Conversa com dois tradutores

Conversa com Boris Schnaiderman e Donaldo Schüler
Boris Schnaiderman
01/04/2001

Boris Schnaiderman

• Qual a diferença entre escrever literatura e traduzir literatura?
A tradução é um ato criativo. A tradução exige que se crie o texto na língua de chegada. É muito próximo da obra literária. O texto base. tem que estar vinculado com liberdade. Não é traduzir palavra por palavra.

• Tradução literária é literatura?
Sem dúvida. O fato é que é um trabalho criativo, de arte. A tradução tem de ser encarada como uma arte. O tradutor criativo é um artista.

• O tradutor é também autor? Tradutor deveria ter direitos autorais reconhecidos por lei?
Em certo sentido sim. Ele se baseia na obra já criada. O tradutor não deve se apagar diante do texto de origem. Tem que ser fiel ao texto base, mas isso às vezes exige que haja afastamento da criatividade.

• O tradutor deve ter direitos autorais sobre as traduções?
O tradutor deveria ter mais direitos que tem hoje, não há dúvida. Isso é uma questão delicada e preferia não responder. O tradutor tem que exigir. Há editoras que dão os direitos autorais, mas é raro. O tradutor tem que exigir o máximo que puder.

• O que é mais importante para o tradutor: trabalho de pesquisa ou inspiração?
Inspiração é resultado de muito trabalho. Existe também a intuição. Inspiração não é o termo adequado. Há um intuição. Tem de ter sensibilidade pelo texto, com muito estudo e fundamento.

• É possível automatizar a tradução literária?
Não, de jeito nenhum. A tradução é algo tão pessoal que não existe máquina que possa fazer isso. A tradução mecânica funciona em que há algo muito concreto a transpor. Por exemplo, um vocabulário. A obra como tal é um trabalho criativo em se tratando de qualquer obra literária. O texto literário precisa ter uma maleabilidade que máquina nenhuma pode dar. A máquina pode ser um elemento auxiliar, mas não dispensa o trabalho que é uma obra de arte.

• Qual a importância do contato (se possível) entre tradutor e autor do texto original?
É muito bom, inclusive para o tradutor tomar certas liberdades. Certas coisas são mais fáceis de expressar em uma língua que em outra. Às vezes em português é mais fácil se expressar que em francês. Se o tradutor consulta o autor, ele diz para usar as possibilidades de sua língua.

• O senhor segue alguma linha teórica da tradução?
Não diria que há uma linha determinada. É um trabalho criativo.

• Qual a melhor estratégia: tradução literal ou livre?
A tradução nunca pode ser literal. Isso já está consagrado há muito tempo. Não pode ser palavra por palavra. Sem criatividade não faz nada que não valha a pena.

• É possível manter o estilo do autor do original na tradução?
É uma questão de criatividade, de expressar o espírito que está no original. Não é uma fórmula matemática. O tradutor é um crítico. Ele escolhe aquilo que quer transmitir. A tradução literal está desmoralizada, superada desde a Antigüidade. São Jerônimo tem carta que defende a liberdade da tradução, de não precisar seguir palavra por palavra.

• Como está o mercado de tradução literária?
Não sei dizer. Não vivo de tradução. Tradução não é meu ganha-pão.

• O senhor já traduziu mais de 30 livros de vários autores russos diferentes, entre eles, Tolstói e Dostoievski. Qual o autor e obra preferidos?
Não tenho autor preferido. Procuro viver cada uma das obras enquanto traduzo.

• O senhor também traduz poesia. Qual a diferença em comparação à prosa?
A poesia exige domínio de outro instrumental, que é a linguagem poética. Traduzo poesia com a colaboração de quem domina este instrumental.

Boris Schnaiderman é professor da Universidade de São Paulo (aposentado). É um dos grandes especialistas atuais em literatura russa em todo o mundo.

Donaldo Schüler

Donaldo Schüler

• O que significa traduzir?
Traduzir significa levar de um lugar a outro. Quando falamos sobre um texto, traduzimos. Antes de traduzir é preciso ler. Como posso declarar ilegível um texto, se não consigo lê-lo? Só posso afirmar que eu não sou capaz de lê-lo. Dizer que um texto é ilegível é sempre de caráter subjetivo. Posso afirmar que algo seja ilegível para mim, em certa ocasião. Isso não significa que seja ilegível de maneira absoluta. Um texto escrito em polonês é ilegível para mim agora. Poderá não ser ilegível para quem conhece polonês.

• Como, entretanto, traduzir um texto escrito numa língua universal?
Traduzir para uma língua particular um romance como Finnegans Wake,  em que se misturam mais de sessenta línguas, é efetivamente uma traição. Mas não falamos língua universal, nem falamos a língua dos outros. Falamos a nossa língua, o nosso idioleto. Este é o ponto de chegada e ponto de partida. Daqui vamos àqueles com quem nos comunicamos todos os dias, aos do nosso grupo lingüístico, aos que pertencem a outros grupos familiares, ao universo. Traduzir é sempre trazer outro universo lingüístico ao nosso. Tradução com seus erros e acertos será sempre uma das leituras possíveis. Quem não traduz não lê, não entende, não se comunica. Quem não leu o texto, está fora do texto. Não tem o direito de declará-lo ilegível. Só quem leu o texto pode declará-lo ilegível. Como declará-lo ilegível se já o leu? Dizer que Finnegans Wake é ilegível leva a tais paradoxos. Pergunta-se: “Como é possível traduzir Finnegans Wake?” João Alexandre Barbosa faz outra pergunta: “Como foi possível escrever Finnegans Wake?”

• Entre escrever e traduzir, há diferença?
Para Joyce, escrever já é traduzir. Ele lê e interpreta inúmeros textos do Ocidente e do Oriente, produzidos no presente e em muitas outras épocas. “Como foi possível escrever Finnegans Wake?” Resposta: a paródia. Poderíamos dizer que Finnegans Wake é uma desenvolvida paródia do “Inferno” da Divina Comédia. Paródia é dar uma obra em outra linguagem, paródia é tradução. Diferenças. O mundo de Dante é todo racionalmente legislado até às últimas conseqüências. Joyce: em vez do rigor dantesco, a livre associação de idéias. É a idade da psicanálise. Na distância entre a Divina Comédia e Finnegans Wake, dá-se o sentido. A Divina Comédia é uma camada significante, Finnegans Wake é outra. Nessa distância processa-se o sentido.

• Como é que se deve traduzir?
Cada texto a ser traduzido impõe suas próprias leis. Não se podem criar leis gerais para a tradução. O tradutor deve aprender com o texto que traduz. Nomes próprios, por exemplo Finnegans Wake, os modifica  sistematicamente. Arranca-os dos referentes. Torna-os significantes de novas significações. A mudança dos nomes não afeta a constância da vida, atesta até a vida das línguas. Radicalizando, fatos são fatos, fixos, concluídos.

• É possível traduzir?
Traduzir não é possível. Não há correspondências entre uma e outra língua. Excetuando as linguagens técnicas: tradução mecânica. A língua literária rompe com todas as subordinações. As decisões do texto criativo são imprevisíveis. Joyce não faz mais do que acentuar este processo. Todos os textos são intraduzíveis. Por isso é necessário recriá-los. Haroldo de Campos: só os textos intraduzíveis merecem ser traduzidos. Traduzir Joyce significa revitalizar um texto em estado de deterioração, ativar o ciclismo viconiano. Sem tradução, o texto morre.

Donaldo Schüler  é tradutor, ensaísta e doutor em Letras. É também professor de literatura grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho