Os escombros de uma guerra interior

Romance e livro de contos revelam o rigor de Gonçalo M. Tavares com a palavra
Gonçalo M. Tavares por Osvalter
17/02/2016

Se existe a previsão para um futuro Nobel de Literatura lusófono, o português Gonçalo M. Tavares é o favorito. Nascido em 1970 em Luanda, o escritor é responsável por um dos maiores arrebates literários dos últimos tempos, chegando a receber elogios de José Saramago. Gonçalo não é exatamente um autor pop, mas possui um séquito de leitores ávidos pela sua obra — que, por sinal, é uma das mais profícuas dentre os escritores de língua portuguesa — e vai do romance à poesia épica.

Sem se ater a rótulos, Gonçalo M. Tavares trabalha os limites dos gêneros literários, usando distanciamentos e aproximações entre eles como elementos narrativos. O romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, que acaba de ser lançado no Brasil, é um de seus textos mais delicados. O caráter humanizado do livro está ligado à relação pessoal de Gonçalo com crianças portadoras de trissomia 21, a síndrome de Down, como Hanna, a protagonista. (Há anos o escritor desenvolve trabalhos com crianças e jovens portadores da síndrome.)

Em uma Europa pós-guerra, Hanna, uma menina de 14 anos, procura por seu pai entre os escombros — metafórica e literalmente falando — com a ajuda de Marius, um homem que surge repentinamente e parece sempre estar em fuga. Enquanto procura pelo pai, a garota tenta também encontrar a si mesma. Ainda que seja um sujeito misterioso, Marius acaba protegendo Hanna, como no caso em que Josef Berman, um “fotógrafo de animais”, tenta retratar a menina como uma aberração. Nesse sentido, Uma menina está perdida no seu século à procura do pai faz um importante mea-culpa sobre o preconceito e a ignorância de toda uma sociedade conservadora. Algo muito próximo ao tratamento do medo e da loucura dado por Gonçalo em Jerusalém ou da banalidade do mal em A máquina de Joseph Walser, ambos parte da tetralogia O reino, que fecha com Um homem: Klaus Klamp e Aprender a rezar na era da técnica.

O narrador em terceira pessoa intercala com Marius a condução do livro, mas não há nenhum aviso sobre a mudança no ponto de vista e, de repente, o leitor acaba imerso em um novo universo. Tavares é um escritor de estranhamentos. Em toda a sua obra, raras são as vezes em que o leitor se debruça sobre uma narrativa cartesiana e lógica. Em determinado momento, Hanna e Marius estão em um hotel, mas nenhum dos quartos tem números. Cada um recebe o nome de um campo de concentração nazista de acordo com a sua localização dentro do prédio.

Marius pensou em várias coisas ao mesmo tempo. Teve o impulso de virar as costas de imediato e de tirar Hanna dali, mas não o fez.

— Por que fazem isso?

— Porque podemos — respondeu a senhora, secamente. — Somos judeus.

É impossível saber se Marius também é judeu, mas a dúvida faz parte da artimanha do escritor em preservar seus personagens de qualquer rótulo. Somente Hanna está às claras, longe da neblina deixada pelos conflitos bélicos. Parte dessa facilidade de identificação da menina vem de sua própria inocência. Ela sempre está disposta, não existe postergação ou medo — e essa assertividade exagerada de Hanna é um reflexo de sua própria curiosidade e desejo. A garota é a antítese perfeita de outro personagem de Gonçalo M. Tavares, Kashine, de um dos contos de Matteo perdeu o emprego.

À flor da pele
Gonçalo é sempre um produtor de sentimentos à flor da pele. Não existe meio termo em seus livros. Se em Senhor Henri e a enciclopédia, parte da coleção O bairro, o dito protagonista se embriaga de absinto para poder enxergar o mundo, em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai existe um quê analítico, capaz de esmiuçar friamente os fragmentos da guerra para conseguir projetar o futuro.

A caça pelo pai de Hanna é apenas o combustível para que os questionamentos sobre a necessidade real de guerra e suas consequências sejam trazidos à tona. De certa forma, todos os que morrem e aqueles que sobrevivem mutilados carregam o DNA da menina, porque estão apartados e dilacerados assim como ela está.

Gonçalo traz para a sua literatura gente incompleta, como os personagens de Short movies, livro publicado em Portugal em 2007 mas que só chegou ao Brasil em setembro.

Tiros curtos
Short movies é uma colcha de retalhos de pequenos contos, meros registros de ações cotidianas comuns, mas também absurdas e surreais. Os textos são como estampidos de um tiro curto: logo que começam já se acabam. E pronto.

Nas palavras do autor, essa sensação é proposital. O livro é uma “tentativa de levar a literatura do cérebro aos olhos e não a deixar sair daí”. Tanto assim é que não são poucos os contos em que as descrições das ações são enfileiradas, como se esperassem cada uma a sua vez para entrar em cena. Mesmo sem ter quaisquer ilustrações, é um livro profundamente imagético.

