Algo a dizer

Entrevista com Eduardo Giannetti
Eduardo Giannetti, autor de “A ilusão da alma”. Foto: Bel Pedrosa
01/10/2010

Por Rogério Pereira e Fabio Silvestre Eduardo Giannetti tem um propósito: sacudir o leitor, tirá-lo de um estado de inércia e colocá-lo em movimento. Enfim, inquietar, travar um diálogo que mantenha a ressonância por um bom tempo após a leitura. Para tanto, embrenha-se pelo mundo das idéias em A ilusão da alma — projetado, segundo o autor, para ser uma transficção. Ou seja, algo inclassificável entre a ficção e a não-ficção. Nesta empreitada (ou encrenca, como define), Giannetti passou vários apertos, pensou em desistir, deprimiu-se, mas retomou a escrita para finalizar o livro que, para defini-lo de alguma maneira, encaixa-se no gênero “romance de idéias”. Nesta entrevista por e-mail, Giannetti fala das dificuldades na execução do livro, de sua paixão pelo conhecimento, de seus autores preferidos, de como a literatura tornou-se protagonista em sua vida e de seu futuro como ficcionista, entre outros assuntos.

A ilusão da alma é seu primeiro romance. Por que, depois de se consolidar como autor de ensaios, o senhor decidiu investir em um texto literário? Houve alguma motivação especial?
As divisões me incomodam. Sempre sonhei em escrever um livro que não pudesse ser classificado como ficção ou não-ficção. Que fosse uma espécie de transficção. Busco isso porque a vida é assim — atravessa tudo; não tem o menor respeito pelas demarcações acadêmicas ou convenções do mercado livreiro. O eu-soberano, como chega a especular o meu personagem, talvez não passe de uma peça de ficção à qual estamos habituados desde que nos pregaram um nome e passamos a nos tomar por gente. A realidade está permeada de sonho e, o sonho, de realidade. Em Felicidade, criei um diálogo ficcional entre quatro ex-colegas de faculdade que voltam a se reunir de novo, depois de longos anos, para estudar e debater questões de filosofia moral. Vários leitores acreditaram que aquelas pessoas existiam de fato, que eram amigos meus com os nomes trocados, e que o livro era a transcrição de diálogos efetivamente travados. Fiquei feliz ao saber que isso tinha ocorrido. Para mim foi uma prova de que a trama, embora fictícia, parecia real, passava no teste da verossimilhança. Aliás, é por isso que esse livro, assim como optei por fazer em A ilusão da alma, não tem prefácio. Ficção ou não-ficção? O que realmente me importa, ao escrever um livro, não é ensinar ou entreter. É travar uma espécie de contato pessoal com o leitor. É plantar a semente de um diálogo ou inquietação que continue pulsando e frutificando em sua mente muito tempo após o término da leitura. Se isso acontecer, o livro vingou. O gênero será o que tiver de ser. O autor semeia, a leitura insemina.

