Construtor com tijolos ordinários

Entrevista com Jonathan Coe
Jonathan Coe, autor de “A casa do sono”
01/05/2007

• Quando O círculo fechado, o último de seus romances a ser publicado, estava saindo, você disse que sentia ter escrito todos os romances em um certo estilo que seria capaz de escrever. Três anos depois, há um novo estilo surgindo?
É difícil dar uma opinião objetiva sobre seus próprios livros, especialmente sobre um que você acaba de concluir, mas eu diria que meu novo romance, The rain before it falls [com publicação prevista para setembro na Inglaterra], é muito diferente de qualquer coisa que escrevi antes. Talvez as diferenças sejam apenas superficiais, mas elas incluem: uma velha senhora como protagonista e narradora em primeira pessoa; a maior parte do enredo situada nos anos 40 e 50, e não nos dias de hoje; nenhuma referência a eventos políticos ou sociais; nenhuma piada; quase nenhum diálogo; nenhum personagem masculino importante. Se é uma mudança de direção permanente em meu trabalho, ainda não sei; só sei que foi uma libertação deixar a comédia social de lado um pouco e narrar na voz de uma personagem bem diferente de mim mesmo. Felizmente, o livro já foi comprado pela Editora Record, então imagino que em um ano ou dois os leitores brasileiros poderão julgar por si próprios o que digo.

• Onde você situaria, entre seus romances publicados, o livro que acaba de ser lançado no Brasil, A casa do sono [originalmente publicado em inglês em 1997]? O que sente por esse romance?
Tenho muito carinho por esse livro; é um dos meus favoritos. Não porque eu o releia com prazer (eu raramente releio meus livros — e nunca com prazer), mas porque ele parece ter tocado muito os leitores. Enquanto jornalistas literários normalmente me perguntam sobre meus livros “políticos” (O legado da família Winshaw, Bem-vindo ao clube, O círculo fechado), recebo mais cartas sobre A casa do sono, e quando leitores vêm falar comigo nos festivais de literatura, esse é quase sempre o romance sobre o qual querem conversar. Acho que ele tem problemas — é provavelmente um livro cheio de entulho narrativo e detalhes demais, seu tom é bastante irregular, mas gosto da essência emocional dele: a história de amor principal entre Sarah e Robert.

• Você acha que um romance como O legado da família Winshaw informa e ajuda a entender, ou ao menos produz um senso do passado neste caso, tanto quanto um livro de História que narrasse a mesma Era Thatcher dissecada em seu livro?
Fico um pouco incomodado com a noção de que meus livros possam ser lidos como história social — embora reconheça que essa acaba se tornando uma de suas funções. Faço grande esforço para torná-los historicamente precisos, mas não sou um historiador profissional, e O legado da família Winshaw, por exemplo, está longe de ser um relato objetivo sobre a Era Thatcher.

• Não estou dizendo que não precisamos mais dos historiadores — alguns deles, aliás, ótimos contadores de histórias à sua própria maneira — e sugerindo que os romancistas tomem seu lugar. Mas talvez a ficção, como um discurso estabelecido, possa contribuir decisivamente para esse esforço coletivo de memória a que chamamos História. Você concorda?
Nos seus melhores momentos, suponho que esses meus romances “históricos” possam oferecer algo que a escrita dos historiadores não pode fazer na mesma medida ou com tantos detalhes: um senso do que se poderia chamar de textura de uma época, o que as pessoas comuns teriam conversado, pensado e sentido enquanto os grandes eventos — aquilo que está a cargo da história convencional registrar — passavam por suas vidas. Sim, o romance pode contribuir para o que você chama de “esforço coletivo de memória”. Mas eu diria que esse é um de seus papéis secundários. A função primeira é estimular respostas emocionais no leitor.

• Como você processa a realidade — “a enormidade da vida”, conforme você mesmo definiu uma vez em relação a B. S. Johnson, seu inspirador e biografado — e transforma isso em ficção? Como você lida com essa tarefa imensa: a imitação da vida?
Um romance não é uma “imitação da vida”. Isso é um ideal inatingível, e tentar permanecer fiel a ele foi uma das coisas que levaram B. S. Johnson à morte, tanto como homem quanto como escritor. Um romance não é um pedaço da vida: é uma estrutura, uma construção. Minha concepção da ficção é primordialmente arquitetônica: talvez inspirada em Henry Fielding, cujo romance Tom Jones foi comparado por Edward Gibbon ao palácio Escorial, na Espanha [monumental complexo de construções em pedra nos arredores de Madri, construído entre os anos de 1563 e 1584, no reinado de Felipe II, para celebrar a vitória espanhola sobre os franceses na batalha de Saint Quentin, em 1557].

• Mas o que, no “mundo real”, é importante e o que não é para sua ficção?
Os tijolos para minhas construções podem ser bem ordinários — fragmentos de conversas apenas entreouvidos, um café interessante que eu tenha visitado, duas pessoas que espiei conversando em um restaurante —, mas o processo de erguer estruturas de sentido a partir disso é que me fascina, e (quando acerto) dá prazer ao leitor. Quero que meus leitores possam passear por meus livros como se fizessem uma visita guiada a uma casa antiga e bela. (Comigo de guia, claro.)

• Por que seus personagens que atuam como figuras públicas (políticos, empresários, gente da imprensa e da TV, etc.) são caricatos, especialmente em O legado da família Winshaw?
Acho que por duas razões: a primeira, e mais simples, é que não conheço nenhuma figura pública. Meu círculo de amigos é de gente bastante comum. Então, quando estou escrevendo sobre essas figuras, tenho que escrever como quem as vê de fora, como é óbvio. Mas também — para aqueles de nós que não participam desses círculos charmosos dos poderosos e importantes — esse tipo de gente não parece sempre um pouco irreal? Sempre penso que para alguém ascender aos altos postos da política, dos negócios ou da mídia, tem que se despir de algo importante, deixar para trás parte de sua humanidade. Essencialmente, precisa abandonar toda a capacidade de dúvida, em relação ao mundo e a si próprio. E como essa é a qualidade (na minha opinião) que mais nos humaniza, sempre vejo os ricos e poderosos como um pouquinho… bem, um pouquinho inumanos e irreais.

 • Você consegue ver seus livros ideologicamente? O que significa ideologia para um autor de romances que revisam e dolorosamente — ainda que também de forma cômica — reencarnam o passado do próprio país?
O único livro meu em que penso ideologicamente é O legado da família Winshaw, que no meu modo de ver (catorze anos depois de tê-lo escrito) perdeu força por conta de sua posição abertamente anti-Thatcher. Quando escrevi sobre a Inglaterra dos anos 70, em Bem-vindo ao clube, e sobre o país com Blair no poder, em O círculo fechado, tentei deixar de fora minhas próprias convicções políticas. (Apesar de alguns críticos acharem que, neste último romance, eu teria manifestado muito claramente minha oposição à Guerra do Iraque.) Passei a acreditar que escrever um romance sério (o que inclui, evidentemente, bons romances cômicos) é um ato político, na medida em que é uma tentativa de criar um lugar temporário onde o sujeito individual possa pensar e imaginar livremente. A única responsabilidade de um romancista — uma responsabilidade muito grande — é a de ampliar a capacidade de imaginação dos leitores. Essa é minha noção do papel político de um escritor, nos dias de hoje.

LEIA RESENHA DE A CASA DO SONO

Christian Schwartz
Rascunho