Gonçalo M. Tavares é reconhecido por seu texto repleto de cruezas e nuances da vida real, do cotidiano comum e banal de qualquer pessoa. Por trás dessa artimanha literária, o escritor esconde um interessante arranjo de criação literária, que combina o isolamento em um “bunker do século 19” e o mergulho por completo na multidão e na “confusão da cidade”. Em entrevista concedida ao Rascunho por e-mail, cujas respostas foram enviadas por meio de um aplicativo de voz, Tavares explica um pouco do seu processo criativo, sua paixão pelos filmes do cineasta russo Andrei Tarkovski e do norte-americano John Ford, além de comentar sobre a sua relação com pessoas portadoras da Síndrome de Down.
Em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, o senhor trata de uma questão delicada — a trissomia 21. Mas em todo o livro, Hanna leva uma vida muito próxima ao que consideramos “normal”. O senhor acredita que o livro tem um caráter inclusivo?
A ficção — ou qualquer livro de ficção — não pretende ser didática, não pretende ser e não tem objetivos pedagógicos. A ficção é o mundo das liberdades, de uma liberdade que quer pensar e fazer coisas, que quer transformar a literatura em uma energia inteligente, em uma energia narrativa que não seja uma energia narrativa igual a das telenovelas, portanto quer uma energia narrativa completamente diferente do contar o puro de histórias. Essa energia narrativa não tem a ver, pelo menos no meu caso, com uma tentativa de fazer livros que sejam inclusivos. Hanna, com trissomia 21, é uma personagem como outra qualquer que está num mundo de ficção e que, de alguma maneira, vai agindo com Marius ou outra personagem e vai cruzando com outras pessoas, como se fosse uma personagem que tem essas características da síndrome de Down — como Marius tem as características de estar como quem foge ou como uma outra personagem que tem a característica de ter um olho muito vermelho. Enfim, são características e, portanto, é um livro de ficção que tenta que a sua força tenha a ver com a liberdade de colocar suas personagens em ação e em cruzamento.
Há anos o senhor trabalha com crianças portadoras de trissomia 21. Como esse convívio influenciou a escrita do livro?
Sim, realmente trabalho há vários anos com crianças portadoras de trissomia 21. Não trabalho diretamente, mas com futuros professores de crianças e adultos especiais. Dou aulas num mestrado de reabilitação psicomotora com futuros profissionais que vão trabalhar com crianças e adultos com diferentes tipos de problemas, tanto cognitivos como físicos. Essa experiência, de alguma maneira, realmente me marcou, porque sempre que tive um contato com pessoas com trissomia 21 foi um contato muito forte, emocionalmente. A síndrome de Down dá um conjunto de características emocionais que fazem com que, no meu caso, seja algo comovente — sempre. Não levo diretamente uma experiência de vida para o livro — o livro, como eu disse, realmente é de ficção — mas, como é evidente, a forma como eu olho, como tento entender fora da ficção e fora da literatura as pessoas com trissomia 21, de certa maneira, tem influência no que depois eu escrevo, mesmo escrevendo com total liberdade. O que me fascina também nas pessoas com síndrome de Down é a capacidade de contágio, uma espécie de calma e de bondade que se infiltra nas pessoas que estão à volta. Quando um menino com síndrome de Down está junto com outras crianças, as outras crianças deixam, quase que instintivamente, de ser tão competitivas, há como que um amansamento. As pessoas ficam mais mansas, mas mansas de uma forma bonita. Os meninos deixam de querem competir uns com os outros porque está, ali ao lado deles, alguém que é incapaz de competir, não tem capacidade de competir. Essa fragilidade transmite aos outros uma sensação de que não faz muito sentido a competição. É interessante pensarmos em dois meninos ditos “normais” que deixam de competir entre si. Isso é muito interessante, porque é um contágio que, de alguma maneira, caracteriza várias pessoas com Down. A ideia de contagiar a atmosfera com qualquer coisa me parece muito diferente do espírito funcional e, por vezes, agressivo e violento que existe no mundo, digamos, mais produtivo. As pessoas com síndrome de Down transmitem a ideia de que a eficácia e a eficiência, a produção — todas essas palavras do século 21 empresarial — são inúteis diante de qualquer coisa que não sabemos bem o que é, mas que sentimos que é mais forte e que tem a ver com a característica humana, talvez, ligada a uma espécie de ingenuidade bondosa, que me parece tocante.
Escrever para mim pressupõe uma fuga, um sítio escondido, de observação que permita uma digestão mental e afetiva da realidade.
Como em muitos dos seus livros, em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, vários personagens são engrenagens de um grande mecanismo, como um sistema social que não pode falhar. O senhor acredita que esse é o espírito de nossa época?
De certa maneira, Hanna consegue vencer o espírito da época, ou seja, a fragilidade vence a funcionalidade, a força. E é, talvez, uma história que relata um pouco isso, de que maneira a fragilidade consegue mexer no mundo funcional da época.
Hanna é uma menina que sempre diz sim, seja por curiosidade ou por não saber o que fazer — ao contrário de Kashine, de um dos contos de Matteo perdeu o emprego — e isso traça uma questão humana importante. O senhor criou propositalmente Hanna com esse caráter, sem os esboços animalescos que muitas vezes vemos em seus textos?