• Além de Machado de Assis, autor que perpassa a narrativa (seja na voz do narrador, seja nas citações de suas obras ao longo do texto), existe outro escritor de ficção a quem o senhor quis render homenagem neste livro?
Não sei se “render homenagem” é a expressão adequada. A opção por Machado teve dupla motivação. A primeira é que o narrador, meu alter ego, professor de letras e estudioso da sua obra, autor de As rabugens de pessimismo em Machado, aprendeu a escrever com ele (ou pelo menos se esforça para tanto). Sua narrativa está apinhada de construções, fraseados, volteios e ressonâncias do estilo e da sintaxe machadianos. Numa primeira versão do livro, exagerei feio nos maneirismos e fui corretamente alertado por meus editores. Podei boa parte deles, embora menos talvez do que deveria. O fato é que, quando leio Machado, tenho a nítida impressão de estar diante de um texto que não foi propriamente escrito, mas esculpido. Tudo é exato, compacto, apertado; como algo talhado em pedra. Claro e belo. Dá vontade de anotar cada solução de linguagem para uso futuro. E o meu personagem, não menos que eu, é vítima do mesmo fascínio. A outra razão é de ordem substantiva. Creio que há mais riqueza, sagacidade e sutileza filosófica na produção madura de Machado, romances, contos e crônicas, do que muitas vezes nos levam a crer alguns dos intérpretes sociológicos de sua obra. O meu personagem tenta evidenciar isso em diversas passagens do livro, como, por exemplo, ao evocar o “esboço de uma nova teoria da alma”, exposta pelo ex-alferes Jacobina no conto O espelho, assim como eu já fizera em Auto-engano servindo-me de Dom Casmurro. A idéia foi tentar mobilizar a bagagem filosófica de Machado — suas agudas análises de psicologia moral e da propensão ao auto-engano; “personagens dotados de bom senso na sandice”, como dizia Mario Matos; a fauna e a flora das “tergiversações especiosas da mente humana” — para dar tempero à narrativa e, ao mesmo tempo, mostrar a universalidade do seu pensamento, um pouco na linha do que fazem Alfredo Bosi em O enigma do olhar ou, ainda, em outro contexto mas com o mesmo intuito, o filósofo da mente inglês Colin McGinn, em Shakespeare’s philosophy.

• Qual a importância da pesquisa sobre a relação mente-cérebro para a composição do livro? É certo que o senhor possui formação acadêmica e intelectual para dissertar sobre filosofia, mas, no livro, o protagonista atravessa um caso clínico de alta especificidade.
Sem a pesquisa não existiria o livro. Há mais de 30 anos estou com o meu radar de pesquisador ligado nesse assunto. Em minha tese de doutorado, escrita em Cambridge em meados dos anos 80, dediquei dois capítulos à tese do “homem-máquina” e ao trabalho do médico e filósofo iluminista francês La Mettrie, o que quase me custou a reprovação pela banca, pois acharam tudo aquilo um tanto excêntrico num trabalho acadêmico de economia! Só consegui passar porque fui capaz de me defender razoavelmente no exame oral. Perceberam que eu não era tão pateta ou maluco como poderia parecer à primeira vista. De lá para cá, muita coisa aconteceu: as novas técnicas de visualização do cérebro em tempo real; os achados e espantos da neurociência; a psicologia evolucionária; a inteligência artificial; a neuroeconomia. Um dia me ocorreu que valeria a pena investir numa espécie de balanço crítico retrospectivo dos debates travados há 2,5 mil anos por filósofos, teólogos e psicólogos: reavaliar o embate entre mentalistas e fisicalistas, Sócrates x Demócrito, à luz do que sabemos hoje, ou seja, à luz das descobertas empíricas e dos resultados experimentais alcançados nos últimos 20 ou 30 anos. Desde a tese eu tinha comigo a certeza de que um dia voltaria ao assunto, mas foi só a partir daí que nasceu o primeiro vislumbre do livro. O caso clínico do meu personagem — diagnóstico, alucinações, cirurgia — de fato cobrou um esforço e um cuidado adicionais. Além de estudar alguns autores e textos específicos sobre o assunto, como o Oxford companion to the mind e trabalhos de Oliver Sacks, contei com a ajuda de dois amigos, um médico oncologista e uma neurocientista brasileira radicada nos Estados Unidos. Graças a eles, escapei de alguns equívocos embaraçosos e pude ser mais específico e verossímil na narrativa, inclusive nas falas de consultório, quando médico e paciente dialogam.

