O homem é um animal traiçoeiro. O mais, talvez. Esgueira-se pelas sombras atrás de presas fáceis. Engendra planos de vingança. Busca-a a todo instante em pequenos detalhes cotidianos. O homem é um impostor no baile de máscaras, diria Manoel Carlos Karam. Utiliza-se de uma máscara espessa para ludibriar os adversários, que são muitíssimos. O homem moderno — esse animal feito de insônias — percorre a sua urbanidade, uma urbanidade imposta por ele mesmo, num jogo de xadrez, muitas vezes sem vencedor. O homem não tem saída, apesar de buscá-la a todo instante. Está encurralado na prisão da cidade. É um angustiado. E muito, como nos diz Bernardo Ajzenberg, em A gaiola de Faraday:
— Tudo bem. Está tudo bem, filho. Nada importante. Nada importante acontece comigo também. Nada importante acontece com ninguém. Importante? Nada. Só os carros, essa merda de cidade, só essa fumaça, esse barulho, esse museu… Só essas coisas são importantes. O que vai aqui dentro não é, claro. O que vai dentro de você também não é… (p. 118)
A frase de Enzo — um engenheiro civil que, após o suicídio de uma namorada da juventude e a perda do emprego, resolve perambular a esmo pelas ruas de São Paulo, uma cidade sufocante, opressora — resume toda a angústia que assola o homem neste habitat de concreto. É a tentativa de fuga de um homem desesperado, de uma presa fácil, de um cordeiro diante da matilha. Em Enzo, Ajzenberg encontra um canal para infiltrar-se, mais uma vez, pelas angústias modernas, num romance urbano, no qual imperam os dilemas, os sentimentos, a traição, o descaso, enfim, a vulgaridade humana, em sua mais elevada (?) mediocridade. Os personagens — todos, de alguma maneira, vivem em função da fuga de Enzo, por mais paradoxal que isso possa parecer — debatem-se entre a traição e o cinismo. É assim que o autor escarafuncha as mais vis intenções de cada um. Ao ir embora, Enzo deixa mulher e um casal de filhos, um irmão casado e não muito mais.
Mas o engenheiro não deixa apenas uma casa, deixa um vasto mundo de hipocrisias. Aqui, reside a importância do romance. A cada nova descoberta nas ruas (Enzo apaixona-se por uma dentista e vai morar em sua casa; depara-se com a homossexualidade de seu filho; não distingue a traição do irmão), vê-se o quão frágil são todas as relações humanas e o quão traiçoeiro pode ser o homem, esse animal tão egoísta como o leão faminto a destruir a presa.
A relação com o irmão Júlio, um professor universitário às voltas com a elaboração de uma palestra e com um casamento medíocre, mostra de maneira exemplar os recônditos da traição, até mesmo entre pessoas que, supostamente, amavam-se. Júlio vibra com o sumiço de Enzo e busca “confortar” sua mulher Queila. O conforto consuma a traição. Nada surpreendente, pois o caráter de Júlio é o contraponto perfeito ao de Enzo, num romance sob a égide da modernidade, tão defendida pelo homem, este impostor no baile de máscaras.
Mas por que a fuga para a rua? Aparentemente, não há sentido, pois Enzo, aos 50 anos, poderia muito bem encontrar uma maneira menos complicada de fugir. O que parece forçado por parte de Ajzenberg é “apenas” um belo caminho para escancarar todas as angústias impostas ao homem por si mesmo todos os dias. Para muitos, Enzo não passa de um fantoche, um desequilibrado, um estorvo, um destrambelhado. Para outros, é a coragem do recomeço (por baixo), da fuga, da insatisfação, do levante contra as opressões cotidianas, enfim, um forte.
Independentemente da imagem refletida por Enzo, ele é uma presa muito fácil diante de leões famintos.
• Em a Gaiola de Faraday, o senhor coloca o homem como um ser em constante busca de respostas, também o mostra como um ser frágil e amedrontado, preso na cidade — esta infinita jaula. A cidade é um claustro intransponível, pois apesar de não ter saídas é a única saída? Ela o assusta?
O que assusta, na verdade, são os homens enjaulados no ambiente de uma cidade-metrópole, como São Paulo, que é o cenário desse livro. É meio chavão dizer isso, mas a verdade é que, para muita gente, por uma razão ou outra, ou várias razões, a cidade vira um torno esmagador, insuportável, o que não quer dizer que haja saída… Esse é o impasse que, acho, o livro expressa, ou tenta expressar. O relacionamento com as pessoas, no caso o tal núcleo familiar, se esfacela, ainda mais se o “chefe de família” está em desespero, ele que deveria, em tese, segurar as barras…
• Mais uma vez, o senhor opta por uma narrativa linear do romance, muito distante de um desconstrutivismo da forma e da linguagem. Ser convencional é ainda é o melhor caminho, quando muitos optam pelos experimentalismos — alguns bem frágeis?