Eu diria que realmente o “sim” é a palavra-passe que marca a Hanna, o “sim” que tem a ver com disponibilidade, não é? Essa personagem, a Hanna, está disponível, está disponível para ser ajudada e, pode parecer pouco, mas estar disponível para ser ajudada, ter a consciência de sua fragilidade — e do fato de estar perdida à procura do pai — remete a uma dupla fragilidade. Todos nós quando estamos perdidos nos sentimos fracos, desprotegidos e, portanto, Hanna, ao estar perdida, é quase como se estivesse num ponto de imobilidade maior e, estranhamente, em vez de ser atacada por isso, em vez de ser ignorada por estar em um ponto vulnerável de grande intensidade, pelo contrário, alguém (no caso, Marius, um homem que claramente se percebe que não é um bondoso, um praticante da bondade) estranhamente para e vai tentar ajudá-la e, dessa maneira, une o seu destino — pelo menos naquele período curto do livro — a Hanna e vai tentar encontrar o pai de Hanna. A grande fragilidade de Hanna, ao ser o que é e estar perdida, transforma-se numa força, numa potência que obriga os outros a agir. Se alguém desse uma ordem, dizendo “ajuda-me” ou “ordeno que me ajudes”, não seria tão eficaz como Hanna que apenas pede ajuda com a sua fragilidade. Isso altamente marcou o livro. Muitas coisas acontecem por causa da fraqueza de Hanna. E essa ideia de que a fraqueza pode gerar novos acontecimentos é uma ideia que me parece importante. Nós estamos muito habituados a pensar que é a força que gera acontecimentos, que a força é que faz coisas, e o que vemos em muitos episódios do livro é que a fraqueza potencializa situações, que a fraqueza e a fragilidade de Hanna é que mudam muitas vezes as condições, por exemplo, do hotel, das pessoas do hotel e do comportamento das pessoas — que se alteram na presença de Hanna — que se tornam melhores. Há como que uma transformação quase que alquímica com os personagens que se cruzam com Hanna e, portanto, de alguma maneira, há um dueto — Hanna e Marius, um dueto estranho — que vai atravessando várias cidades e alterando a paisagem, como se ela fosse uma espécie de Moisés, que separa a água, que faz com que tudo se afaste para ela avançar. E Marius quase que vai de carona, com se Hanna abrisse o caminho e, apesar de ser um homem forte e com agressividade, Marius vem a ser um auxiliar, como se fosse apenas um ajudante e ela aquela que consegue abrir as portas. É uma relação paradoxal sobre quem é o mais forte e quem é o mais frágil entre Marius e Hanna. Isso está muito presente nas páginas que relatam a vertigem de Marius ao subir a escada, em que ele se sente ajudado e suportado por Hanna.
Em entrevistas, o senhor comentou sobre a velocidade de sua escrita: quanto mais lento é o processo mais consciente é o resultado, e quando o senhor escreve muito rápido, vorazmente, mais surpreendente e inesperado é o texto. Como aconteceu com Uma menina está perdida no seu século à procura do pai? Quando começou a escrever o livro, o senhor já sabia os caminhos que iria tomar?
A forma como escrevo, e como escrevi esse livro, segue um tom muito semelhante: eu basicamente sento-me e escrevo. Tenho, por vezes, três ou quatro apontamentos, três ou quatro notas e começo a escrever. O primeiro impulso de escrita é sempre muito rápido, como foi neste livro. Depois é lentíssima na revisão, deixo ficar durante meses e anos. Revejo e vou revendo, vou revendo. Portanto, a escrita sempre é uma mistura entre velocidade e, numa fase posterior, lentidão, revisão, corte, etc.
Short movies é uma colcha de retalhos de cenas do cotidiano, mas um cotidiano um tanto kafkiano. O senhor vê as rotinas diárias como um mergulho no absurdo ou seriam elas que nos salvam da estranheza?
Não vejo as situações de Short movies exatamente como absurdas. São situações extremas, situações que raramente existem, situações que estão no fim da linha, uma espécie de situações que mudam a vida das pessoas; mas não são absurdas, são realistas, realistas com grande intensidade, mas realistas. Felizmente a nossa realidade tem normalmente intensidades bem mais baixas. As vidas têm noventa e nove por cento de ações de intensidade baixa. E só assim aguentamos a realidade. As rotinas diárias estabilizam os dias. Não sentimos que um dia novo seja estranho para nós, como por exemplo, sentimos quando visitamos um país estrangeiro de que não falamos a língua. Um dia novo não nos é completamente estranho porque temos as rotinas e as necessidades básicas do corpo — comer, dormir, a higiene, etc. Cada dia novo não nos é estranho nem ameaçador porque acordamos com o nosso corpo, com o mesmo corpo, com as mesmas memórias, vontades e hábitos. O absurdo talvez seja a suspensão injustificada, a suspensão sem causa, dos hábitos.
No conto O importante, um adolescente se recusa a apagar um incêndio porque quer tirar uma fotografia em frente às chamas. Esse é um retrato fiel de nossos tempos e a cultura da selfie e do eu. Como explicar uma sociedade alicerçada em banalidades?
Veja estes fragmentos do Short movies não são bem como contos; são mesmo pequenos filmes, muitas vezes sem início nem fim, apenas com o meio. Há como que uma suspensão no fim e uma entrada já em movimento, no início. Nesse short movie que refere, a questão do fogo, da adoração e do fascínio que temos pelo espetáculo do fogo em movimento, talvez esteja em primeiro lugar, talvez seja o essencial. E esse fascínio pelo fogo é antiquíssimo, é ancestral. Talvez este short movie junte dois mundos bem afastados: o do fogo, antigo, e o da fotografia. Sobre a banalidade, Roland Barthes tem um livro ótimo — Mitologias, sobre coisas, produtos e acontecimentos do cotidiano. E é um grande livro. O banal tem uma grande potência, só depende da qualidade do nosso olhar sobre ele. É o nosso olhar e não aquilo que é olhado que importa. O que mais me preocupa atualmente é esta invasão da tecnologia, uma invasão artificial da curiosidade. Ficamos com mais ansiedade de curiosidade, mas não pelos grandes enigmas. Pelo mesquinho. As pessoas estão sempre na expectativa de receber uma mensagem, de receber algo do exterior que as resgate de uma vida em que não estão satisfeitos… e assim ficam totalmente disponíveis para serem interrompidas, que é aquilo que me parece mais grave. É sinal de uma grande fraqueza. De uma grande desistência em relação àquilo que estão a fazer. O que eu estou a fazer não é suficientemente importante, posso ser interrompido em qualquer altura. É isto que as pessoas dizem, sem o saber. Esta incapacidade para prolongar a concentração num só assunto durante muito tempo é talvez o que mais assusta em relação, por exemplo, à criatividade. Como surgirão as criações resultando de saltos, fragmentos e energia constantemente interrompida? Não sei… Hoje é mais difícil ser bom leitor, por exemplo, isso é muito evidente — o mundo da tecnologia está sempre a dizer: não leias, olha para mim, não leias — mas em compensação hoje é mais fácil fazer muitas outras coisas. No fundo, todas as épocas têm superfície e profundidade, e talvez a atual não seja nem melhor nem pior do que as anteriores.