• A pergunta “O que nos faz ser quem somos?” desafia o narrador e o leitor o tempo todo durante a leitura de A ilusão da alma. O senhor arriscaria um palpite ou teria alguma certeza sobre a resposta?
Se o fisicalismo é verdadeiro, como sustenta o meu alter ego, o La Mettrie das Alterosas, então a noção que nos é tão cara de um eu-unificado e soberano não passa de uma peça de ficção (título que cheguei a propor para o livro, mas que foi prontamente vetado pelos meus editores). O que faz cada um ser quem é o seu cérebro, fruto de um mix de fatores genéticos/nature e formativos/nurture. Eu sou a experiência que o meu cérebro tem de si mesmo. Acontece, porém, que o cérebro de cada indivíduo é um agregado de peças e órgãos funcionando de modo assincrônico, e não há nenhum eu-soberano em seu trono, no palácio da mente, supervisionando e ditando decretos, alvarás e ordens régias para cá e para lá. A noção de um eu-unificado fica, assim, seriamente abalada pelo fisicalismo. A própria expressão “meu cérebro”, por exemplo, não se sustenta: “meu” de quem? Que “eu” é esse a quem o cérebro pertence? Eu sou a experiência que um cérebro particular exala e fabula de si mesmo. Podemos, em suma, estar tão equivocados sobre nós mesmos — imersos na mais espessa névoa de enganos, ilusões e fábulas sobre o que nos faz quem somos e o que nos leva a agir como agimos — como, digamos, o ianomâmi amazônico ou o aborígine australiano nos parecem equivocados acerca das causas do relâmpago, do arco-íris e do trovão. Os antropólogos dos séculos vindouros terão com o que se divertir com os nossos jornais e livros de história, assim como se divertem, desde o século 19, com as fábulas, lendas e mitos das culturas arcaicas pré-científicas sobre o mundo natural.

Eduardo Giannetti por Ramon Muniz

• A ilusão da alma se inscreve dentro do que os críticos classificariam como “romance de idéias”, exatamente por articular ficção e ensaio. Até que ponto essa foi a “única saída” para o livro? Em outras palavras, o senhor imaginou conceber um romance que não tivesse essa levada filosófica?
A opção pela narrativa em primeira pessoa não foi gratuita. O que me interessava, desde o início, não era discutir ou argumentar se o fisicalismo é verdadeiro ou falso. Isso é algo que está além da minha competência, nunca alimentei tal pretensão. A idéia foi mostrar o que acontece com alguém que se converte a esse credo e passa a acreditar seriamente nessa possibilidade. Daí a opção pela primeira pessoa. Eu precisava mostrar como alguém vai paulatinamente se convertendo ao fisicalismo à medida que estuda a relação mente-cérebro, como isso foi se dando à revelia do que ele preferiria acreditar, e como uma pessoa vai perdendo o chão e o pé de si mesma quando começa a trazer tudo isso para a sua experiência pessoal de vida — sua compreensão íntima de si mesma, dos outros e do mundo em que acredita viver. Fiz do meu personagem uma espécie de laboratório de metafísica aplicada, como o médico australiano que ingeriu bactérias para testar uma hipótese sobre a úlcera estomacal (o Nobel de Medicina Barry Marshall). E o que ele acaba descobrindo é que, por mais que tente, não há como metabolizar a enormidade do fisicalismo em nossa experiência comum da vida, assim como não há como assimilar a insignificância cósmica da Terra na ordem das coisas — para todos os efeitos ela permanece, em nossa psicologia e crença espontâneas, como o centro inabalável do universo. O credo fisicalista agride de tal modo tudo aquilo que sentimos e estamos habituados a crer espontânea e intuitivamente sobre nós mesmos que não há como internalizá-lo e enraizá-lo em nossa autocompreensão. Seria como pedir a um neandertal que acredite na chegada do homem a Lua ou na tabela periódica. Quando a atenção relaxa após o esforço reflexivo, voltamos a nos sentir, a falar e a nos relacionarmos uns com os outros como bons e calejados mentalistas.

