreparados. Sei que pela lógica deveria dizer o contrário: porque existe analfabetismo, miséria, etc, os políticos de que dispomos são despreparados. E a política então vira clientelismo, populismo, assistencialismo. E o povo continua na mesma. Sem livros, porque, quando o povo começar a ler, ele com certeza vai mudar os políticos. O povo é a vítima, a elite seu algoz. Isso está parecendo discurso. Prefiro voltar à literatura.
Apesar de o pessimismo — iluminado por uma sutil ironia — sobressair-se em O país…, a esperança está muito presente. Quais esperanças te movem?
Bem, pela ordem das perguntas, não deu para voltar à literatura. Pessimismo e otimismo são categorias que nos servem para avaliar as pessoas no cotidiano. Um dos jornalistas que resenhou O país… diz que o livro seria “pessimista, embora divertido”. Pelo menos ele reconhece que é “divertido”, ainda que eu prefira considerá-lo um romance de humor. Quanto ao pessimismo…. a primeira versão do livro, de fato, foi escrita numa época bastante sombria da minha vida pessoal, e dela deve ter ficado alguma coisa. Isso por um lado. Por outro, será que alguém poderia me citar um grande livro de ficção que seja otimista, no sentido aparente ou ralo da palavra? Sem querer, quem me chama de pessimista me coloca entre os grandes mestres do passado, de Voltaire, passando por Swift, Machado, Tchekhov, Kafka e assim por diante. É claro que não mereço tanto. Não creio (pelo menos entre os que eu conheço) que exista algum clássico que seja otimista. Não é o otimismo o último reduto ou refúgio da subliteratura, hoje confinado aos livros de auto-ajuda? Transcrevo um e-mail do próprio João do Silêncio de algum lugar do interior da Europa: “Por favor, não me entendam tão depressa assim. E sobretudo não me levem tão a sério assim. Ou melhor, um livro de humor precisa ser levado a sério, mas de uma outra maneira”.
O poder Judiciário e os políticos, segundo o seu romance, “viviam muito bem, obrigado”. Esta breve ironia tem amplitudes gigantescas no cenário nacional. O senhor considera a ineficiência, morosidade e corrupção do Judiciário, atreladas às jogatinas políticas, males entranhados e que já fazem parte da “cultura” brasileira?
Não é novidade. Os economistas chamam de (falta de) distribuição de renda, os sociólogos de sociedade perversa, os politicólogos de estamentos ou classes sociais. O homem comum, entre os quais me incluo, chama isso tudo de injustiça ou pouca vergonha. De qualquer maneira que se o diga (gostou do pronome bem colocado?) é o interminável discurso das desigualdades sociais, da desigualdade dos homens e entre os homens. A verdade é que enquanto existir essa desigualdade não haverá democracia de verdade. E continua aquela velha história de que o país vai bem, mas o povo vai mal. A elite se diverte, e o povo… também, que agora é a época do carnaval. Sim, carnaval, corrupção e incompetência da elite os males do Brasil são. E tudo fica mais complicado (vai me chamar de pessimista de novo?), porque não adianta fazer revolução sem que cada um de nós faça a sua parte, ou seja, faça uma auto-revolução. E aí a “poiesis”, a literatura, tem um papel a cumprir em cada um de nós, leitores e escritores. E é este o sentido mais profundo da frase famosa de Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”.
No país… é também um romance político, no sentido da crítica, da discussão, do questionamento de mecanismos que regem o nosso dia-a-dia, seja no Brasil ou no Burundi. Como o senhor avalia estes primeiros anos do governo Lula?
