A vingança do ficcionista

Leia a entrevsita com Xico Sá
Xico Sá, autor de “Big Jato”
01/03/2013

Por Guilherme Magalhães, Rodrigo Casarin e Yasmin Taketani
Curitiba – PR e São Paulo – SP

No Vale do Cariri, início da década de 1970, um menino acompanha seu pai, conhecido como “O Velho”, na boléia de Big Jato. É o caminhão limpa-fossas que garante o sustento da família — “tudo que a gente ganha vem da merda” — e o espírito trabalhador do pai que orgulha o menino. Mas sua formação é dividida entre outros modelos, como o tio beatlemaníaco, “veado, maconheiro e vagabundo”, e é influenciada pela própria região, que avança por uma estrada esburacada rumo à modernização.

Esta é a história de Big Jato (leia resenha na página 5), novo romance de Xico Sá. Nascido no Crato, Ceará, em 1962, Xico Sá começou a carreira de jornalista no Recife, atuou como repórter investigativo e publicou livros de contos e crônicas, como Chabadabadá e Modos de macho & modinhas de fêmea, e atualmente é colunista da Folha de S. Paulo e comentarista dos programas “Saia justa” (GNT) e “TV Folha” (Cultura). No prólogo do autobiográfico Big Jato, o autor profetiza: “Se um homem não conta, é um homem morto”. Vivo que é, Xico Sá se muniu do filtro da ficção, enfrentou a “maldição do cronista” e escreveu sua vingança contra o passado. Nesta entrevista, realizada via e-mail, Xico Sá fala sobre a escrita do novo livro, a “dama conservadora” que é a crônica e a característica de rir da própria desgraça, entre outros temas.

• No prólogo de Big Jato, você escreve: “Tudo isso estava muito guardado. Agora emerge por força superior”. Como definiria essa força que o impeliu a colocar as histórias no papel?
Faltava o poder da ficção, o filtro da ficção, a lente da ficção. Havia um rascunho ainda muito fiel ao vivido, uma noção quase documental e, de certa forma, piedosa. Queria outra coisa, uma espécie de vingança contra o passado. Não há melhor vingança do que o dia em que você diz: opa, agora parece a maior mentira do universo, a trapaça venceu inclusive o inconsciente, manchou de vez as lembranças encobridoras, agora tenho uma verdade mínima na mesa, a verdade que só um ficcionista alcança. O autor mente muito, como no título do livraço de Carlos Sussekind e Francisco Daudt. Creio ter alcançado minimamente o sagrado altar dos mentirosos.

• Sendo um romance autobiográfico, qual o efeito que a escrita de Big Jatode revisitar e ficcionalizar o passado — teve sobre você? Por que a ficção se fez necessária para contar essa história?
Nada mais farsesco do que inscrever um livro como autobiográfico. Aí começo a funcionar como ficcionista. No prólogo, uso meu amigo Kurt Vonnegut como escudo: tudo isso aconteceu, mais ou menos. Se lesse meu livro e acreditasse que eu era o seu filho, no modo que está no Big Jato, meu pai me assassinaria da forma mais greco-cratense — cratense de Crato, a cidade onde nasci. Graças a Deus é um homem da roça, vive isolado no seu rancho, na sua cachaça metafísica e nas suas caçadas de avoantes e tatus, jamais vai perder seu tempo com certas leituras. Sorte de nós todos. Mas o pior é que eu chorava como um desalmado, em certas partes da escrita. Principalmente nas partes mais inventadas. Vai entender o diabo da ficção! É poderosa. Você inventa para fugir, ela nos pega como uma nova verdade mais lascada e sofrida ainda. Uma sucuri que nos engole como a um boi no pântano.

Big Jato, estruturado em 33 capítulos, começou na forma de contos. O que o fez transformá-los em um romance? Como foi a passagem de contista e cronista a romancista?
Era um conto só, com várias versões, mas um relato bem capenga, desajeitado, embora já contemplasse a merda toda do limpa-fossas do Velho, o personagem principal. Os amigos Joca Terron e Ronaldo Bressane leram e começaram a me botar pilha para esticar e explorar a idéia, digo, a merda. Isso há séculos, uns sete anos atrás. Deixei pra lá. Quando retomei, em 2011, o livro saiu num jato só, aí sim foi importante a prosódia do Cariri, onde se passa a suposta história. Voltei lá para treinar o ouvido. Juntei a isso releituras do meu escritor brasileiro predileto, Graciliano Ramos, e tudo que é romance e crônica dos picarescos de Espanha — daí o humor, creio. Aqui mesmo neste jornal [edição #152], o escritor Raimundo Carrero fez uma crítica que me deixou corado, metido e achando que valeu a pena ter rabiscado o tal volume. Ele exagerou dizendo que o Lazarillo de Tormestinha agora a companhia de um livro brasileiro, o Big Jato. Isso foi de arrombar de bom. Agradeço a Deus por ele ter visto a influência dos miseráveis pícaros espanhóis. Estes mesmos pícaros que se parecem muito com as narrações populares ou dos cordéis nordestinos. Ora, essa coisa é muito da minha formação como leitor pícaro-picareta e de escritor idem. O anti-heroísmo soy yo.