• Que autor contemporâneo, da literatura brasileira ou estrangeira, o senhor observa realizar esse tipo de narrativa e que, de alguma maneira, lhe serviu de estímulo/desafio?
Não faço muita distinção entre contemporâneos, modernos ou antigos. Gosto de ler como se o autor estivesse se dirigindo a mim naquele exato momento, independentemente do tempo que nos separa. Alguns livros têm me acompanhado há décadas, quase como amigos a quem posso retornar de tempos em tempos. Nunca me canso de revisitá-los. Enquanto me preparava e compunha A ilusão da alma, alguns livros me fizeram especial companhia: Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, um romance narrado em primeira pessoa pela persona dinamarquesa, em oposição à solar-mediterrânea, do poeta; Memórias do subsolo, de Dostoiévski (li os três primeiros volumes da biografia de Joseph Frank para tentar entender como ele chegou a conceber essa obra-prima); O livro do desassossego de Bernardo Soares, alter ego de Fernando Pessoa; O sonho de d’Alembert, romance filosófico de Diderot, com personagens tirados do círculo de amigos do escritor; e A vida dos animais, do romancista sul-africano J. M. Coetzee, no qual a protagonista, uma professora de ética, faz uma série de palestras, reproduzidas in toto no desenrolar da narrativa, sobre a questão dos direitos dos animais.

• Em sua primeira experiência como romancista, houve algum objetivo que o senhor gostaria de ter alcançado, mas, por algum motivo, não conseguiu? A despeito da recepção da crítica e dos leitores, o livro te satisfaz como autor?
Ninguém é bom juiz em causa própria, como dizia Aristóteles. Sei que preciso trabalhar muito para apurar a forma e a capacidade expressiva: dizer mais com menos; deixar o dito pelo não dito; tensionar a arte de dizer o que é mais difícil de se deixar falar. Acho que consegui dar um passo, ousar e arriscar-me um pouco mais dessa vez, mas desejo conquistar ainda uma liberdade interna que não possuo na hora de criar. Se pudesse corrigir uma falha do livro, tentaria rebalancear a desproporção entre narrativa e ensaio na segunda parte — e o tom também. Como disse um amigo, “dá para ouvir o ensaísta Giannetti ali”.

• À página 49, lê-se: “Escritores e cientistas compartem uma ambição: devassar a arquitetura da alma”. Quem se sai melhor nesta tarefa? Por quê?
Cada um tem sua contribuição a dar. O que não se pode aceitar é a redução da arte à condição de inócuo entretenimento; negar a sua vocação cognitiva. No século 18 havia ainda uma forte afinidade e um diálogo profícuo entre arte e ciência. Foi a partir da ascensão do romantismo, no início do século 19, que o afastamento começou a se firmar e foi aos poucos se radicalizando, em prejuízo de ambas. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, depois de se desembaraçar das amarras do positivismo lógico, faz uma observação certeira: “As pessoas atualmente pensam que os cientistas existem para instruí-las, e os poetas, músicos etc. para lhes dar prazer. A idéia de que estes últimos têm alguma coisa para ensinar-lhes — isto não lhes ocorre”. Penso que há mais conhecimento verdadeiro acerca da psicologia profunda do animal humano num romance de Dostoiévski ou de Machado do que em dezenas de tratados sisudos de psicologia acadêmica. E, ao dizer isso, não estou só. Veja o que escreve, por exemplo, o eminente psicólogo e lingüista americano Steven Pinker em Tábula rasa: “Os cientistas e os intelectuais não são as únicas pessoas que se dedicaram a examinar como a mente funciona. Todos nós somos psicólogos e algumas pessoas, sem o benefício de credenciais, são grandes psicólogos. A este grupo pertencem poetas e romancistas cujo ofício é criar representações justas de natureza geral. Paradoxalmente, no clima intelectual de hoje os romancistas podem ter um mandato mais claro do que os cientistas para dizer a verdade sobre a natureza humana. (…) Poetas e romancistas têm feito muitos dos pontos deste livro com mais sagacidade e penetração do que qualquer escrevinhador acadêmico poderia esperar fazer”. Se os cientistas se interessassem mais pela arte e, os escritores e artistas, pela ciência, todos sairiam ganhando.