Os textos de Short movies são profundamente visuais e a força está justamente na projeção de imagens criadas enquanto os lê. Na sua opinião, a imagem tem se tornado mais importante que a palavra?
A ideia seria ir um pouco contra a linguagem que pensa, que reflete. A linguagem de Short movies é uma linguagem que mostra, aliás, é quase um percurso oposto aos meus outros livros. A ideia era mostrar pequenos gestos: pegar uma chave, mover as mãos, o tremor das mãos e a expressão. Tentar que tudo — toda a violência e todo o drama — se coloque no visível. E nesse aspecto é importante não se valorizar a imagem, a multiplicação infinita das imagens que acontecem socialmente a cada minuto e a cada segundo. E, se calhar hoje, produzem-se mais imagens do que se produziram durante os séculos 12 ou 14, ou seja, há mais imagens novas por minuto do que as que se tinham feito num século. Portanto, isso leva a que haja uma desvalorização da imagem, mas as grandes imagens continuam a ser grandes imagens. E é possível ainda, no meio de bilhões de imagens, produzir grandes imagens — a grande imagem é aquela que nos faz pensar e nos faz refletir, nos faz quase tremer como faz querer mudar de vida. Não é apenas a poesia que pode nos fazer exigir mudar de vida, como dizia o Rimbaud, há também grandes imagens que podem nos exigir mudar de vida. Penso que é importante a literatura também mostrar que a imagem, a grande imagem, continua a fazer todo o sentido no século 21, apesar de sermos bombardeados por péssimas imagens. A grande imagem ainda consegue revolucionar o coração e a cabeça dos humanos, não é? O que me parece no Short movies é que não são contos: é um texto escrito que, à medida que se vai lendo, vai se transformando em imagem. E realmente o que me interessa é que as pessoas olhem para o texto como se olha para uma imagem: o texto desaparecer e nós vermos algo, e essa imagem que vemos quando termina — essa sucessão de imagens — continua espero eu, a mexer-se na cabeça de quem leu e, portanto, há a questão de novas imagens. Parece-me que a literatura tem muito a ver com isso. Como é que nós conseguimos provocar a imaginação? A palavra imagem vem de imaginação e imaginação é criarmos imagens privadas. É essa capacidade da mente humana de podermos ver, na nossa cabeça e no nosso interior, imagens que não estão à frente de nossos olhos. A imaginação é uma espécie de capacidade paralela à visão e uma capacidade que realmente tem a ver com todas as extraordinárias proezas que o homem é capaz de criação. Posso estar diante de uma mesa numa casa em Lisboa e, de repente, posso pôr na minha cabeça a imagem de um outro espaço. Posso pôr, de repente, na cabeça a imagem de uma cidade do Brasil, posso lembrar-me da imagem da Torre Eiffel e posso, inclusive, pensar em imagens de outros tempos. Essa possibilidade de me deslocar no espaço e no tempo, instantaneamente através de imagens autônomas, essa capacidade da imaginação é qualquer coisa de extraordinário. E, realmente, muitas vezes parece-me que a literatura consegue isso, consegue provocar nas cabeças das pessoas o instinto da imaginação, ou seja, o instinto de criar imagens privadas e autônomas, que fazem um percurso próprio, um percurso que muitas vezes, mais tarde, dá origem a novas ideias. A imaginação é a produção de imagens que leva as pessoas a pequenas invenções, a pequenas criações. E se literatura for um estímulo inicial — uma imagem inicial, um teste inicial — que ponha em movimento a imaginação do leitor, então, acho que se consegue algo de extraordinário.
Em Short movies, o senhor brinca muitas vezes com a noção do cinema — planos de câmera, zoom in, zoom out. Qual é a sua relação com a sétima arte?
Esse livro é escrito como se o narrador fosse uma câmera de filmar. Isso parece-me evidente e, de alguma maneira, era isso o que eu queria: substituir o olho orgânico, o olho do narrador humano pelo olho do narrador da máquina — como se o narrador fosse a lente. Nesse sentido, um narrador-mecânico, um narrador-máquina, um narrador-máquina fotográfica não faz juízo de valor — “essa personagem é boa, essa personagem é má” —, não faz reflexões psicológicas, apenas vê e mostra. E, de alguma maneira, o narrador é este, é uma máquina de filmar. A minha relação com a sétima arte é uma relação muito forte. Há períodos em que faz mais cinema, há períodos em que faz menos, mas há filmes e há cineastas que são para mim fundamentais. Tarkovski, por exemplo. Quando tenho dúvidas existenciais, vai Tarkovski quando quero acalmar, vai Tarkovski. É uma espécie de adoração visual, é um jogo entre o claro e o escuro, é um ritmo e um tempo que para mim são religiosos. É uma calma que me mostra o essencial e, portanto, ver Tarkovski, às vezes ver dez minutos de um filme, é quase como ter uma espécie de banho luminoso, um banho que depois me permite voltar ao mundo real de uma forma muito mais limpa e clara. Em termos de cinema, há dezenas de realizados e grandes filmes que marcam. Talvez, os dois que mais me comovem continuem a ser A palavra (1955), de Carl Theodor Dreyer, e How green was my valley (Como era verde meu vale, no Brasil, 1941), de John Ford. São dois filmes que me fazem chorar quase sempre, são muito comoventes. Realmente o cinema que me interessa, esse tipo de cinema, é um cinema que nos obriga a respirar de uma outra forma. O que nos é mostrado entra pelos olhos, vai pelo corpo e é como se impusesse um ritmo e uma respiração completamente distintos. É esse o tipo de cinema de que gosto. Não gosto do cinema que mantém o ritmo normal da realidade, gosto do cinema que muda a frequência cardíaca e respiratória do expectador. Um pouco como acontece com a literatura. Também acho que a literatura deve alterar as funções cardíaca e respiratória, deve alterar o funcionamento orgânico do leitor, e não apenas o funcionamento mental. Não alterar apenas as ideias, alterar o organismo. Acho que isso é um belo projeto.
