Juventude escatológica

Em "Big Jato", Xico Sá potencializa as características de sua prosa para ficcionalizar seu passado
Xico Sá, autor de “Big Jato”
01/03/2013

Big Jato, de Xico Sá, é uma merda.

Mas é repleto de qualidades, a começar pelos personagens e pela história, baseada na vida do escritor, como podemos perceber já no prólogo. “A história que vem a seguir […] é verdadeira. Estiquei ao máximo a corda da verossimilhança. Quase no pescoço”, escreve Xico, logo depois de usar uma citação de B. Traven em Viagem noturna: “De certa forma, uma história não significa nada a menos que você mesmo a tenha vivido”. Para finalizar, antes de sermos levados ao Vale do Cariri durante a primeira metade dos anos 1970, o veredicto sobre o teor autobiográfico do que vem a seguir: “Tudo isso estava muito guardado. Agora emerge por força superior. Se um homem não conta, é um homem morto”. Em seguida, entramos definitivamente no que podemos supor seja parte do passado, ainda que romanceado — leia-se “ficcionalizado” —, de Xico Sá. Um passado vivido praticamente na merda.

Apesar de a história ser quase que integralmente (dois capítulos são exceção) contada por uma criança entrando na adolescência — e acreditamos representar o autor —, o grande personagem de Big Jato não é esse narrador, mas seu pai, conhecido como “o velho”, que logo descobrimos nem ser tão velho assim. Resmungão do tipo que só fala quando bêbado, bronco que finge não ter sentimentos, trabalha com o Big Jato, um caminhão de limpar fossas. Ou seja, é uma pessoa cuja vida é feita — com sucesso — sobre a merda alheia. E se orgulha disso: o Big Jato é de suma importância para toda a família, é dele que vem o sustento da casa e é graças e ele que começam a enriquecer.

Com a maleabilidade típica de uma criança, o garoto narrador arquiteta sua relação com o pai — que paulatinamente ganha intensidade e entrosamento — em alicerces escatológicos. A única pessoa que parece se incomodar com o ramo de negócios do velho é sua mulher, uma dona de casa com horror ao vento — provavelmente por ser o culpado por trazer o cheiro de merda do Big Jato para dentro de casa, cheiro que está sempre impregnado em seu marido.

Outro personagem importante e bastante marcante na obra é o tio do menino, irmão gêmeo do velho, mas com personalidade praticamente oposta — de igual, apenas o fanatismo pelos Beatles. Um vagabundo de primeira, que nutre horror imenso e declarado pelo trabalho, exemplo do que o velho não quer para o seu filho. Ironicamente, é esse tio o responsável por encaminhar o garoto para o seu primeiro emprego, numa rádio da cidade.

Contudo, o trabalho na rádio dura pouco. Logo o rapaz precisa assumir o Big Jato por causa de uma doença que deixa o velho de cama. Para decepção da mãe, agora é o filho que sai pelas ruas do Cariri para recolher a merda dos outros. É grande o desgosto da mulher ao ver a cria herdar do pai o gosto pelas fezes alheias.

Toda essa história é contada com a ajuda de referências diversas. Há diálogos com outras obras literárias, como O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, e Grandes esperanças, de Charles Dickens, e ícones da cultura pop, como o filme O exorcista e os próprios Beatles, além de comparações relativamente sofisticadas — o pai remete a Apolo e Graciliano Ramos; o tio, a Dionísio e Vinícius de Moraes. São elementos dignos de alguém que já tem uma boa bagagem cultural e amplo repertório, alguém que volta a uma história depois de bastante tempo, não de um menino da década de 1970.

Putaria e seriedade
No começo do livro, Xico parece acanhado, como se estivesse intimidado por estar escrevendo um romance. Contudo, não demora a mostrar suas melhores marcas. Quem acompanha o trabalho de Xico Sá em seu blog ou no jornal Folha de S. Paulo sabe que uma das principais características do escritor é a prosa bem-humorada, repleta de sacanagem, filosofia de boteco e clichês que se transformam em grandes adágios. Tudo isso também está em Big Jato. Os conhecimentos mais profundos dos personagens parecem vir diretamente dos lugares mais comuns, as sacadas são ótimas e a fixação do garoto por quem realmente faz cocô (“até o papa?”) rende diálogos escatologicamente bem-humorados. A maneira como Xico trata o sexo — que muitos dirão ser pornográfica — também proporciona grandes momentos. Eis um deles: “Se tem uma dupla que toca de ouvido, é pau e boceta, mondrongo e racha, pra-te-vai e chibiu, cara e periquito, rola e xoxota, pênis e vagina, como dizem os compêndios escolares”.

Entretanto, o livro não é somente isso. Em algumas oportunidades, Xico também acaba por retratar a triste situação do sertão brasileiro, mas faz isso de maneira leve, quase que superficial. Os problemas abordados — a seca, a falta de comida, o passado sangrento, a escassez de opções para diversão, o pouco valor à vida, a violência cotidiana, a mortalidade infantil… — aparecem no dia-a-dia dos personagens como algo trivial, que não desperta atenção de quem vive naquela realidade.

Ao final, baseado na merda, Xico constrói um bom e divertido livro.

LEIA ENTREVISTA COM XICO SÁ.

Big Jato
Xico Sá
Companhia das Letras
184 págs.
Xico Sá
Nasceu no Crato (CE), em 1962. Começou a carreira de jornalista no Recife, e atuou muitos anos como repórter investigativo. É colunista da Folha de S.Paulo e comentarista dos programas “Saia Justa” (GNT) e “TV Folha” (Cultura). Autor de vários livros de contos e crônicas, faz parte de Essa história está diferente, ficções sobre músicas de Chico Buarque.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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