Obrigado por entender “romance político” de uma forma mais ampla, caso contrário eu recusaria a classificação. A maioria dos romances políticos que li, no sentido mais restrito, são muito mais políticos do que romances. Neste ponto aprendi com Mário Quintana: “Os operários são duplamente explorados: pelos patrões e pelos poetas participantes”. Aprendi isso também com meu irmão mais velho Dionélio Machado, que fez política nas ruas e mesmo dentro da prisão do Estado Novo, “mas nunca na literatura”. Dá pra ver, portanto, que sua provocação política não me é apropriada. Não faço política, sou optativamente um “alienado”, logo tudo o que eu disser a respeito não terá importância. Será só opinião de quem foi provocado e não soube resistir ou driblar a provocação. Mas vamos lá. A impressão que dá é a de que Lula está vivendo os melhores anos de sua vida. Nada contra, embora haja o perigo do deslumbramento e de ser manobrado por interesses maiores ou mais fortes. Acho também que o problema não é o Lula, mas o que o cerca. Os chamados quadros do PT, que têm um nível bom de política na prática, mas um nível menos do que razoável de preparo, portanto de discernimento. Eles parecem ter um plano nacional de tomada do poder, com a devida continuidade, mas não dão mostras de ter um planejamento nacional. Na área de cultura, por exemplo, poucos podem ter a nossa admiração, talvez uma Marilene Chauí, que, aliás, não está no governo. A escolha de Gil para o ministério e sua falta total de política para sua/nossa área foi um erro que contou com o silêncio da imprensa e da intelectualidade. Eu, por exemplo, nunca sei quando ele está em Brasília ou em algum lugar da Bahia ou do mundo dando seus shows. Por muito menos, Tchekhov, que era médico, ao assumir um cargo no interior da Rússia para debelar uma epidemia qualquer, por escolha própria recusou-se a escrever uma linha que fosse da sua obra de ficção. Entre os dois exemplos, fico com Tchekhov.
O Brasil destaca-se pelo baixíssimo índice de leitura. Na média, não chegamos a dois livros per capita ao ano, sendo que boa parte da população não se atreve a abrir um livro em 12 meses. Uma vergonha. O governo agora ensaia uma tentativa de implantar uma sólida política voltada ao livro e à leitura. O que pode ser feito e de que maneira os escritores devem colaborar para o aumento do índice de leitura no país?
A imensa maioria não lê nem um livro por ano. É assim que as estatísticas funcionam: elas dão dois livros/ano per capita, porque existe uma minoria que consome 50, 80 ou mais livros/ano. Sem educação básica, sem alfabetização verdadeira, sem incentivo de pais, das nossas elites (quantos livros, já nem digo de literatura, nosso presidente leu nos últimos anos?) e da própria sociedade, como querer que o brasileiro leia? É mais fácil ligar a televisão e sanar a necessidade de sonho que todo mundo tem assistindo à novela das oito, ou ficar vendo um tal de João Kleber provocar a discórdia e mesmo a violência entre maridos e mulheres, pais e filhos, isso sem o menor (pasmem!) sinal de embrulho no estômago. Então tem muita gente interessada em que tudo continue assim, sem que ninguém leia livro algum. É duro, mas é verdade: tem muita gente que ganha dinheiro com o analfabetismo alheio. Claro que o governo dá sinais de preocupação em relação à leitura, mas só apresenta planos e projetos diversos, e em vários órgãos, sem uma unidade de planejamento sério a ser posto em prática. O que existe, então, são iniciativas isoladas, louváveis até — como o Ribeirão das Letras, de Ribeirão Preto, ou a idéia de ampliação de bibliotecas —, mas tudo acaba enfraquecido porque já vem dividido. Louvável, sim, mas não resolve o problema. Voltamos à falta de um sistema educativo consistente, não é mesmo? Como os escritores devem colaborar, não sou eu quem vai dizer. Mas eles não são sequer chamados pelo governo para aumentar o gosto e a prática de leitura pelo país. Em primeiro lugar, devo, preciso continuar escrevendo e publicando. Além disso não me recuso, mesmo de graça (quando em qualquer lugar civilizado seria pago), a falar sobre literatura em qualquer lugar para onde me chamem. Já estive em Belém e na Baixada Fluminense, no Sudeste e no Nordeste. Mais do que isso seria pedir demais a um pobre leitor privilegiado.
Ao eleger o descompasso dos relógios em Aldara para nortear o romance, há uma clara crítica ao domínio da máquina sobre o homem. Esta imposição moderna (ou pós-moderna, digamos) pelo novo, pelo tecnológico, pelas comodidades que a máquina oferece, incomoda-o, pois o personagem que deambula pelo deserto retorna a uma vida primitiva, ao lado dos ianomâmis?