Short movies, assim como vários de seus trabalhos, subverte gêneros literários. Para o senhor, o gênero funciona como um rótulo a atrapalhar o escritor, prendendo-o a algo que apenas o limita?
O Short movies me parece de um gênero literário que chamo de “cinema”. Para mim, os gêneros literários clássicos são limitadores, são castradores e são, muitas vezes, violentos em relação a quem escreve, ao criador. Eles são uma espécie de sistema de recessão que estão, por vezes, a convidar — quase que exigir — que quem escreve se coloque nesse sistema. Mas quem escreve é um emissor, emite a palavra. Quem escreve é o primeiro, é o começo. Quem lê recebe, quem estuda um livro, recebe. Quem tem a primeira palavra não deve estar subjugado, não deve ser obediente em relação a quem está a ouvir. A ideia de gênero literário é querer impor um sistema de obediência verbal a quem escreve e parece-me que isso é algo muito limitador. No meu caso, tento escrever a partir do alfabeto. Para mim, claramente, a escrita não tem por base os gêneros literários, tem por base o alfabeto e o alfabeto não tem gênero literário. O “a” não pertence à poesia, o “b” não pertence ao romance. Não há um “a” específico ou um “b” específico do ensaio, as letras estão disponíveis para entrar em qualquer mundo. Naturalmente, se pensarmos que o ensaio tem a ver com o pensamento, se pensarmos que o romance tem a ver com a narração e a poesia, eventualmente, com a beleza ou com uma sonoridade toma tamanha importância. Se pensarmos nessas lições básicas e grosseiras dos gêneros literários, para mim, é evidente não conceber uma escrita que não misture tudo isso, uma escrita que conte uma história e que pense, que seja sonoramente relevante é indispensável. Essas misturas são quase naturais e é artificial separarmos essas questões. Contar uma história e pensar não são inimigos, pelo contrário, são amigos fraternos. E só separamos isso se violentarmos a linguagem. Acho que muitas vezes os gêneros literários violentam a linguagem, retalham, separam e dizem “agora isso vai para aqui e aquilo vai para ali”, põem encaixes e, de certa maneira, atuam como um matador que corta a carne, separa a parte da coxa da parte do tronco. Gêneros literários funcionam como uma espécie de espaço de dissecação e a dissecação de cadáveres classifica, que quer fazer juízos. E a mim, a literatura e a criação estão em outro mundo, do mundo de não se saber o que está a fazer, de estarmos diante completamente de uma surpresa, de um enigma. Para mim escrever é estar diante de um enigma e de não se saber o que vai acontecer. Eu não sei o que vou escrever. Começo a escrever e depois há um tom que surge, e esse tom vai se desenrolando. E esse tom, esse ritmo, não têm a ver com os gêneros literários — muitas vezes é um ritmo quase musical, no sentido do desenvolvimento de uma energia, de uma intensidade. Quando termino de escrever um livro, tento olhar para aquela energia verbal, tento perceber que animal é aquele. Para mim a classificação animalesca dos textos interessa muito mais. Eu não penso “esse texto é um romance”, “esse texto é um ensaio” ou “o que é isso?”. Eu olho para o texto como se ele fosse um organismo, um animal e penso “que animal é esse?”, “esse animal está mais próximo de quais outros animais?”, “é da família de que outros animais?”, “é inimigo de que animais?”. Acho que a minha obra tem muito a ver com isso. Acho que são vários animais, muitas vezes inimigos uns dos outros. Se eu pensar no água cão cavalo cabeça (2005) ou no Short movies, são provavelmente livros inimigos de Jerusalém (2004) ou dos livros d’O bairro (2002-2010). Mas inimigos no sentido de que são outros animais e que têm características completamente diferentes, têm hábitos completamente diferentes. São animais-livros que têm rituais e rotinas completamente diferentes, objetivos completamente diferentes, portanto, são livros que, se fossem animais, seriam animais que se criaram alguns no mesmo espaço e, por isso, lutavam entre si. Outros queriam ir para lugares totalmente diferentes. De alguma maneira, acho que o que me interessa é pensar numa espécie de espaço selvagem onde vários animais diferentes são atirados para lá. Entendo que cada livro-livro seja um animal atirado para esse espaço selvagem e livre. É um animal diferente que vai marcando o seu território e definindo os seus objetivos. E espero que esse espaço livre e selvagem dos vários livros que vou escrevendo crie uma espécie de nova floresta literária que não dependa da classificação clássica dos gêneros literários.
Para mim escrever é estar diante de um enigma e de não se saber o que vai acontecer. Eu não sei o que vou escrever. Começo a escrever e depois há um tom que surge, e esse tom vai se desenrolando
Muitos dos relatos de Short movies falam sobre a morte ou o desejo de morrer de algum personagem. Eles seriam o reflexo do medo natural que o ser humano tem da morte?
