As cinzas do vulcão deixam frestas no céu

Entrevista com Fabrício Carpinejar
Fabrício Carpinejar, autor de “Como no céu/Livro de visitas”
01/02/2002

A poesia sempre jorrou qual lava de um vulcão enfurecido. Devastou bosques e fez-se cinza na improvisação do irrelevante. Poetas surgem como uma matilha faminta e sedenta pela presa fácil que aponta na esquina. Poucos sobrevivem. É assim nessa lida — das mais árduas e sublimes —, tida, muitas vezes, como mera retumbância de uma voz que pouco tem a dizer. A culpa é dos poetas, sim. Ou da poesia, talvez, que com seu jeito simplório e de aparente fácil mergulho vai seduzindo incautos por aí. É uma dissimulada, essa poesia. Pobres amantes que se enlaçam apaixonados em seu pescoço e aos poucos são incinerados pela lava desse vulcão faminto. Assim como nos versos de O Sete, do português Helder Macedo: “Uma rapariga loira/ subitamente passa/ surgindo de entre os pares de namorados/ abraçados sobre a relva./ Quando me cruza vejo que ela chora./ Não reparei se era bonita/ porque bem basta que tenha descoberto/ de repente/ a solidão/ e já não saiba o que fazer de si.” É desta solidão que padecem os falsos poetas (ou equivocados) quando traídos por si mesmos e, no desespero, culpam a poesia. Há deambulando por aí milhares de equivocados amantes. Uns sobrevivem pouco tempo na empáfia de um discurso sofisticamente encoberto; outros, menos corajosos, somem, como se fossem abduzidos pelo mundo. A honradez da poesia, dissimulada como ela só, é o inferno em que mergulham desavisados que logo são esquecidos por seus próprios feitos.

É nessa barafunda (e hoje confunde-se artes visuais com poesia) que se sobressaem uns poucos, pois como dizia Wilde, em uma de suas tantas citações — algumas bem infantis, é verdade —: “o mundo é um palco, mas o elenco foi mal escolhido”. Nesse palco, poucos são verdadeiros artistas. Na poesia, poucos poetas são verdadeiros poetas. Entremeio a tantas tentativas (a maioria equivocada), sobressai-se a voz do gaúcho Fabrício Carpinejar, um poeta que a cada novo verso mostra a força de quem acredita na poesia — e assim a pratica — como uma arte que necessita da eterna vigilância e que clama pelo rigor — não apenas estético; lembrem-se que mesmo o caos o carrega —, mas artístico, como prova o seu terceiro livro Terceira sede, composto por dez elegias. E ao nos deparar com tais elegias, o que esperar? Seria o canto do lamento que carregam as elegias? Lembremos que Rainer Maria Rilke foi o mais célebre entre os poetas a executar as elegias, como nos lembra José Castello (O momento da queda, Bravo!, novembro). E Rilke, em sua obscuridade, é a voz necessária a uma existência que anseia fugir da mediocridade que nos cerca.

Assim como Rilke e tantos outros bons poetas, Carpinejar busca nas elegias a arma para combater um certo marasmo que tende a nos visitar. Com força, questiona-se. E esse questionamento espalha-se pelo leitor, pois logo na primeira elegia, avisa: “não me empurrem mais, não vou por onde não sei./ Deixa-me pensar o corpo, deixa o corpo me pensar” (p. 16). A postura de Carpinejar diante de sua arte tranqüiliza o leitor. Sabemos desde o início que estamos diante de um poeta que preocupa-se com o pensar, tão vilipendiado por versos que abundam à sorrelfa. Se em seu livro anterior, Um terno de pássaros ao sul, ele voltou ao pampa em busca de suas origens e respostas para ela, representadas pela figura do pai, agora Carpinejar perscruta a alma humana em busca de perenes dúvidas que nos rodeiam e que hão de continuar aí eternamente, principalmente o nosso fim, disfarçado de solidão e ausências. “Minha origem rejeita despedidas./ O judeu persegue um violino perdido; o cristão,/ um cálice soterrado. Desconheço para onde vou./ Amo o vôo porque me espantam com migalhas…/ Os vazios nos preenchem” (Quinta elegia, p. 39).