Lacan diz que o que uma pessoa fala não é a mesma coisa do que a outra pessoa escuta. Que só existe comunicação pelo viés (para usar um clichê intelectual) da incompreensão. Confesso que não pensei em criticar o domínio da máquina sobre o homem mas, se você percebeu assim, é possível que a idéia esteja lá, embutida. Como o que eu faço é ficção, posso me dar ao luxo de liberdades poéticas, e contrapor uma possível (e implausível, quem sabe) pureza da vida primitiva ao mundo em que vivemos, que Joyce chamou de Sifilização. É quase uma brincadeira em cima dos românticos. Mas é claro que, se o livro fosse ensaio e não ficção, não faria sentido propor uma espécie de volta ao Bom Selvagem de Rousseau. Como é ficção, nem estou querendo propor nada, muito menos “fazer sentido”. Quero me expressar, e só isso. No romance, trata-se de uma saída poética e utópica (o que nunca é sinônimo de impossível para o artista) para o sufoco globalizado. Eu talvez seja um sonhador, o que contrasta com o pessimismo que me atribuem. Ou um pessimista-otimista, um desesperançado cheio de esperanças. Como me disse um malandro uma vez: não quero saber quem pintou a zebra, quero saber onde está a tinta que sobrou.
Na orelha de O país…, Fabrício Carpinejar informa que o senhor, ao entregar-lhe o livro, disse: “é o mais genial ou o mais idiota que fiz”. Por que esta extremista afirmação?
Um desabafo sem importância dito em off, que o poeta resolveu registrar. Os poetas são assim mesmo, poeticamente indiscretos. Essa talvez seja uma reação que interesse menos a esta entrevista e mais às psicologias da vida. Quando eu termino um trabalho longo, no qual me atirei durante anos, com a preocupação de escrever com toda a liberdade, jogando fora o que eu tinha aprendido antes nos manuais da literatura, na hora do resultado final — porque eu sou o meu primeiro leitor — eu mesmo fico sem saber da qualidade do resultado. É como fazer acrobacias no trapézio sem rede em baixo. Aconteceu com O equilibrista do arame farpado, que levei quinze anos (e quinze versões) para dá-lo como pronto e, com os originais nas mãos, espantado como leitor, não sabia o que o livro se tornara e acabei deixando mais cinco anos os originais na gaveta. Quando consegui publicá-lo, fui surpreendido com o fato de ele ganhar três ou quatro prêmios de romance do ano. Aí mesmo foi que não entendi mais nada. Só tive a sensação de que valeu a pena. Mas aí entrou uma maldição em relação a ele, que aqui conto pela primeira vez. O livro vendeu apenas 1.500 exemplares. Os outros 1.500 foram destruídos num depósito da editora em São Paulo, devido a uma enchente. Pelo menos foi a explicação que me deram. E até hoje O equilibrista não foi reeditado. Em suma, dei sorte e dei azar: o livro foi muito premiado e pouco lido.
A sua literatura sempre se posicionou como desafiadora ao leitor, inquieta, repleta de alternativas, de interrogações, mesmo quando lemos à pagina 132 de O equilibrista no arame farpado que: “é melhor elaborar respostas do que fazer perguntas”. Discordo. A linguagem e a forma também são constantes preocupações — ou parecem ser. Qual a sua opinião sobre a nova literatura brasileira, muito ligada a um neo-realismo, com uma linguagem muito similar entre si, sem aventurar-se a grandes vôos?
