Por Fernanda Vilar e João Augusto Aidar Filho
Javier Cercas é um dos escritores espanhóis mais lidos e comentados da atualidade. Nascido em Ibahernando, em 1962, obteve sucesso mundial com Soldados de Salamina (2001), romance vencedor de vários prêmios, traduzido para mais de 25 línguas e adaptado para o cinema e o teatro. Neste livro, Cercas retrata um episódio real da Guerra Civil Espanhola e apresenta-nos uma interessante personagem deste período: Rafael Sánchez Mazas (1894-1966), escritor, jornalista e ativista político que, durante sua fuga em direção à fronteira francesa, escapou de um fuzilamento em massa. Para investigar este momento fundamental de sua vida, surge no livro a figura de um jornalista homônimo do autor. Ficção ou realidade? “É realidade na medida em que o romance foi escrito a partir de relatos de pessoas reais. Mas seria tudo verdade o que elas contam? Quanto de fantasia não há nesses relatos?”, questiona Cercas.
Também professor de literatura na Universidade de Girona, tradutor e colaborador do jornal El País, Cercas foi professor na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, quando era estudante de doutorado, época indiretamente representada em El inquilino. A experiência no estrangeiro permitiu-lhe compreender melhor seu próprio país, de forma que seus romances lançam um olhar crítico sobre a história da Espanha. Buscando ir além das inúmeras versões para o evento de 23 de fevereiro de 1981 e descobrir o que de fato acontece durante a tentativa de golpe de Estado no país, Cercas escreveu Anatomia de um instante, desestabilizando novamente as fronteiras entre ficção e realidade.
Na entrevista a seguir, realizada em um hotel em Lyon, na França, durante o evento literário AIR (Assises Internationales du Roman), Cercas fala sobre esta relação entre fato histórico e imaginação, influências literárias, seu discreto início de carreira, o peso da crítica e autoficção, entre outros temas.
• Em seus livros, existe uma diferença muito sutil entre gêneros textuais — relato histórico, narrativa literária, crônica. Antes de publicar seu primeiro livro, o senhor sabia que comporia sua obra desta maneira?
Não, claro que não, levando em consideração que sou alguém que vem da província, de uma cidade muito pequena onde não havia nenhuma tradição literária. E minha família não tem nada a ver com literatura, é do campo. Meu avô gostava de ler, mas não tem ninguém de letras. Fui morar em Girona [na Catalunha] e não conhecia nenhum escritor. Para mim, escritor era Kafka, Borges; ser escritor era como alguém que ganha na loteria, não dá para todo mundo conseguir sê-lo e não se encontra com um pela rua todos os dias! Era uma opção muito remota e o escritor também era uma figura longínqua. Eu nunca pensei que viveria de literatura. Até os 40 anos, eu nunca havia sido lido. Lembrei há pouco de uma história curiosa: eu tinha 39 anos quando publiquei Soldados de Salamina. Até então tinha escrito umas histórias que a minha mãe e alguém mais tinham lido. Eram poucos, mas bons leitores. Roberto Bolaño era muito amigo meu. Ele tinha um sentido muito aguçado da literatura — eu tinha outra visão. Bolaño dizia que era importante ter amigos na literatura. Eu tinha 38 anos quando se publicou um livro chamado Páginas amarillas, […] com todos os escritores da minha geração. Salvo eu, o único que não estava. Bolaño me liga e diz: “Viu? Você tem inimigos muito poderosos”. Eu disse: “Mas Roberto, eles me suprimiram porque não me conhecem!”. E era verdade. Eu não sou como o André Gide, que antes de escrever já tinha todos os seus livros na cabeça. Mas não, sobre a obra, nunca pensei nela assim.
• O senhor se inspirou em alguém para compô-la desta maneira?
Vamos ver, a Wikipedia diz várias coisas sobre mim. São todas incorretas. Ela diz que eu vivi em Tarragona, estudei com jesuítas… Bom, eles também dizem que eu virei escritor por Jorge Luis Borges, e na verdade é o contrário! Eu demorei muito para ser escritor por causa do Borges, porque foi um escritor muito importante para mim. Eu tinha 15 anos quando o li, quando o descobri com meus amigos e com uma professora. Eu lia Borges e pensava: “ninguém pode fazer algo melhor, isso é fabuloso!”. E isso me deixou louco! Não só era um escritor fabuloso, mas escrevia na minha língua. Auden diz que escolher um grande escritor como modelo pode ser fatal. Ou seja, alguém com 17 anos que escolha Shakespeare como modelo está perdido, não será escritor nunca. [Auden] dizia que para ele Thomas Hardy, que é um bom poeta menor, era uma inspiração, não seria capaz de aplastar-lhe [esmagar] como pode fazer Shakespeare. Mas quanto a isso tudo bem, porque se eu tinha medo ao afrontar esses gigantes, como Kafka e Dostoievski, tive que me tornar um leitor, um grande leitor. Cervantes, Borges [foram inspirações]. O romance é uma mescla de gêneros, um gênero de gêneros, um gênero degenerado. Mas, por exemplo, Quixote, que é o primeiro romance moderno e provavelmente o melhor, o que esgota o gênero. [Milan] Kundera diz que ele é um banquete com muitos pratos. É como um cocido [prato típico espanhol]! Há uma tradição romanesca que vem de Cervantes e cheguei a ela de alguma maneira, mas não sei por qual via. Mas Borges e sua mescla de ensaio e ficção me inspiraram.