A morte é o começo, não é o final. Acho que para qualquer ser humano sensato a morte é o começo. É a partir daí que se começa a pensar, a partir da sensação de mortalidade que se começa a definir o que se quer e a urgência do que se quer. Alguém que não tenha a morte como referência é um tonto, é um despistado. É a nossa morte que, de alguma maneira, dá sentido ao que nós fazemos. Se fôssemos imortais, tudo perderia o sentido, tudo perderia a potência e a sua força. Se fôssemos imortais e acontecesse uma coisa ou outra, completamente diferente, seríamos indiferentes porque sempre teríamos tempo para corrigir, fazer de novo. Enfim, a questão da mortalidade é a base da nossa vida. Sêneca e os estoicos falavam muito disso, de se pensar diariamente na morte e a nossa morte estar presente, não como uma ameaça, mas que, pelo contrário, é a nossa referência, a nossa base — e que permite decidirmos com clareza e lucidez e não com uma espécie de tontice de quem pensa muitas vezes que é imortal, que é um deus. Nesse aspecto, os gregos eram muito lúcidos. Para os gregos, os seres humanos eram classificados como “os mortais”, aqueles que vão morrer. Devemos assumir isso: nós somos aqueles vão morrer. Enquanto estou a responder a essa pergunta, eu sou aquele que vai morrer, mas por enquanto estou a responder a pergunta. Quando vejo a mim próprio como aquele que ainda não morreu — por isso pode estar a responder essa pergunta —, mudo por completo o tom, mudo por completo a intensidade do que faço e, de alguma maneira, seleciono o que faço. Nesse aspecto, a ideia da morte, que está muito presente nos textos — nesse Short movies e nos outros livros —, acho que está muito presente na minha vida de uma forma muito clara. Não se pode viver de costas para a nossa própria morte, é um absurdo. Isso sim é o grande absurdo. É interessante que a morte é hoje socialmente escondida. Tapa-se a morte, esconde-se a morte. O morto é colocado rapidamente em um espaço fechado, longe dos olhares das pessoas. Numa cidade contemporânea, felizmente, em parte porque mostra que há violência, um corpo morto em espaço público rapidamente é tirado daquele espaço, é tapado, ou seja, a ideia de tapar o morto tem a ver com pudor. É um pudor que, por um lado, é bonito mas, por outro, mostra como temos um horror à ideia da morte. Nesse aspecto, mudou por completo a presença da morte. No dia contemporâneo nada tem a ver com a presença da morte como no “dia clássico”, no “dia da Idade Média”. Hoje a ideia de que a morte deve ser tapada — não apenas no espaço público, mas tapada também no espaço privado — é tentar não falar sobre isso. Às vezes o “tapar” não é só por um plástico sobre o corpo morto, tapar é, por exemplo, não se falar da morte em casa e a morte ser um tema tabu. De certa maneira, é tapar também com um plástico as palavras ou as lembranças que remetem à morte. Isso é algo que realmente está em completo conflito com o dia normal das pessoas na Idade Média, em que morte, por exemplo, no Renascimento, estava muito presente nos próprios dias e nas casas. A ideia de uma cava era como um objeto do cotidiano, um objeto da casa, que era muito comum. Em determinada época, a cava era lembrar a morte — a nossa própria morte e a possibilidade da nossa própria morte a qualquer altura. A cava era um objeto da casa como, se calhar hoje, um cinzeiro ou um candeeiro são. Era um objeto muito semelhante a um mobiliário que hoje usamos e, portanto, transformava-se em uma coisa banal mas, ao mesmo tempo, uma coisa sempre presente. Nós, pelo contrário, entre o candeeiro, o cinzeiro e a caveira, cavamos um buraco enorme. São dois mundos completamente diferentes, nós não temos uma caveira em casa porque queremos que a morte continue tapada e, de alguma maneira, não nos lembremos dela e quase que de uma forma mística ou estranhamento não racional, tapamos a morte no espaço privado pensando que assim a morte não se lembra de nós. É como se fosse o resto de nossa irracionalidade que ainda existe no século 21.
Até certo ponto, nenhum dos textos possui “final feliz”. Em um mundo imerso em crises econômicas, conflitos armados e violência urbana é impossível criar um clássico “final feliz”?
A ideia de um clássico “final feliz” é estranha, porque é um pouco semelhante à ideia do “era uma vez”, de um começo muito definido. Acho que, mais que a questão do terminar no “feliz” ou no “infeliz”, a questão é: o que é esse “terminar”, o que é uma história terminada e quando é que uma história termina? É como nos contos clássicos, quando a princesa e o príncipe casam? Termina aí, ou termina quando, depois de casarem, a princesa e o príncipe têm três filhos? Ou será que podemos continuar a história de cada filho? Um filho, se calhar, morreu cedo, o outro filho teve uma vida muito feliz e o terceiro foi infeliz. Enfim, onde é que paramos? Paramos nos filhos, paramos nos netos? É interessante que as histórias dos príncipes e das princesas clássicos termina quando muito nos filhos, dizendo: “casaram e tiveram muitos filhos”. Podíamos perguntar: bem, por que termina aí a história, por que é que não continua? Os filhos, em primeiro lugar, foram felizes? E os filhos desses filhos foram felizes? Mesmo nessas histórias clássicas de fadas, de princesas e príncipes haveria uma altura que as coisas estariam infelizes, haveria uma tragédia. E, se as coisas parassem por aí, o final da história seria infeliz. O que eu quero dizer é que as histórias não têm final feliz ou infeliz, as histórias não têm final. Nós é que, artificialmente ou literariamente — ou em termos de cinema ou de teatro —, temos que dizer “a história termina aqui”. Ela acaba quando o pai morreu e o filho mudou de país ou quando os dois [príncipe e princesa] se casaram ou acaba quando foi cometido um crime ou acaba quando, de repente, um homem se apaixonou? A decisão de terminar uma história é uma decisão puramente artificial e exterior. As histórias não terminam, elas estão sempre ligadas. A nossa história, as histórias dos livros e dos filmes são histórias com ligações intermináveis. Por que não numa história seguir o amigo do personagem principal e saber o que aconteceu ao amigo? Por que a história tem a ver apenas com as personagens principais e com o desenvolvimento e desenlace das personagens secundárias? Se nós começarmos a olhar um bocado à distância, começamos a perceber que somos nós que, ao decidir o momento em que termina uma história, vamos decidir se teremos uma história feliz ou infeliz. As histórias por si só não são felizes ou infelizes. Elas são felizes e infelizes, felizes outra vez e infelizes outra vez, depois felizes e depois entediantes, intensas e monótonas. Quem escreve, quem cria uma narrativa, faz uma espécie de corte. Nós damos sempre o meio de qualquer coisa, não damos nem o começo e nem o final. Porque para dar o começo é exatamente a mesma coisa: onde é que começa uma história? Por que uma história tem que começar quando nasce uma personagem e não quando nasce o pai dessa personagem? Ou quando os pais dessa personagem se conheceram? Quando é que se começa? Mais uma vez: o começo é totalmente artificial. É interessante pensar que não se fala tanto em começos felizes ou infelizes. As histórias clássicas muitas vezes começam de uma forma feliz e terminam de uma forma feliz. Digamos que essas são as histórias mais boazinhas. A história clássica mais convencional começa com um estado mais ou menos tranquilo, há uma tragédia que rompe e essa tragédia, mais tarde, vai ser remendada e então se chega ao final feliz. Há uma espécie de lógica quase gráfica: agora felicidade; agora infelicidade. Em relação à vida e à arte, a vida e a arte são muito imprevisíveis e, portanto, de alguma maneira, nós colhemos o início e colhemos o final. E o grande poder da literatura é que nós podemos escolher o início e o final da história e de um acontecimento. Em relação a nossa vida, é algo que não escolhemos. O início é muito claro e nós não escolhemos o momento de nascer, quando nascer. No final, se tivermos uma morte natural, também não podemos escolher. A única hipótese, em relação a nossa própria vida, de escolha entre o início e o final, é realmente o suicídio, que é uma questão tão pensada em termos de filosofia. Realmente é o acontecimento, o ato único em que a pessoa tem uma decisão nesses dois pontos extremos. Mas, de alguma maneira, um escritor ou um artista quando constroem uma história têm essa possibilidade quase divina de poder escolher o início e o final. Todas as histórias, só para concluir, são um meio. Tudo o que é mostrado é sempre o meio, pode ser o mais intenso, mas é sempre um fragmento de vidas muito mais largas. Queria dizer ainda que não me parece que o século 21 tenha mais crise, mais violência, mais agressividade que os séculos anteriores.