Mais uma pergunta para me comprometer. Mas dizer que minha literatura desafia o leitor é um elogio, acho que a mim e ao leitor. Da mesma forma que não quero escrever um livro que já foi escrito (como já dizia Cláudio Crasso, personagem de O desatronauta, que escrevi nos meus 20 anos), eu gostaria que o leitor se sentisse ao mesmo tempo seduzido e desafiado por um livro que ele não leu antes. E aí a gente entra na idéia de forma e linguagem. Nos meus dias mais radicais, quando baixa o espírito de João do Silêncio, eu concordo com Vergílio Ferreira, que escreveu no seu monumental diário Contra-Corrente este desabafo: “Não agüento mais ler romances que só contam uma história”. A citação não é literal. Como leitor, leio de tudo. Como escritor, me interesso, sim, pelo romance como forma e linguagem. Todo o resto é secundário. Forma nada mais é do que o (verdadeiro) conteúdo vindo à tona. E linguagem, bem, é a linha que costura tudo, até mesmo a ação, ou a falta de ação. Não existe romance sem forma e linguagem, sejam elas tradicionais ou não. Mas existem romances sem “conteúdos” explícitos, e este me parece ser o grande desafio do escritor, é o que o diferencia do contador de história. Podemos resumir a ação de Ulisses em poucas linhas, mas perderíamos assim o melhor do livro que é a explosão de linguagem de um personagem em apenas 24 horas de sua vida. Gombrowicz e tantos outros também seriam bons exemplos. Virginia Woolf, aliás, diz através de um personagem que seu sonho era escrever um romance sobre o silêncio. E é nesse sentido que falo: a música é feita de notas musicais, mas será que elas existiriam sem os intervalos (o silêncio) entre uma nota e outra ou entre as frases musicais? É complicado falar sobre essas coisas, por duas razões: primeiro, porque o assunto é complicado mesmo, algo teórico demais; depois porque a tradição do leitor brasileiro é marcantemente conteudística. Ele gosta de Jorge Amado, mas não consegue ler Guimarães Rosa, por exemplo. Ou gosta de Agatha Christie e não gosta de Clarice Lispector. Como leitor, eu leio um e outro, mas como escritor, estou (ou está, o João do Silêncio) mais interessado em escrever do que em contar . Bem, mas a parte mais provocativa da sua pergunta é esta, sobre a nova literatura brasileira. Sinceramente acho cedo para dizer alguma coisa, além do mais estou em fase de não julgar, criticar menos e produzir mais. Deles, li poucos livros e muitas entrevistas. A idéia de geração é boa como estratégia, de marketing inclusive, mas furada literariamente, porque agrega escritores muito distintos. Às vezes, alguns dão a impressão de acharem que a ficção começou com Kerouac, Bukowski ou John Fante. Há ainda outros que, como você diz, fazem uma literatura meio neo-neo-realista, ou um neo-velho-naturalismo, e que se filiam àquela visão “conteudística” de que falei há pouco. No entanto, não estou querendo ditar regras, apenas dar minha opinião, e depois nada impede que esses novos, evoluindo naquilo que escrevem, façam uma correção de vôo e encontrem realmente um caminho novo na literatura. Nem saberia citar nomes. Mas para não dizer que tirei o corpo fora, cito dois que li: gostei da sutileza de Adriana Lisboa e da aspereza e força ficcional de Joca Reines Terron, principalmente em Curva de rio sujo. Tenho certeza de que esses dois, e outros que não me ocorrem ou que desconheço, têm muita colaboração a dar à nossa literatura. É questão de tempo e amadurecimento. Eles ainda não têm horas de vôo, mas estão prontinhos para, daqui a pouco, levantar vôo. Boa viagem.
Recentemente, o senhor organizou várias antologias de contos — como, por exemplo, As 100 melhores histórias eróticas da literatura universal, 13 dos melhores contos de vampiros, entre outros. Toda antologia é, por sua natureza, excludente e limitada. Qual a importância das antologias para a literatura e na formação de novos leitores, que podem navegar por um caminho já delineado pelo organizador?
Esta é uma longa história. Não é recente. Aos vinte anos, eu comecei fazendo uma Antologia do conto gaúcho. Até hoje são quase vinte, acredito. As mais recentes, dos 100 melhores…, pela Ediouro, são as mais vendidas e conseqüentemente as mais conhecidas. Aliás, é tanta a aceitação destas antologias, particularmente de Os cem melhores contos de humor, que vende sem parar há quatro anos consecutivos, que me atrevo a chamar a atenção para o papel que elas desempenham na formação e na aquisição de novos leitores. Se formos ver isso em números, minhas antologias já atingiram mais de 500 mil leitores. Parece mentira. Acho que elas fazem mais pela leitura que boa parte da política oficial a este respeito. Mas a pergunta que todos me fazem — e que você não fez — como é que você conseguiu, qual o critério, etc., eu respondo que é fácil. Basta ter lido e escrito contos por mais de quarenta anos, e ter algum espírito crítico na hora da escolha.