Pelos vãos desse vazio, vem o lamento de Carpinejar. Não é incômodo, mas reconfortante, pois nos faz sentir a indispensável necessidade de refletir sobre esses vazios que proliferam a cada dia por nós, como se banhados em um campo generoso e abundante, porque “nossa sina é sobrar nas cinzas” (p. 37). Para isso, o poeta percorre toda uma vida, principalmente na nona elegia, quando vai da infância à morte como se esta recompensasse a dura espera, num recordar necessário para que a vida não descarrile na ribanceira: “O fio da infância se rompeu ou foi adulterado?/ Recordo o que posso, não o que preciso./ Amarrar os cadarços nas canelas, entortar colheres no solo,/ criar chuva sacudindo a copa das árvores” (p. 66). Mas ao mesmo tempo em que reveste os versos de um lamento necessário, uma caudalosa esperança, disfarçada de sussurro, ecoa nas entrelinhas: “morreria tantas vezes desde que fosse possível/ economizar tua morte” (p. 44).

Ao bom poeta — e eles são raros numa exigência necessária contra a vulgarização — cabe a incursão por nossa alma. Considero a poesia a transposição possível a um mundo ainda inatingível, seja nos metódicos versos de João Cabral de Melo Neto ou na falsa ingenuidade de Mário Quintana. Com Terceira sede, Carpinejar (com apenas 29 anos) coloca-se entre os poetas preocupados com a poesia, o que parece desnecessário dizer, pois todo poeta deveria encarnar a poesia como sua vida e a responsabilidade que ambas exigem. Mas o que se vê, muitas vezes, na vaidade literária entranhada é apenas a superficialidade posando de intelectualidade e, numa extensão mais prepotente, de arte. Mas talvez essa preocupação arrefeça com o tempo, quando “na velhice a mesa fica repleta de ausências” (p. 75). A lava do vulcão enfurecido há de continuar jorrando. As cinzas do vulcão encobrem o céu. Mas não por completo.

• Em Terceira sede, você projeta o poeta e a poesia para o 2045, pois “como posso ter morrido antes, decidi antecipar a velhice”. A iminência da morte a qualquer instante estimula a arte ou a força a um amadurecimento repentino?
A morte não está fora de nós, amadurece por dentro. Ela é personificada ao longo da vida, damos o nosso rosto, emprestamos nosso vícios e hábitos, acreditamos que será complacente, que criará laços e absolverá os mais próximos. Só que a morte é nossa impessoalidade pessoal. Só percebemos quando nos atinge diretamente. Antes é apenas considerada uma fatalidade. Significa a irrupção da consciência, a consistência da consciência. Aparece em qualquer instante, como que dizendo que não dá a mínima para nossa aparente eternidade. Lutar nela é melhor do que lutar contra ela — e é isso que ambiciono fazer. Minha poesia é resistir na linguagem. Além do mais, tenho a sensação de que a morte é analfabeta. Por mais que eu tente ensiná-la a ler, nunca vai aprender.

• As elegias (e tomemos Rilke como exemplo) são uma voz de lamento. Por que as escolheu para uma reflexão apurada sobre uma vida inteira, como se mostra Terceira Sede?
Creio que as elegias vieram ao natural, não escolhi de uma forma premeditada. Terceira sede traz um paradoxo: é literatura confessional de uma vida que não houve. É o diário do que não aconteceu, o relato de uma viagem que não houve. Assim deixa de ser confessional. O tom é o de uma interlocução direta com o leitor, uma voz com a inconstância do timbre. Nada melhor do que as elegias, uma conversa musicada. Na maioria dos versos, predomina o sussurro e de repente surge a pancada da consciência. A elegia é o jazz da poesia, permite improvisações e solos fecundos. Alimento uma admiração pela Elegias de Duíno de Rilke e Elegias romanas de Goethe. Mas a pureza hoje é impossível. Não há como fazer elegias sem antes pagar pedágio para a polifonia e multiplicidade crítica de Fernando Pessoa, ou mesmo José Régio, que permitiu explorar ainda mais a possibilidade do poeta ser os outros. Sofro de claustrofobia se permaneço muito tempo em mim, preciso pensar o mundo e minhas circunstâncias. Aliás, sou um voyeur das minhas lembranças, incluindo as lembranças do futuro. Como já avisou minha mãe, “vou me especializar em ser invisível”.