• É correto afirmar que existe certa afinidade entre suas obras mais recentes — O valor do amanhã, O livro das citações e A ilusão da alma? Ou seja, para além do fato de os livros terem sido assinados pelo mesmo autor, existe um tecido literário que os aproxima ou, como a própria classificação pressupõe, são textos diferentes e que não dialogam de forma alguma entre si?
A afinidade, para mim, é clara — e não só com os livros citados na pergunta. Às vezes chego a me surpreender quando constato como certas preocupações e possibilidades estavam já despontando em livros mais antigos, mas só vieram à tona tempos depois. O embrião de Auto-engano, por exemplo, está no prefácio de Vícios privados, benefícios públicos?, embora na época eu não estivesse ciente do que faria anos depois. No caso de A ilusão da alma, a inquietação em torno da relação mente-cérebro e do fantasma do fisicalismo percorre um fio contínuo que veio se tecendo desde pelo menos O mercado das crenças, um livro pesadamente acadêmico publicado na Inglaterra em 1991, mas que só saiu traduzido no Brasil em 2003. Em Felicidade, há um diálogo inteiro sobre a conjectura de uma “pílula da felicidade instantânea”. E por aí vai. Imagino que todo autor carrega suas obsessões. Eu também tenho as minhas.

• Como romancista, o senhor enfrentou dilemas diferentes daqueles de quando escreveu ensaios? A tela em branco, por exemplo, assustava mais agora do que das outras vezes?
Creio que subestimei o tamanho do desafio (para não dizer encrenca!) que estava comprando quando embarquei no projeto deste livro. A principal dificuldade foi encontrar o tom certo e dar o acabamento literário necessário à veia narrativa da trama. Não cabe a mim, é claro, dizer se consegui — sei que sempre poderia ter ficado melhor (ou menos ruim) do que ficou e que poderia continuar trabalhando no texto pelo resto dos meus dias; mas certamente aprendi como em nenhum outro livro à medida que ouvia e recebia as críticas de quem ia lendo e comentando o que eu fazia. A certa altura do trabalho o massacre foi de tal ordem que tive um momento de dúvida radical, deprimi e cheguei a pensar em abandonar o projeto original e transformá-lo num simples ensaio, como nos livros anteriores. Seria a saída mais fácil. Depois recuperei as forças e reemergi. Resolvi enfrentar a parada e voltar à carga. Fiz uma revisão completa e minuciosa do texto, joguei muita coisa no lixo, e decidi separar completamente o fio narrativo, em primeira pessoa, das anotações que o personagem fazia em seus cadernos de estudo à medida que avançava nas investigações e procurava refletir sobre o que vinha descobrindo. Mostrei aos meus editores e para alguns outros leitores que haviam criticado as primeiras versões e eles acharam que estava melhor agora (ou que eu já tinha apanhado o suficiente). Nunca apanhei — e aprendi — tanto como autor.

Eduardo Giannetti por Ramon Muniz

• Como é o seu método de composição/criação? O senhor possui algum tipo de estratégia para a feitura de seus textos em geral? E para este livro, seu primeiro romance, em particular?
Falo com desenvoltura, aulas, palestras, entrevistas, mas escrevo com enorme dificuldade — um parto. Se as pessoas soubessem a quantidade de vezes que reescrevo uma frase (esta por exemplo), antes de considerá-la apta a ficar como está, talvez me julgassem insano ou tivessem dó de mim. Daí a minha relutância em aceitar compromissos de produção de textos escritos. Falar em público é razoavelmente fácil e tranqüilo para mim, adquiri razoável fluência com a prática; mas parir um texto, por mais banal, é sofrimento na certa, principalmente o começo. Sempre é assim. O computador sem dúvida alterou o meu processo criativo. Seria impensável reler e corrigir e tornar a reler e emendar tantas vezes o mesmo texto se ainda precisasse escrever à mão ou numa máquina de escrever. Não sei por que é assim comigo, mas posso garantir que é um processo extremamente laborioso, como polir lentes ou praticar escalas musicais. Imagino que tenha a ver com alguma fantasia obscura de permanência da palavra impressa. Como se uma frase obscura ou mal-ajambrada pudesse me cobrir de vergonha ou condenar-me às chamas do inferno por toda a eternidade.