Muitos dos homens e mulheres de Short movies parecem esperar Godot. Beckett é uma influência real?
Vejo a espera e o tédio como elementos essenciais da vida moderna, mas também da antiga. O tédio é uma energia potencialmente terrível mas também potencialmente extraordinária. Daí nascem a violência, a agressividade, mas também a criação, a invenção, o encontrar de algo que ainda não existia. O tédio e a espera são tempos sem atividades urgentes, diretas. E portanto há ali um espaço em branco que pode ser preenchido, que tem de ser preenchido se não quisermos enlouquecer. Quando se está à espera de alguém — quer seja no caso de um encontro profissional ou na espera de uma namorada — e se essa espera leva dias ou semanas, a cabeça tem de ser ocupada, se não suicidávamo-nos. A espera interminável, a espera arrastada por grandes períodos, obriga as pessoas a inventarem atividades físicas ou mentais para não se suicidaram. E, nesse aspecto, a espera é então essencial e criadora. Beckett e outras artistas da espera interessam-me por causa disso. Colocam o homem num lugar que não é o da atividade com um sentido, da atividade profissional. O homem não está a fazer coisas por essa ser a sua obrigação. O homem tem, sim, de fazer coisas, ou de pensar, para não ficar louco enquanto não chega aquilo que o vai eventualmente salvar. A espera é realmente um período de grande potência.
Em nenhum dos relatos há qualquer menção a um lugar específico. O senhor se sente um escritor português ou um escritor que está em Portugal?
Gosto da ideia de um narrador sem espaço, um narrador que não sabemos bem onde está, quem é e que não faz juízo de valor. E gosto também da ideia de narrador que olha para um sítio e não sabe ao certo qual é. Tenho vários livros muito distintos entre si. Uns estão localizados em um espaço e outros nem tanto. Há livros, Uma viagem à Índia, por exemplo, em que o protagonista parte de Lisboa — é uma viagem de Lisboa à Índia — e, portanto, Portugal e a língua portuguesa estão muitíssimos presentes. Escrevi um livro que se chama Breves notas sobre… Maria Gabriela Llansol (1931-2008) e Maria Filomena Molder, que são duas escritoras extraordinárias de Portugal. Portanto, tenho livros que são absolutamente centrados na cultura portuguesa. Uma viagem à Índia, por exemplo, é um livro que retoma o conceito de epopeia, a estrutura d’Os Lusíadas e, portanto, parte do osso, do grande esqueleto, da grande referência da língua portuguesa que é o livro de Camões. A cultura portuguesa, no meu caso, deu origem a muito trabalho, muitas coisas que fiz. É evidente que há outros livros que são situados em uma paisagem de Europa mais central e outros livros, digamos, não estão situados em lugar nenhum. Mas me sinto absolutamente um escritor português, um escritor que utiliza a língua portuguesa. Escrever em português não é apenas usar uma técnica, a língua não é um objeto, ou seja, a língua não é uma caneta ou um copo. Ela é uma coisa completamente diferente. A língua é algo pertence ao nosso corpo, ao nosso organismo. De alguma maneira, é a música que nos embalou quando ainda estávamos na barriga da mãe. Essa música é som que ainda não dávamos sentido, mas esse som que nos embalou era o som da língua portuguesa. Isso tem a ver com as sílabas, o tom das palavras, a acentuação. Tudo isso dá uma música que é essencial e com a qual eu nasci e, mesmo antes de nascer, com a qual convivi e, portanto, essa língua é qualquer coisa de tão relevante quanto a minha estrutura mental, a minha estrutura orgânica. A língua é qualquer coisa que entra mesmo no sangue. E para não falar na ligação entre a língua e o pensamento. Trabalhar numa língua, escrever numa língua, pensar numa língua é ver numa língua. A língua é um posto de observação, é um posto de vigia. A língua define uma relação ótica com o mundo. Eu vejo de determinada maneira porque eu uso determinada língua. Eu ouço de determinada maneira porque eu uso determinada língua. Eu toco nas coisas de uma determinada maneira porque eu uso determinada língua. No caso da língua materna, não é qualquer coisa que se assemelhe a um fato que a pessoa vai se tornar um. É o próprio corpo, a língua é o próprio corpo — não se distingue do corpo. Aliás, verbalmente nós sentimos isso: a língua são movimentos da própria língua orgânica, movimentos dos lábios, são movimentos de pequenos músculos. E não é por acaso que pessoas que aprendem determinada língua, desde o início, têm dificuldades em reproduzir sons de uma outra língua completamente distinta. Estão habituadas a fazer um determinado conjunto de movimentos para dizer determinadas palavras. A língua é um conjunto de movimentos inscritos logo na nascença — um conjunto de movimentos, um conjunto de pensamentos, uma forma de pensar. Para mim é inimaginável pensar em escrever noutra língua, imaginar pensar noutra língua, etc., etc.