• Logo no início do livro, você afirma e pergunta: “Aqui nada é real. Mas o que é real?” As suas elegias estariam atrás de respostas ou apenas solidificando a afirmação?
Recordo, por exemplo, de Neruda que escreveu um livro só de perguntas. Ele talvez tenha percebido que a vida não é encontrar respostas, mas descobrir as perguntas certas para nossas respostas. O destino é gerar dúvidas. As dúvidas são as minhas certezas. Nesse sentido, estou atrás das perguntas, queimando papéis para aquecer as mãos. Até porque é na pergunta que a reposta se desdobra. Sobre a questão, “o que é real?”, proposta no início do livro, chamo atenção para o fato de que a biografia de um homem não pode excluir o que ele imaginou. Imaginar é um modo de viver. Só não existe o que não foi tocado e percebido pela imaginação. Dessa forma, a realidade é mais do que o reducionismo factual, é também sua negação. Negar a realidade é também afirmá-la. Quando digo “o fato de não ter sido é mais trabalhoso do que a fama”, identifico que a maior invenção é do anônimo, que se projeta numa vida melhor, na Casa dos Artistas, no Show do Milhão e mora em todas as possibilidades, menos em sua vida. O que nos atrai é o que não somos.

• Na décima elegia, o verso “só na velhice a mesa fica repleta de ausências” pode resumir toda uma vida, com seus medos, frustrações e, principalmente, perdas. As perdas (consumadas e possíveis) impulsionam a criação literária?
Chega um momento em que a memória recente vai se perdendo e dando lugar à remota. A velhice é o tempo sem tempo, conviver com o inferno, o purgatório e o paraíso ao mesmo tempo. As ausências são tão fortes e significativas quanto as presenças. Nem precisamos procurar uma terceira dimensão lá fora. Ela está aqui. Na maturidade, o que vivemos, convive em nós. Somos a hospedaria de muitos, um molho de chaves embaralhadas no gancho. Acho que os idosos e as crianças estão ligadas entre si. Daí que a “mesa repleta de ausências” seja o resumo de uma trajetória. A criança caracteriza-se pelo excesso de imaginar; o idoso, pelo excesso de lembrar. Até hoje não tenho certeza se minha infância foi o que vivi ou o que sonhei durante ela. Na velhice, não saberei se aquilo que imagino não é o que vivi anteriormente. Se como jovem sou todo linguagem, sondei uma época em que serei todo silêncio.

• O seu livro anterior — Um terno de pássaros ao sul — é a busca do regresso, do retorno, do reencontro (encarnados na figura do pai) das raízes. Agora, você faz uma viagem ao futuro para também mergulhar no passado, pois escarafuncha a composição do homem e o seu degredo. Seria esta a maneira mais coerente para tentar explicar a existência (com mergulhos profundos nos tempos que nos cercam), já que esta se mostra tão imperceptível ao olhar comum?
Cercar a existência de todos os lados é a senha. Não vejo meus livros isolados entre si. Alternam experiências. Um descende do outro. As solas do sol é um mundo dentro do livro, a despersonificação ao extremo, em que acerto as contas com minhas leituras. Em Um terno de pássaros ao sul, acerto as contas com a figura do pai (não o pai físico, mas o introjetado). Terceira sede traz um ajuste com a velhice e o futuro. No próximo livro, Biografia de uma árvore, a bronca e a briga são com Deus. Não imaginava que teria tantas dívidas. Sigo uma unidade, ainda que seja inalcançável. Cada obra é capítulo de uma grande romance versificado. Não farei uma poesia reunida, a poesia deve reunir antes o escritor. Acredito que toda a obra já cria sua próxima. É como uma raspadura. Só raspando um Terno, descobri que havia Terceira sede por debaixo. Aquela máxima de que o autor só faz uma única obra é quase verdadeira. Todas as obras estão incógnitas em um livro, mas há a exigência de potencializá-las e explorá-las. O livro se faz pelos destroços. Ele necessita morrer várias vezes para se levantar. Ninguém derruba mais as ruínas. O que fica é aquilo que já foi derrubado pelo poeta.

• Seria o poeta o responsável por descortinar a vida em busca de respostas que nos parecem impossíveis?
Não só o poeta, mas o romancista, o contista e o ensaísta. Me sinto responsável pelo destino das palavras, acredito nelas e não fico brincando com os sentimentos que transmito. Gosto de furtar a infância e os detalhes das pessoas, como pegar frutas no pé. Quero estar entre elas. Minha poesia é feita de demoradas distrações. Há um compromisso com a realidade emotiva do leitor. Por exemplo, em Terceira sede faço também uma crítica aos costumes e uma autocrítica velada. Nossa sociedade parece querer exterminar os velhos. A pressa produtiva nos condiciona a não perder tempo com eles, a não escutar suas histórias e valorizar sua sabedoria. Não suportamos recordar, só ambicionamos o presente. Viver somente o presente é o mais terrível mecanismo do esquecimento, porque nos impele a não armazenar lições. Afora que a terceira idade, termo inerte, é tratada na publicidade como uma maquiagem. Velhos andando de balanços, de jet ski, de asa-delta. É ridículo que não ocorra naturalidade na reprodução dos hábitos de quem envelheceu. Parece que os idosos só são felizes rejuvenescidos. A mentira é uma exclusão.