No conto que abre Short movies, O piano, a relação entre um homem e seu piano rodeado de água nocauteia o leitor logo no primeiro assalto — ao melhor estilo de Julio Cortázar. A progressão dramática coloca em xeque a noção de realidade e do disparate da narrativa. Não interessa ao personagem a casa que desabou ou a família que morreu no desastre: só lhe cabe o instrumento com as teclas já partidas. Mais adiante, em O táxi, Gonçalo trabalha o texto como se fosse um enquadramento de câmera: primeiro a mulher que levanta o braço para que o táxi pare; depois, a mulher sorri, pois dar com a mão já não é suficiente; o conto avança e vemos as roupas elegantes da mulher, ficamos sem entender o porquê de nenhum carro parar; somente no último parágrafo o autor revela o que há de tão macabro que nenhum táxi atende a mulher. Mas até chegar à conclusão o leitor é envolvido em uma teia de tensão que desenrola em menos de uma página.

Como todo os livros de Tavares, Short movies é uma ruptura. O narrador às vezes aparece onisciente e onipresente, para, no conto seguinte, se transformar em um espectador ignorante que, assim como o leitor, espera o desenrolar da história para saber o que está realmente acontecendo. Enquanto a miséria, a devassidão e toda sorte de tragédia atinge os cenários, o narrador caminha pela cidade como se avaliasse os estragos sem contabilizá-los.

Os personagens também não são menos maquinais, como a louca, do conto homônimo, que se perde nas poses que faz contra a vontade para deleite de um fonógrafo anônimo. Eles são gente maleável e sugestionável, como Bloom, protagonista do épico Uma viagem à Índia — livro em que Gonçalo homenageia em uma só tacada Camões e James Joyce. Por sinal, Tavares parece ter certa predileção por personagens modorrentos, como Joseph Walser, de A máquina de Joseph Walser, um homem simples que não percebe que Margha, sua mulher, tem um caso com o encarregado da fábrica.

O que se vê nos textos de Short movies é o reflexo de um mundo em guerra, devastado e desajustado como se antecipasse Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. A linguagem direta e franca de Gonçalo cria uma lógica diferente daquela a qual estamos acostumados e, por isso, um texto sobre a corrida do ouro (Nove) tem tanto a dizer sobre os nossos dias ou a frieza de uma mãe que só pensa em tomar banho de sol enquanto a filha se alvoroça ao presenciar a queda de um avião (Barulho).

Terra em transe
Não é de hoje que o leitor é uma marionete nas mãos de Tavares. Mas quem conhece a sua obra deve estar acostumado: se volta nela, não tem do que reclamar. Em Matteo perdeu o emprego, por exemplo, os textos formam um efeito dominó em que o personagem do conto anterior se liga ao próximo até que se chegue ao Matteo. Não dá para dizer se os relatos são contos ou capítulos de um romance. Talvez não sejam nem um, nem outro. Para Short movies Gonçalo rechaça o esteriótipo do “conto”, assim como fez com Canções mexicanas, livro escrito após uma viagem de dez dias pela Cidade do México, e não impõe qualquer definição fechada sobre o que são os textos que integram o livro. São ficções.

Mas toda ficção tem um caráter lúdico para Tavares, como ficou claro na coleção O bairro, em que grandes nomes da literatura — como Paul Valéry, André Breton e T. S. Elliot — são vizinhos de porta. Os livros criam um diálogo impossível entre si e desembocam em um grande mosaico literário. Nos livros que compõem a tetralogia O reino também se vê o trânsito de personagens e lugares, como se tudo fizesse mesmo parte de um único reino.

Os velhos também querem viver, recria a tragédia Alceste, de Eurípedes, em Saravejo no começo da década de 1990 durante o cerco sérvio. A obra, recheada de sarcasmo, é um híbrido entre o épico e a novela, impulsionando o leitor entre os mortos de uma terra em transe.

Orgânico
Aos 45 anos, Gonçalo tem no currículo mais de 30 livros — sendo que sua estreia aconteceu em 2001 com Livro da dança — e importantes prêmios literários como o Portugal Telecom — atual Oceanos — e o Jerusalém, que lhe rendeu da boca de Saramago um dos maiores elogios já recebidos: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!”.

Tamanha proficuidade pode ser explicada de duas maneiras: a primeira, psicológica e a segunda, física. Para Tavares, escrever faz parte do rol de necessidades orgânicas que possuiu e é algo tão natural quanto beber água ou se alimentar. Depois, a volumosa produção literária se justifica pela dedicação do angolano, entre seus 20 e 30 anos, a uma escrita disciplinada e diária. Durante aquela década não se preocupou em publicar o que criava, queria somente escrever.

Para o garoto que aos 18 anos precisou decidir entre seguir como jogador semiprofissional de futebol ou optar pela carreira de matemático, Gonçalo M. Tavares relevou durante seus quase 15 anos de carreira literária um talento que poucas vezes esse mundo presenciou.

>>> Leia entrevista com Gonçalo M. Tavares

Uma menina está perdida no seu século à procura do pai
Gonçalo M. Tavares
Companhia das Letras
240 págs.
Short movies
Gonçalo M. Tavares
Dublinense
96 págs.
Gonçalo M. Tavares
Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares nasceu em Luanda, na Angola, em 1970. Pouco tempo depois se mudou para Portugal. Começou a escrever aos 20 anos, decido a publicar somente após os 30. É autor de 1 (2004), Matteo perdeu o emprego (2013), Atlas do corpo e da imaginação (2013), animalescos (2013) e Breves notas sobre o medo (2007), entre outros.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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