• Qual é a sua rotina como escritor? O senhor possui algum tipo de idéia fixa?
Cada autor tem suas idiossincrasias. A condição essencial, para mim, é a absoluta concentração na tarefa: “pureza de coração é desejar uma única coisa”. Depois de muitas tentativas frustradas de conciliar a minha atividade autoral com o meu dia-a-dia de professor universitário e economista em São Paulo, percebi que não tinha jeito. Não consigo dar uma entrevista sobre, sei lá, a crise cambial e o déficit da previdência de manhã, e escrever sobre o neolítico moral e a maiêutica socrática à tarde. A saída foi separar de uma vez por todas, no tempo e no espaço, essas atividades. Quando estou em São Paulo, não alimento qualquer pretensão de escrever algo mais elaborado e reflexivo. Convivo com a dispersão da atenção e estou aberto e disponível para as demandas que a minha atividade profissional regular suscita. Vivo disso. É o que paga as contas no fim do mês e me permite escapar, por alguns meses, de tempos em tempos. Mas quando é para mergulhar em um novo projeto de livro, faço as malas e parto para um período sabático de completo isolamento. Pode ser no interior de Minas ou em Oxford. O crucial é que a vida prática seja a mais simples possível e nada me desvie da concentração na tarefa. Paro de ler jornais e revistas, não assisto tevê, não ouço rádio, não uso telefone nem acesso a internet. Levo alguns poucos livros, escolhidos a dedo, e leio relativamente pouco. Como fico absolutamente só, mesmo quando não estou trabalhando, ao fazer uma refeição ou caminhar a pé, por exemplo, eu sei que, na verdade, estou trabalhando. Passo a dormir muito cedo e a acordar com o nascer do dia, a cabeça a mil. Uma regra de ouro nesses períodos é jamais sucumbir à tentação da pressa. Posso passar dias e dias sem escrever uma única linha, como aliás sempre acontece no início do trabalho. Aí eu me lembro do que dizia o poeta inglês Alexander Pope: “Por aquilo que publico, eu peço apenas a compreensão dos leitores; mas, por aquilo que descarto e atiro à cesta de lixo, mereço o aplauso imortal”. Uma hora, contudo, o trenzinho apita e sai da estação. Quando volto de uma temporada dessas, tenho a sensação de ter mobilizado forças a que normalmente não tenho acesso. Não é que lá eu faço em meses o que teria me consumido vários anos de trabalho em São Paulo — a comparação relevante não é essa. É que lá, de algum modo, consigo fazer o que eu jamais teria feito no meu cotidiano paulista, mesmo que tivesse todo o tempo do mundo.

• De que maneira o senhor tornou-se um leitor? Como a literatura fez-se protagonista em sua vida?
O meu ponto de inflexão é claro em retrospecto. Apaixonei-me pela leitura e pelo mundo do pensamento aos 16 anos de idade. Cursava o segundo ano do ensino médio no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, e tivemos um curso chamado “Metafísica”, dirigido pelo padre católico canadense Charbonneau. Entre as leituras do curso, sobre as quais tínhamos de redigir ensaios interpretativos, estavam: Kafka, Carta ao pai e O processo; Sartre, As palavras e A náusea; Camus, A peste; Dostoiévski, Os irmãos Karamazov; e, por fim, como ponto culminante e antídoto contra o niilismo moderno, um livro do teólogo Teilhard de Chardin (não me recordo o título…). Para o bem ou para o mal, acho que continuo fazendo esse curso até hoje e nunca me recuperei do impacto que tais leituras tiveram no meu cérebro adolescente. Lembro como fui violentamente tragado por aquele mundo de idéias, como conversava horas a fio com amigos de escola sobre tudo aquilo, as tentativas de colocar as minhas idéias e inquietações nas redações, e o patético anticlímax do desfecho católico-teológico, quase uma piada insípida perto do que tínhamos lido antes. De um modo obscuro a princípio, mas bastante claro em retrospecto, percebo como foi precisamente a partir dali que se fixou em mim o desejo de passar o resto da vida habitando e respirando de algum modo a atmosfera daquelas leituras.