• Em artigo recente na revista Superinteressante, você escreveu que o poeta precisa reaproximar-se do leitor. Qual é o caminho, já que a poesia é leitura de pouquíssimos?
A poesia perdeu o crédito em decorrência de dois enganos: ou é encarada como excesso de sentimento, à base de trocadilhos que nunca serão versos, ou é trabalhada em vertente acadêmica, difícil, culta e sem sentido, que atende interesses universitários e não chega aos ouvidos da gente. Falta rigorosamente um meio-termo entre o popular e o erudito, entre a realidade e o imaginário. Falta uma linguagem que testemunhe e critique nosso tempo, capaz de dar uma função coletiva às descobertas pessoais. Contrariando as aparências, a poesia não é catarse. Poesia é fundir pensamento e imagem. A conexão entre os versos é feita pela música, que atua como o conservante da memória, algo como um tênue assobio que dificulta o esquecimento. As imagens dependem da abertura para o cotidiano coletivo, senão é um monólogo. Pode narrar uma história, exibir uma estrutura de romance e nem sempre é aleatória como bilhetes de geladeira. É capaz de ser atraente, compreensível e proporcionar entretenimento. Não é feita despejando emoções no papel e acrescentando adjetivos. Trata-se de um desbaste, de um esvaziamento essencial, de uma seleção do melhor de cada um, abarcando o que é necessário dizer e não poderia ser dito de outra maneira. É o resultado de uma negociação intensa entre duas realidades: a física e a emocional. O leitor não é o culpado pelo descrédito da poesia como vem sendo dito nas últimas décadas. O culpado é o próprio poeta, e não deixo de me incluir. O adolescente começa escrevendo poesia, porém não é instruído a compreendê-la. Faz poesia por instinto de sobrevivência, mas não recebe os instrumentos da linguagem para amadurecê-la. Mudaremos a situação na medida em que as escolas e as universidades perceberam a poesia como uma disciplina fundamental, não opcional. Hoje o estudante incorpora datas e os movimentos, sem ao menos ser inspirado a ler seus autores. O conjunto é resumido nos esquemas das escolas literárias e o texto em si termina relegado ao papel secundário. O epitáfio do escritor é uma questão de vestibular.

• Hoje, a burocratização (o poeta visto como deus enclausurado a pensar) e a banalização (qualquer rabiscador de frases em guardanapo de boteco se diz poeta) da poesia disputam espaço. Devem ser combatidos?
Isso é o que chamo de bom combate. Ocorre a confusão entre a poesia da vida e a vida da poesia, entre expressão e comunicação. Ou tem-se o espontaneísmo ou o formalismo disciplinador. É preciso se precaver tanto das facilidades como das dificuldades. Meu pai sempre me advertiu: “terás que desconfiar de teu talento natural”. É um aprendizado. Nem tudo o que toco é poesia. Poderia bem me servir de cacoetes e artifícios e fingir que sou sempre original. Aí estaria me reciclando. Não considero honesto passar o que é uma fórmula como se fosse autêntico. Minha infância foi árdua, arquei com problemas de dicção, os professores do primário avisavam que não conseguiria me alfabetizar, meu rosto era de um Woody Allen sem óculos, e nunca me intimidei pelos obstáculos. Escrever é meu jeito de falar em público. Desde pequeno, tive humor e aprendi a rir de minhas limitações. Sou o primeiro a rir de mim mesmo e faço muita gente perder a primazia da piada. Desta maneira, a poesia não é solenidade. É a nudez de uma voz. Quase perdi as rédeas com digressões. Voltando ao tema inicial, o espaço da poesia está mais povoado por personagens do que por autores. Os autores viraram personagens para mediar sua produção. A mídia se interessa pelos fatos extraliterários em detrimento da literatura. Se o escritor é, além de criador, camelô, pipoqueiro, presidiário, ou pertencente a uma minoria, terá mais visibilidade do que um livro de extrema qualidade de alguém absolutamente convencional.