O senhor é também autor de romances policiais. O país dos ponteiros desencontrados veste um disfarce de romance policial. Há uma velha — e um tanto inútil —discussão sobre o valor literário da literatura policial. O Brasil não tem tradição neste gênero, apesar de termos aqui bons escritores como Joaquim Nogueira e Luiz Alfredo Garcia-Roza, dedicando-se exclusivamente a tramas policialescas. O que é preciso para desenvolver uma sólida literatura policial brasileira, já que o mercado dá claras mostras de ter um bom público leitor deste gênero?
Não há um disfarce de policial no País dos ponteiros desencontrados: apenas brinco com o gênero na introdução, nas primeiras três ou quatro páginas, como se desse uma falsa pista ao leitor. Meus romances policiais eu fiz para me descontrair, geralmente depois de um trabalho de fôlego. Eles têm um componente, para mim, de desafio e de diversão (também pra mim). Quanto à velha e surrada questão se o gênero tem ou não valor literário, eu acho que matei a charada nos anos 70 quando Arthur C. Clark esteve no Rio, a convite do meu amigo José Sanz, o Sanzfiction. Na entrevista coletiva, lá veio a inevitável pergunta: “O senhor não acha que noventa por cento do que se escreve como ficção científica não tem valor literário?” E Clark, rápido no gatilho: “Acho. Da mesma forma que noventa por cento do que se escreve como literatura propriamente dita também não tem valor literário”. Matou a pau. Minha resposta é a partir dai: não existe gênero menor, existe escritores bons e outros nem tanto. Recebo muito livro de poesia — e a poesia é uma espécie de gênero nobre, não é mesmo? — e mais de noventa por cento do que recebo tem um valor literário duvidoso. Quanto à literatura policial brasileira, ela está apenas começando. Acho que tem muito futuro, sim. Mas ela já existe no conto há pelo menos cem anos: é o que minha antologia Crime feito em casa — conto policial brasileiro, a sair na próxima Bienal carioca, pela Record, pretende mostrar.
Quais autores compõem a sua biblioteca afetiva?
Acho que não haveria espaço para responder. Vamos por partes. Primeiro aqueles que da minha juventude, lá em Porto Alegre, em Petrópolis e em Cincinnati, EUA, onde conclui o secundário. A maioria dos poetas que citei em pergunta anterior. E: Simões Lopes Neto, José Lins do Rego, José de Alencar, Machado de Assis, Albert Camus, os livros de Tarzan e a coleção Terramarear, Kafka, A lua vem da Ásia do Campos de Carvalho (quando lançado), A letra escarlate de Hawthorne, Catcher on the rye de Salinger, Camilo Castelo Branco e Conan Doyle. Com o tempo foram chegando; A náusea de Sartre, Proust, A montanha mágica de Thomas Mann, The ambassadors de Henry James, todo Joyce, inclusive os poemas, que eu traduzi e permanecem inéditos, Padre Antônio Viera, o “príncipe da língua portuguesa” (Pessoa), Oswald e Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado, Graciliano, Dostoievski, Faulkner, Flaubert, Eça de Queirós, Stendhal, os latino-americanos menos óbvios, como Felisberto Hernandez, Onetti, Rulfo, Cabrera Infante (Três tristes tigres) e outros que com certeza esqueci de mencionar e só vou me lembrar depois da entrevista publicada
Como é o seu processo criativo? Como surgiu a idéia e como se deu a condução de escrita de O país dos ponteiros desencontrados?
Caótico. Evito ao máximo escrever, fujo mesmo de escrever até que numa hora a coisa sai pelo ladrão, em fluxos. Escrevo por necessidade, não por cálculo ou planejamento. Escrevo por obsessão, por compulsão. Escrevo porque estou triste e escrevo porque estou alegre. Porque quero ser sério e porque quero brincar. Gosto muito de uma frase de Pascal Quignard: “Escrever é errar” — errar de errância, de andar a esmo. É assim que procuro minha liberdade. Minha ou do João do Silêncio?