• O senhor concorda com filósofos como Luc Ferry que defendem que as pessoas seriam mais felizes se se aproximassem mais da filosofia e menos de Deus?
A idéia me faz lembrar um epigrama de Goethe: “Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!” Tudo vai depender, é claro, do que se entende aqui por “filosofia” e por “Deus”. Não acredito nem desacredito em “Deus” — considero-me um agnóstico, ou seja, não sei. Na verdade, nem sei direito o que uma pessoa tem em mente quando declara que “acredita (ou não) em Deus”. A fivela do cinturão dos soldados da Wehrmacht nazista trazia a inscrição: Gott mit uns (“Deus está conosco”). Os americanos, mais pragmáticos, elegeram as suas moedas e notas de dólares para louvar o ser divino: In God we trust (“Em Deus confiamos”). O líder e general puritano, Oliver Cromwell, dizia: “O soldado que reza melhor combate melhor”. Será que as pessoas estão falando da mesma coisa quando declaram ou se matam umas às outras porque acreditam ou não em Deus? Tanto “Deus” como “a filosofia” podem ser fontes da mais completa felicidade ou infelicidade. Mas será que devemos acreditar ou deixar de acreditar em algo porque isso nos faz mais ou menos felizes? Quanto aos autoproclamados “ateus militantes”, que se propõem a tratar “a existência de Deus como uma hipótese científica como qualquer outra”, Richard Dawkins à frente, não sei o que mais me espanta: se é a falta de tino e a superficialidade que revelam diante das necessidades espirituais do homem ou a fé ingênua da maioria dos crentes e devotos aos quais se opõem. Ao equívoco de buscar respostas científicas na religião corresponde o equívoco simétrico de buscar respostas religiosas na ciência.

• O narrador encerra A ilusão da alma com um desafio — “Refute-me se for capaz!”. O senhor gostaria que outro autor aceitasse o desafio e voltasse a atenção (de maneira ficcional) ao tema abordado no seu romance?
A frase que encerra o livro é a frase que encerra o livro do herói do meu personagem, o L’homme machine de La Mettrie. Tenho recebido mensagens de leitores que aceitam o desafio proposto e tentam me convencer de que refutaram o fisicalismo. Acontece que eu não sou o meu personagem. É curioso. Desde que comecei a mostrar as primeiras versões do livro a alguns amigos cientistas e escritores, notei que a minha relação com o narrador era curiosamente ambígua: quando alguém o defende, como tendem a fazer os cientistas (uma jovem neurocientista chegou a declarar — “Então você é um dos nossos!”), o meu impulso é atacá-lo; mas, quando alguém o ataca, como fizeram alguns amigos mais ligados à área de humanas e literatura, houve quem se sentisse quase pessoalmente ofendido pelas idéias apresentadas no livro, o meu impulso é defendê-lo. De uma coisa, porém, estou certo: se alguém conseguir refutar conclusivamente o fisicalismo, com alguma teoria ou descoberta empírica passível de aferição pública, receberá com certeza um prêmio Nobel pelo extraordinário feito. Torço para que isso aconteça!

Eduardo Giannetti por Ramon Muniz

• O senhor pretende seguir produzindo ficção? Há outro livro a caminho?
Sim, pretendo dedicar-me cada vez mais à literatura. Mas, como disse no início, não aceito as divisões convencionais entre gêneros, disciplinas ou escolas. Por que se resignar a essas amarras — ficção ou não-ficção, popular ou erudito, prosa ou poesia? O importante é ter algo a dizer — algo que se torna imperioso compartilhar —, e não poupar esforços para dizê-lo tão bem e tão belo quanto se é capaz. É pensar por conta própria e ter a coragem de correr riscos. Quero conquistar uma liberdade que me escapa — na vida e na obra. É isso que me faz sentir vivo.

LEIA RESENHA DE A ilusão da alma — Biografia de uma idéia fixa, ROMANCE DE EDUARDO GIANNETTI

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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