O senhor trata com frequência em seus livros da questão hierárquica e acho que A máquina do Joseph Walser é o exemplo mais forte disso. O senhor sente-se incomodado com a necessidade de um nivelamento social?
Há vários dos meus livros que eu diria que são muito animalescos — animalesco no sentido de sobrevivência, da guerra, da luta, do conflito. A máquina do Joseph Walser e Um homem: Klaus Klump são exemplos disso, são livros de guerra, de ataque, de defesa, de alguém que ocupa o espaço que é o espaço do outro. E julgo que a literatura está muito centrada nisso e, no meu caso, interessa muito os casos extremos e não necessariamente os casos médios. Nos casos extremos há uma guerra. Há uma música do Leonard Cohen de que gosto muito, There is a war, — “there is a war between the rich and poor,/ a war between the man and the woman”. Há uma guerra instalada e, de alguma maneira, os livros não tratam das questões tranquilas, tratam das violências e conflitos. De qualquer maneira, é bom dizer que, em termos sociais, há algo que revolva cada vez mais: este abismo que se colava entre pobres e ricos. O que é assustador, falo pensando em alguns países como Portugal e muitos países da Europa, quer dizer, é assustador percebermos que, entre um trabalhador de base e alguém que trabalha como diretor, há uma diferença desordenada do que se recebe que, às vezes, é de 1 para 100, 1 para 50, 1 para 30. São números incrivelmente assustadores. Parece-me uma coisa simples, como determinar uma diferença entre o limite mais baixo e o limite mais alto assumir uma proporção, vamos imaginar, mesmo que fosse de 1 para 10, já era uma redução enorme das diferenças econômicas. É, para mim, um pouco assustador perceber que no século 21 pode haver empresas em que o trabalhador recebe 500 euros e uma pessoa na mesma empresa pode receber 20 mil euros. Estamos a falar de uma diferença brutal e é evidente que isso com o tempo vai cavando diferenças muito violentas em termos de condições de vida. É claro que meus livros não são sobre isso, mas é algo que me preocupa.
Durante quase uma década o senhor se dedicou vorazmente a ler e escrever e muitos de seus livros foram concebidos nesse período. Isso aconteceu entre seus 20 e 30 anos. Por que o senhor decidiu esperar tanto tempo para publicar os livros que estavam guardados
Para mim é muito claro que escrever e publicar são duas ações completamente distintas, aliás, não por acaso, em português temos dois verbos distintos: escrever e publicar. Escrever pressupõe um conjunto de ações, de movimentos e de qualidades que nada tem a ver como conjunto de movimentos, de ações e de qualidades necessárias para publicar. São duas ações completamente diferentes. Se fossem a mesma ação, teriam o mesmo verbo. Para escrever é necessário ter imaginação, ter uma relação com a língua diferente da relação normal de quem escreve tecnicamente. Escrever é uma relação invulgar. Entramos numa ângulo completamente distinto, como se fosse uma aterrissagem sobre a língua. Escrever é ter um conjunto de pressupostos acrescido de um conjunto de qualidades. Tem a ver com isso, com imaginar e com a linguagem. Publicar é outro mundo. Publicar é tornar público. Depois de tornar público, qualquer pessoa tem acesso a um livro. A mesma frase, o mesmo texto, pode ser lido por uma senhora de 80 anos muito religiosa ou por um jovem de 17 anos muito provocador. E a mesma frase vai ser lida e interpretada de forma totalmente distinta. Portanto, publicar tem a ver com tornar público, tornar acessível a qualquer pessoa. E, nesse particular, as qualidades para publicar bem, no sentido em que tem a ver com resistir à publicação, são completamente diferentes. Há pessoas que publicam muito cedo e são muito criticadas, não aguentam a pressão e deixam de publicar, deixam de escrever. Há pessoas que publicam e ganham muitos prêmios, ganham muitos elogios, mas também não aguentam a pressão e ficam a pensar que no segundo livro não vão conseguir fazer algo semelhante. Portanto, ficam com a pressão que os impede de continuar. E há a terceira hipótese que é alguém publicar um livro e ninguém ligar, ninguém dar atenção nenhuma. Ou seja, quando se publica há três hipóteses, três limites: serem muito criticados, receberem muitos elogios ou ninguém ligar. A questão basicamente é, para quem escreve, quem acha que a escrita vai fazer parte da sua vida, só deve publicar quando sente que, aconteça o que acontecer, que seja muito criticado ou muito elogiado ou que a reação seja de indiferença, ele vai continuar. Portanto, as qualidades necessárias para resistir à publicação tem a ver com uma certa distância em relação ao mundo. Então, é um outro mundo, completamente distinto. O perigo é realmente nós juntarmos o escrever e o publicar. A ideia de que só a publicação torna uma pessoa escritora é uma ideia perigosa, pensando até nas pessoas que começam agora, ser escritor é escrever. Há grandíssimos escritores que praticamente não publicaram em vida. Pensando no Pessoa, pensando no Kafka, a questão de publicar é uma questão totalmente secundária. Nesse aspecto, acho que separar ao máximo o escrever do publicar parece-me uma boa estratégia, no sentido de que a pessoa só publica quando sentir que está preparada para isso, que está preparada para tornar público. O critério para publicar não deve ser a pessoa sentir que tem um livro forte, não deve ser apenas isso. A pessoa só deve publicar quando tem um livro forte quando sentir que, aconteça o que acontecer, vai continuar o seu percurso. O que eu sinto é que há uma ansiedade pela publicação. Na própria internet há uma espécie de inclusão de todas as fases que classicamente tinham diferenças temporais. A pessoa escrevia, passado um tempo, revia o texto, depois publicava. Passado mais tempo vinham as reações. Portanto, estava aqui a questão do tempo no meio, que ia ensinando coisas a toda a gente. Agora, muitas vezes com essa pressão de publicar, quando escreve e publica na internet, logo se passa a ter a reação — alguém dizer “gostei muito” ou “não gostei”. Essa inclusão de movimentos de escrita, publicação e reação, que classicamente tinham um tempo no meio, é algo muito perigoso, porque é acelerar os mundos, como se fosse um único momento.