• Temas de suas crônicas — como mulher, masculinidade, futebol, vida nordestina e cultura brega lado a lado com a alta cultura — estão presentes também em Big Jato. O romance permitiu, de alguma forma, que você desse a eles uma densidade que não cabia na crônica?
O livro tem todas as virtudes e todos os defeitos que tenho como cronista. Inclusive os temas. E olhe que, durante a escrita, a grande paranóia era não deixar a crônica tomar conta da parada. Dizia pra mim mesmo: fdp, agora você é um ficcionista, chega! Mesmo assim, foi impossível evitar a contaminação, mesmo armado de todos os repelentes e escudos. Ao final, fiquei com a sensação de que o amor e o sexo, temas tão comuns a tudo que escrevo, não estavam presentes como deveriam, embora existam cenas de cabarés, leilões de virgens para gringos e a iniciação sexual do guri. Acabei me conformando: ora, àquela altura eu mal sabia o que era uma fêmea direito. Havia me deitado apenas com cabritas. A memória não poderia me trair nessa hora.

• Qual a sua definição de crônica?
É o PF da literatura brasileira. Arroz, feijão, bife e um ovo estrelado por cima. E tem coisa melhor, amigos, na hora da fome canina? É o gênero vira-lata por excelência, por isso tanto me encanta. Na minha crônica mais metalingüística, solene definição para a falta de assunto em cima da hora do fechamento do jornal, defino assim o ofício de cronista: algumas crônicas nascem fáceis, como aparentam aquelas de Rubem Braga, como uma polaroid, uma pose digital, olha o passarinho, olha a borboleta amarela, diga xis, um sabiá teimando contra o barulho da metrópole. Fáceis como beijos roubados de mulheres difíceis… Outras nascem na dança, na pista, uma moleza, como empurrar bêbado em ladeira, como Vinicius no elogio de uma saboneteira, como descer para um café ou uma cerveja lá na esquina da Augusta.

• A crônica brasileira vive um bom momento? Qual a marca mais visível dos cronistas em atividade?
Continuamos no arroz, feijão, bife e um ovo estrelado por cima. Mesmo no caso de um gourmet, como o Verissimo, nosso melhor cronista, mestre da área. A crônica é uma dama conservadora, mudou quase nada depois de Rubem Braga. Não existiria a minha crônica esportiva, por exemplo, sem a matriz deixada por Nelson Rodrigues. A minha crônica amorosa é requentada, e isso eu acho um luxo, de Paulo Mendes Campos e Antônio Maria, dois caras que leio como orações diárias. Só acrescento farinha e pimenta, por causa da minha origem, no PF. E uma cachacinha, obviamente. A matriz é a mesma dos anos 1950 até hoje, incluindo uma certa porção de subliteratura, faz parte — como uma porção de viagem na maionese.

• Numa entrevista, você comenta que escreveu Big Jato para enfrentar a maldição do cronista, “o sofrimento de não arrematar tudo numa frase de efeito, não deixar a crônica tomar conta”. Durante sua escrita, descobriu alguma “maldição do romancista”?
A gente descobre de cara a maldição do romancista: será que este personagem tem capacidade de andar com as próprias pernas, mesmo as pernas curtas da mentira? Arte maldita. E tem o diabo da voz, uma afinação de possessos, eco de casa mal-assombrada. Estou longe de entender dessas coisas. Pior é que a maldição vicia: já estou no embalo de um novo sofrimento como ficcionista. Quando falo em matar a maldição do ficcionista, trato da maldição do ficcionista em português. Em portunhol selvagem, língua dos meus mentores Douglas Diegues e Wilson Bueno, sou veterano, me aventurei em muitas narrativas publicadas inclusive no Paraguai, minha verdadeira pátria, afinal de contas a pátria de um hombre é a pátria do seu uísque, por supuesto.

Xico Sá

• Do Crato até São Paulo, como sua formação cultural — e literária, por extensão — foi construída? O que lhe fez optar pela “alma de poeta”?
Entre o Cariri — além do Crato, vivi em outras cidades da região — e São Paulo, tive a sorte de morar, estudar e beber no Recife. Minha educação sentimental e literária, mesmo ainda precária e mobralesca, devo a esta cidade e aos seus escritores e poetas. Cheguei lá ainda jovem, na casa dos dezesseis, mas dei a sorte de conviver com muitos mestres, que me indicavam e cobravam leituras nas mesas dos bares —melhor lugar para tal cobrança a um mancebo —, como Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Paulo Bruscky — que julgo o maior artista plástico brasileiro —, Jomard Muniz de Britto, José Carlos Targino, Raimundo Carrero — com quem trabalhei em um jornal da Universidade Federal de Pernambuco — e tantos outros. Sem querer esnobar, ainda dei a sorte de uma breve convivência com Gilberto Freyre, que me dava porres enormes de licor de pitanga — bebida que ele julgava como invenção sua e a mais incrível do planeta — e João Cabral de Melo Neto, quando das suas férias em Pernambuco. Como não tinha capacidade de conversar de verdade sobre poesia com João Cabral — mal eu tinha lido o ABC do Pound e O arco e a lira do Paz —, inventava umas entrevistas mandrakes, pois eu já era repórter — cheguei a publicar uma no Jornal da Tarde. Mas nossa grande conversa era mesmo sobre futebol. Ele jogou no América (do Recife) e no Santa Cruz. Um dia, quem sabe, publico essa prosa futebolística.