• Você concorda que a inspiração e o trabalho intelectual devem estar em perfeita harmonia no momento de se conceber um poema?
A inspiração só vem com o exercício. É dosando o sopro que chegamos a formar o vidro. Nada é gratuito, externo. Os poemas dependem da depuração e do esmero, da escavação e da desconfiança. Assim como a literatura não é uma atitude privativa, sofrida. Discordo da imagem masoquista do escritor. Posso até ser sádico de vez em quando, mas masoquista não. Tenho um grande prazer e alegria em escrever. O estranho é a fachada reacionária empregada à poesia. A poesia não é coisa de monarquia nem o poeta é uma entidade divina. A história de procurar o sucessor de João Cabral logo depois de sua morte é bobagem. Como se houvesse um trono e um único lugar. Ausências não são preenchidas, mas respeitadas. É uma contradição ver a poesia como uma instituição monárquica, portanto conservadora, quando ela é o incêndio e a insurreição do idioma, trazendo o que há de mais libertário e transgressor.

• Por que investir no poema longo, como em Um terno de pássaros ao sul, e nas dez elegias de Terceira sede, já que os riscos se mostram cada vez maiores? Qual é o desafio do poeta?
Sim, os riscos são maiores. Mas só se começa a voar durante a queda. Escolhi o verso longo, único, como forma de assegurar uma visão de mundo, uma unidade rítmica. Meus livros são contos líricos, desenvolvo uma pegada narrativa, de conduzir um enredo na tentativa de tornar a voz concreta, plausível, física e convincente. Parto de uma descrição para atingir a reflexão, da ação de uma imagem para reação crítica dela. Mas como Cony notou: os poemas podem ser lidos também como haicais. São versos curtos que trabalham em benefício de uma totalidade e de uma idéia geral. É o equivalente a uma maratona feita de piques. Mesmo que não chegue em primeiro, me interessa terminar a corrida e provocar os participantes a acelerar o passo.

• Carpinejar é um poeta em busca de quê?
Diminuir a distância entre o que é dito e o que é silenciado, inspirar novos leitores de poesia, a ponto deles se deslocarem tão à vontade no livro que esqueçam minha existência. A vaidade nunca me deixou mais bonito. Nem será agora. Busco o avesso, invertendo lugares-comuns ou fraturando a rotina. Lembro da estória de Manuel Bandeira, am Andorinha Andorinha, que Guimarães Rosa adorava citar: na hora em que um louco é avistado com o ouvido colado à parede, um visitante estranhou mas seguiu reto. Tempo depois, atravessando a mesma sala, lá permanecia o homem na mesma posição. O visitante não se controla e pergunta: o que está ouvindo? O louco diz: encoste a cabeça e escute. O outro cola a cabeça na parede, e não ouve nada. Então, o louquinho explica: pois é, está assim há cinco horas. Essa cena traduz o que eu pretendo: às vezes, esperando o imprevisível, esquecemos de reparar no previsível. Pregamos solidariedade fora de casa, e pouco sabemos ser solidários com os irmãos, os filhos, os pais. Pecamos no óbvio, no simples. Deus não está nos detalhes. Deus é o detalhe. Não podemos deixar que o sil                                                                                                                                                                                           ?????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????ivamente na composição coletiva. Não adianta usar o repertório da globalização para contestar a globalização. Somos dominados pela linguagem e a poesia é um modo de fundar dialetos. Libertaremos dialetos. Não é o tempo da beleza, é o tempo da verdade.

• Hoje, os poetas são solitários na busca do verso. Não vivem mais em grupos e, por isso, os movimentos literários ou grupos literários já não mais existem. Por que essa mudança, se há alguns anos — principalmente na década de 70 — havia uma efervescência em torno de tais grupos e movimentos poéticos?
A solidão é algo positivo, necessário e intransferível. O que incomoda é o isolamento atual entre os autores. Se os poetas trocassem experiências, reagissem com honestidade aos lançamentos, e dispensassem a bajulação, haveria um nível de exigência maior. Ninguém aceita expor cicatrizes, ter defeitos, assumir derrotas. Nesse sentido, é importante trocar os cúmplices pelos amigos. Ecoando Fernando Pessoa: “estou farto de semideuses”. De igual jeito, a pluralidade do Brasil é esquecida em torno do monopólio de uns poucos. Não se conhece o verdadeiro Brasil poético. Um caso entre tantos é o maranhense José Chagas, que merecia uma projeção nacional. A melhor poesia brasileira não está na ordem do dia, não está sendo debatida. Com a atrofia dos cadernos e suplementos culturais pelo alto preço do papel, somente as árvores centenárias são preservadas por lei e visualizadas por mérito.