• Como o senhor reage às classificações de sua obra? Acha correto denominá-la autoficção?
Autoficção é uma moda atual e universitária. Essa palavra não era uma moda e eu não havia ouvido falar nela, mas por meus caminhos cheguei aí. Um escritor vai sozinho traçando seus caminhos. Não se vai em busca de copiar algo, mas se encontra algo. O Libro de buen amor [relato de inspiração supostamente autobiográfica escrito no século 14] foi fundamental para mim. E seu autor é o protagonista do livro. Um curso de Francisco Rico [catedrático de Literaturas Hispânicas Medievais na Universidade Autônoma de Barcelona] em Madri dizia que ele é uma autoficção total! Eu chego a essa solução por caminhos particulares… Mas não tem nada de vaidade nisso que escrevo. A vaidade é muito perigosa para o autor. O orgulho e a humildade são indispensáveis, mas a vaidade é letal.
• Há uma grande diferença entre contar sua vida e fazer literatura…
Claro! Dizer “eu transei com não sei quem” e “vi não sei quem mais”, isso não é literatura, é um diário! Rembrandt, por exemplo (agora saindo um pouco da literatura), tem uma série de auto-retratos. É como dizer que Rembrandt fazia esses auto-retratos porque gostava muito de si mesmo! Dizer isso é idiota. Ele busca aí algo que é genial, ele utiliza a si próprio como modelo. Como o faz Proust, Montaigne… Não, Montaigne não é autoficção. Quantas vezes sai o nome de Marcel em Em busca do tempo perdido? Uma! Gérard Genette [crítico literário e teórico da literatura francês] diz duas, mas eu vi uma. Provavelmente pode-se ler como um tipo de autoficção. Não serve para nada fazer uma teoria geral sobre autoficção.
• Seus livros recebem críticas muito positivas. Como foi a recepção de seu primeiro livro? Qual o maior medo de um autor iniciante: a crítica negativa ou a indiferença?
Eu não sei. Eu sei que meu primeiro livro [El móvil, 1987] teve uma resenha e uma pequena nota. Me pareceu normal, lógico. Existe um equívoco em alguma parte do livro, a gente não pode pensar que vai escrever um romance e ganhar muito dinheiro — desculpa, mas não é assim. Você escreve um livro sem ter leitores, é natural! O que aconteceu com Hemingway é muito raro na vida de um escritor! E vou dizer a verdade: eu nunca reclamei de não ter leitores. Sabia que era assim, minha mãe e mais algum amigo, era óbvio que seria assim! Eu só conhecia escritores catalães até 1998 e isso me parecia lógico. Eu não poderia imaginar que meu primeiro livro poderia ter mais leitores ou mais críticas. Não sei o que preferiria, que não falassem ou que falassem mal. Uma resenha negativa, talvez, pelo menos seria uma resenha. Mas eu não me senti frustrado! Quando publiquei El inquilino [seu segundo livro], ele teve uma quantidade de críticas entusiastas na Inglaterra, mas na Espanha, não. Eu escrevia com uma enorme liberdade, achava normal que não me conhecessem. Só me descobriram por casualidade, eu não sei por que Salamina se converteu em best-seller. Ele é o responsável por eu poder viver de literatura.
• Como o senhor lidou com o sucesso repentino?
Creio que para mim foi muito bom não ser um escritor conhecido até os 40 anos. Eu me dediquei somente a escrever, não havia o mundo literário, não havia nada. Aí está a chave do que eu escrevo, do que escrevi. Eu não conhecia ninguém, era um “OVNI”. Até hoje não faço parte da vida literária espanhola, nunca fiz. Aos 17 anos eu teria adorado, mas aos 40 sei que é muito perigoso conhecer um escritor. As decepções podem ser terríveis! Proust diz uma coisa genial: aqueles que crêem que saindo com um escritor se tornam escritores, acreditam que o fato de sair com um médico bastaria para a cura de sua doença.
• Além desta mistura de gêneros, em seus livros existe uma linha tênue entre realidade e ficção, como em Soldados de Salamina.
Nos meus livros, no Quixote, na Recherche, em todos os lugares. O jogo entre realidade e ficção forma parte da literatura. Ela é essencialmente uma ilusão. Cada livro, para mim, é um jogo. O que fazemos é inventar um jogo. O trabalho dos escritores consiste em encontrar as regras exigidas por seus livros e ser fiel a elas. Esta é uma concepção oulipiana da literatura. Cada livro, para que seja um grande livro, deve ter regras diferentes dos outros. Falando de realidade e ficção, podemos citar Salamina. Este livro é uma falsa crônica, o narrador diz que é um relato real. Porém, o que devemos aprender é que nem tudo o que diz o narrador é verdade. Esta é, portanto, uma regra fundamental do livro. Se o narrador estabelece esta norma, todos os nomes das personagens devem corresponder a personagens reais. Esta é uma conseqüência lógica das contraintes que determinei ao livro. Ela é a razão pela qual o protagonista chama-se Javier Cercas. Salamina é um episódio muito pequeno da história espanhola, existia pouquíssima documentação sobre ele. Aqui temos um episódio ideal para que opere a imaginação de um escritor. É ela que pode iluminar a escuridão deixada pela História. Nada mais pode ser descoberto com os instrumentos historiográficos. Aí, a liberdade é total. Você deve ser fiel aos fatos históricos. Aquilo que não podemos saber com os recursos historiográficos pode ser iluminado pela imaginação do escritor.