A literatura deve alterar as funções cardíaca e respiratória, deve alterar o funcionamento orgânico do leitor, e não apenas o funcionamento mental. Não alterar apenas as ideias, alterar o organismo. Acho que isso é um belo projeto.
O senhor escreve geralmente pela manhã, mas o seu processo de trabalho é fruto daquilo que chamou de um “esconderijo temporal”. Isso significa que a literatura só acontece quando o autor se liberta do “mundo real”?
Entre o mundo real e a escrita há uma circulação, claro, mas demasiada circulação, demasiado tráfego entre uma coisa e outra, perturba-me. Gosto de escrever num sítio com uma janela mas não com uma janela que dê para um espaço demasiado agitado ou ruidoso. Escrever para mim pressupõe uma fuga, um sítio escondido, de observação que permita uma digestão mental e afetiva da realidade. Escrever tentando repetir a realidade parece-me desnecessário — a vida por si só tem por base infinitas repetições — comer e comer e comer outra e outra vez e outra vez. E dormir outra vez, etc. Se retirarmos as repetições de hábitos, atividades corporais necessárias, etc. Se tirarmos isso ao dia, vemos que fica pouco. Para mim é indispensável escrever em um mundo isolado. Escrevo em uma espécie de bunker, que é como costumo chamar uma sala do século do 19, em que não há internet, em que desligo o telemóvel [celular] e, portanto estou, durante três ou quatro horas, isolado do mundo. Isso para mim é imprescindível. Criar mesmo um conjunto de defesas físicas — muros — e com as defesas eletrônicas. Escrevo num espaço que é um espaço do século 19, não há tecnologia absolutamente nenhuma. Sei que durante três ou quatro horas vou estar sozinho e não vou ser interrompido. De alguma maneira, corto essas ligações com o mundo exterior, com a realidade exterior. Quando vou de casa para o meu ateliê, o tal bunker do século 19, vou a pé, são quinze minutos a pé, e nesse período, saio de manhã, tento sequer olhar para as bancas de jornais. Tento não olhar para os títulos, quase como se fosse um zumbi que acordou e vai ali em uma espécie de túnel no meio da cidade, um túnel exterior, um túnel invisível. E vou como um zumbi durante esses dez minutos. Abro o bunker e tento me concentrar a escrever. No meu caso, a interferência do mundo exterior perturba. É evidente que estou atento à realidade, intervenho sempre que posso, mas acho que tem um outro mundo, que é um mundo interno, fechado, que não é um mundo documentário — ou da opinião em relação ao que vai acontecendo. Por outro lado, como é evidente, o real vai entrando e o que acontece no mundo — as notícias dos jornais —, de alguma maneira, vai entrando, de uma forma não-literal e não-evidente, nos textos. Mas pessoalmente tenho essa necessidade de me isolar do mundo para escrever. Durante muito tempo escrevi em cafés. Era um tempo de escrita completamente diferente, escrevi em cadernos, uma escrita que misturava escrita e design muitas vezes. E que tinha por base de fundo o barulho das pessoas. Mas hoje tento escrever nesse bunker do século 19, por vezes alternando com uma entrada no real, que tem a ver com a caminhada. Quase sempre, quando posso, caminho por uma ou duas horas no meio das pessoas, no meio da multidão, vendo os que andam por nós: as pessoas que param, as pessoas que discutem, namorados a ter comportamentos estranhos. Enfim, tento ter um período do dia em que mergulho no exterior, mergulho na cidade, na confusão da cidade. Tento, de alguma maneira, abastecer-me dessa energia e dos comportamentos humanos. Portanto, eu diria que hoje os meus dias balançam entre o isolamento — três ou quatro horas —, um isolamento completo do mundo, inclusive o eletrônico, e por outras vezes eu mergulho completamente na realidade, na energia das pessoas, que depois me dá uma energia para escrever.
Certa vez, o senhor comentou sobre como escrever a mão ou digitar no computador influenciam sua forma de pensar o que está criando. O que muda no resultado de uma obra literária dependendo do método como é concebida?
Eu diria que a inclinação da mão em relação ao papel interfere no que se escreve. E logo de imediato, escrever com uma única mão — como se escreve num caderno com caneta — e no computador, com duas mãos, é completamente diferente. São dois mundos. Não pode ser a mesma atividade — se uma é feita com uma mão e outra, com duas. É como lançar uma bola com uma ou duas mãos. O tipo de esforço é completamente distinto. Ou seja, não é apenas uma questão literária, de tipo de escrita, de pontuação, de diferentes metodologias. É também uma questão de corpo. Mudar a posição do corpo, o ritmo do corpo — escrever cansado ou cheio de energia, por exemplo — tudo isso muda a forma de escrita e o conteúdo da escrita.
Recentemente, António Lobo Antunes disse que não havia nenhum nome interessante ou relevante na literatura portuguesa contemporânea, além de negar a importância de Fernando Pessoa. Como o senhor avalia a produção atual de Portugal?
Penso que há grandes autores na literatura portuguesa. A história da literatura e da língua portuguesa é muito rica, há grandes e grandes escritores que, antes de terem essas gerações, a geração dos vivos, quis dizer — há uma geração dos vivos e uma geração dos mortos — têm grandes nomes. Acho que a geração dos mortos tem grandes nomes e a geração dos vivos, da literatura portuguesa, tem grandes nomes. E fico muito contente com isso.
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