• O que mede a grandeza de um poeta e como ser um grande poeta?
Em primeiro lugar, não espere a devolução de troco ao fazer poesia. Se reclamar, será obrigado a pagar mais. O que mede a grandeza de um poeta é sua falta de medida. Ser a consciência de seu tempo, explorar imagem e sentido com o mínimo dos meios e extraindo o máximo das mensagens. Há vários tipos de poetas. Para usar uma concepção futebolística: os que jogam bem nos treinos e não demonstram a mesma habilidade nas partidas, os que têm uma visão de todo o campo, e os grandes e raros, que são os técnicos/jogadores, conseguindo ter simultaneamente a visão do gramado e de fora dele. Jorge de Lima foi um grande poeta. Fez os melhores e os piores poemas da literatura brasileira. Drummond primou pela regularidade. Era um volante talentoso, com chispas nos momentos decisivos. Cabral é um meia de passes longos e certeiros , dificilmente fazia gols, mas colocava sempre o leitor na cara do goleiro. Manuel Bandeira atuou como nosso Garrincha, driblava até sem a bola. Mas um dos crimes que fizerem contra a poesia brasileira consiste em ter excluído os atletas de Cristo da concentração: Cecília Meireles, o próprio Jorge, Murilo Mendes, Carlos Pena Filho, Emílio Moura etc. Nosso lado místico, barroco, intuitivo e visionário acabou sendo posto de lado para prevalecer a razão e a técnica concretista. Sem entrar no mérito, o futebol-arte (ou poesia-arte) brasileiro cedeu aos esquemas rígidos europeus. A torcida é que saiu perdendo.

• O verso perfeito é a utopia possível?
O verso perfeito é impossível. Se fosse perfeito, seria incomunicável. Tentativas não faltaram. Um Lance de dados de Mallarmé é uma delas. As impurezas são fundamentais para realçar os momentos de revelação.

• Você vem de uma família de poetas (Carpinejar é filho de Carlos Nejar e Maria Carpi). De que maneira isso pesa em sua obra?
Pesa positivamente. Tenho muito orgulho deles. Não preciso esconder minha origem com medo da comparação. Amo meus pais e suas respectivas obras. Penso diferente, é evidente, e procuro trabalhar as diferenças. Minha mãe foi a que me alfabetizou, e isso ficarei devendo sempre. Fui um privilegiado e quero retribuir também os benefícios de ter estudado em universidade pública para a sociedade. Sobre a infância, minha casa era forrada de livros, não havia paredes, mas estantes. O verso corria nas conversas mais triviais. De repente, Quintana vinha para jantar. A atmosfera me preparou para as funduras. Meu nome já são três nomes. Um terno de pássaros ao sul e Terceira sede reforçam o aspecto de trindade familiar: pai, mãe e filho. Os fortes laços me condicionaram a ser bastante caseiro, não perco oportunidade de partilhar as venezianas com minha esposa Ana e meus filhos.

• O Rio Grande do Sul tem uma importante produção literária — tanto na poesia como na prosa — e, mesmo com um forte regionalismo estático (em alguns casos), consegue a projeção merecida. Há uma explicação?
O mercado editorial gaúcho é autônomo, há uma Feira do Livro fortíssima, uma Jornada de Literatura que congrega mais de cinco mil pessoas, um prêmio do porte de Passo Fundo e do Açorianos de Porto Alegre, elementos que possibilitam a difusão e a completude de um sistema literário. O Rio Grande do Sul vive seu melhor momento, o “regionalismo estático” (termo muito apropriado) está sendo suplantado por uma preocupação urbana. Mas o pampa vai além dos seus quadrantes geográficos: os gaúchos são ciganos, estão em toda parte, têm uma forte capacidade de adaptação.

• Para onde caminha a poesia de Fabrício Carpinejar?
Para uma linguagem que seja excitação e hesitação, desespero e espera, que mantenha a naturalidade da descoberta e a crença da invenção. Desejo abrir ainda mais a poética do olhar, aproveitando a duplicidade sugestiva, a ambigüidade primordial, a estranheza. Fujo dos extremos (nem o sim nem o não), arder no espaço da escolha.

Terceira sede
Fabrício Carpinejar
Escrituras
80 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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