• Os pais do narrador desprezam os livros, preferindo a objetividade da matemática e o suor do trabalho como possibilidades de se levar uma vida melhor. Que resposta daria ao Velho quando este pergunta: “Inteligente para quê? Para pensar até sobre uma folha que cai sobre a terra? Que adianta?”.
Na vida real, esse era mais o espírito de um avô do que do meu pai. Meu velho nunca foi de livros, sempre esteve no pequeno comércio de bodegas, feiras e na roça. Mas eu queria cutucar também essa crença exagerada e iluminista de que os livros salvam. O personagem faz o elogio da vida prática, rasteira, direta, a vida de pobre, em contraposição ao tio doidão beatlemaníaco e à tia bibliotecária, responsável também pela perdição sonhadora do guri. É ela que aplica os [Charles] Dickens no pequeno infeliz.

• O menino cresce entre a masculinidade bruta do pai e um cosmopolitismo emergente do tio, que representam as mudanças culturais no sertão na época, marcado pelo conflito entre o novo e o velho, entre a tradição e a tecnologia. Dessa mistura, o que resultou?
O bom confronto se repete hoje, em bases mais radicais, globalizadas e com as novidades made in China. Até alguns fetiches da mitologia sertaneja, como produtos do padre Cícero, são fabricados no Oriente. Uma das raras virtudes do meu livro é ser um romance no sentido de demarcar uma crônica de costumes de uma época, entre o rural e o urbano, em um momento em que o Brasil estava aderindo a um novo tempo: a migração em massa, deixando lugares como o meu às moscas, em busca da metropolização, etc. Quem foge, como o suposto herói da saga, foge com medo da extinção, como um animal desesperado.

• Independentemente do gênero, seus textos sempre são tidos como divertidos. Não é diferente com Big Jato: amor não correspondido, trabalho pesado do pai, “bullying” dos colegas de escola, vida dura no sertão, inflação, tio “vagabundo” e os sofrimentos tradicionais dos adolescentes são tratados com graça, mas poderiam muito bem compor um drama. O que o leva em direção ao humor?
Creio que seja esse negócio de rir da própria desgraça. De novo voltamos aos pícaros-picaretas da glória de estar vivos. Mas se for buscar nas minhas leituras, também é Gógol puro: acredito no nariz e no capote desse russo como as duas peças mais incríveis e bonitas da literatura. Tenho muitos motivos para expor minhas dores em forma de tiração de onda.

• No momento em que se passa a trama, início dos anos 1970, o futebol desempenhava no imaginário popular um papel muito mais vivo do que hoje. Existe um “descaso” com o futebol na literatura brasileira contemporânea?
Sim, na ficção existe, embora a família Sant’Anna, a melhor família de ficcionistas brasileiros hoje, tenha feito de tudo para salvar a ficção ludopédica. Pegue O paraíso é bem bacana, do André, um livraço, uma história de futebol cosmopolita, com neguinho saindo do futebol de praia e do Santos para ser um Mané Mohamed (cito aqui de cabeça sem puerra nenhuma de Google), uma história internacional que antecipa muitos conflitos do futebol em estádios da Europa. Genial. É a melhor ficção sobre futiba do mundo, melhor até que o Peter Handke de O medo do goleiro diante do pênalti, que tem apenas quinze minutos de bola rolando, o resto é o drama da humanidade fora das quatro linhas, como se fosse qualquer pecinha grega da vida. Aí, para completar, você pega esse último do Sérgio, pai do André, obviamente, tricolor das Laranjeiras doente: Páginas sem glória. O mesmo tricolor que já havia escrito contos memoráveis mata a pau sobre um anti-herói futebolístico.

Sexo é um tema recorrente nos seus textos e comentários. Por que ele é tão mal retratado na literatura? Que autores conseguem transpor com maestria o ato para palavras? Soft porn lhe agrada?
Se é soft, não é pornô, muito menos sexo. Sexo é sujo e sagrado ao mesmo tempo. Aí é sacanagem competir com Henry Miller. Quase todo escritor brasileiro, pelo que escrevem sobre isso, toma banho depois do sexo.

LEIA RESENHA DE BIG JATO.

Guilherme Magalhães

É jornalista.

Rascunho