Os caminhos são muito variados. Acho que existem experimentalismos e experimentalismos. O problema é você conseguir tornar substancial aquilo que você escreve. No meu caso, embora durante muitos anos eu tenha admirado e procurado priorizar “novas experiências”, encontrei uma forma de expressão que se adequa mais ao meu pensamento e à minha sensibilidade no modelo mais “tradicional” de construção novelística. Nem sei se será sempre assim. Mas é a forma mais adequada à novela que existe dentro da minha cabeça. Isso não quer dizer que dê menos ou mais trabalho do que a outra vertente, porque, no meu caso, procuro encontrar um ritmo próprio, uma entonação, um modo de escrever e de utilizar a pontuação, por exemplo, que me satisfaça e que, de certa maneira, pode, a longo prazo, constituir uma vereda própria, particular. Se chegar perto daquilo que a gente chama de estilo, melhor ainda. Não saberia escrever ficção sem sentir que pelos dedos corre sangue, suor, que a cabeça fervilha, os olhos lacrimejam muitas vezes, levados por um impulso meio ancestral. Isso é melhor do que escrever de modo absolutamente cartesiano? Não sei. Cada um utiliza as armas e as necessidade que tem, certo? Importa mais, a meu ver, o resultado.
• Qual é o rumo da sua literatura?
Muito difícil essa pergunta. Quando lancei meu primeiro livro, o Carreiras cortadas, em 1989, eu enxergava diferente. Eu procurava, além de me expor e de vivenciar uma espécie de catarse, eu procurava explorar na prosa alguns elementos de teatro (brechtiniano), misturar com isso coisas do nouveau roman, com prosa poética, mais um tanto de violência e suspense… Uau! Acho que consegui alguma coisa interessante… Mas não imaginava que depois o rumo se alteraria, que eu cairia para um texto menos preocupado com o “novo” e mais voltado para a expressão, para a substância, para a beleza, o ritmo… Não sinto, hoje, necessidade de procurar um outro caminho. Mesmo o cenário, quer dizer, a cidade de São Paulo, onde acontecem os principais acontecimentos dos meus livros, isso eu não vejo motivo para mudar… A gaiola de Faraday é um texto mais condensado, mais enxuto do que o último livro, Variações Goldman, mas isso não quer dizer que o próximo seja assim também. Como saber?
• À página 13 de A gaiola…, lê-se: “Guardar segredos dói, mas ainda era um de seus esportes prediletos”. Seria o escritor um grande sofredor, já que manipula segredos o tempo todo?
O escritor tem uma vantagem: ele dialoga com o texto e, nessa medida, acaba expondo, acaba se desfazendo dos seus segredos, mesmo que só ele saiba que está fazendo isso. Aí está a grandeza de se fazer ficção. Por que eu escrevo? Escrevo justamente para me desfazer de segredos doloridos, para apertar as espinhas do rosto numa página em branco. O escritor não sofre nem mais nem menos do que as outras pessoas. Acho isso um mito, essa coisa de se ver o artista como algo especial. Não é verdade. O que acontece é que, assim como o cientista ou o dentista encontra no seu afazer uma forma de se alimentar espiritualmente, assim também fazem os escritores. É a minha visão. O grande drama do Enzo, o personagem de A gaiola… é que ele não sabe como lidar com os segredos, ele tem medo deles, ele é pequeno diante da força deles, daquilo que eles revelam…
• A gaiola… questiona os valores da classe média e a coloca como indecisa, traiçoeira, egoísta (o ser humano, em suma). Mas também diz que “falta-nos talvez uma guerra, uma guerra para o Brasil, um pouco de terror histórico, uma causa genuína”. Essa classe média retratada ainda é capaz de tal “revolução”?
De modo homogêneo, certamente não. Mas penso que para o país falta, sim, algo que o chacoalhe. Falta transparência, negociação mais aberta, divergências mais claras, falta discussão. Existe muita hipocrisia e medo. Isso parece ser uma tradição nossa, aquela coisa de acobertar divergências, de panos quentes, de evitar confrontos como se estes não fizessem parte da vida. Isso dificulta muito as coisas, em todos os níveis, individualmente, em casa, no trabalho. Mas não é fácil entender que somos desse jeito. Na verdade, somos muito mais complexos e complicados do que imaginamos. Quando falo em guerra, terror histórico (na verdade é um personagem, professor universitário, que pensa assim no livro), não tenho em mente apenas o lado social, de nação ou país, mas também penso como indivíduo, como filho, irmão, pai, marido, amigo, colega… Às vezes, infelizmente, é preciso uma tempestade barra-pesada para nos darmos conta de que estávamos desligados, dormindo acordados.
• O senhor ocupa hoje o cargo de ombudsman no jornal Folha de S. Paulo e deve questionar (sempre) a qualidade do jornal. A quantas anda o jornalismo brasileiro, pois a imprensa foi fundamental no processo de impeachment do ex-presidente Collor, em 1992, época em que A gaiola… é ambientada?
Não dá para falar de modo geral. Sempre existem exceções nisso ou naquilo, nesse ou naquele aspecto. Acho inquestionável de que a imprensa como um todo avançou bastante desde o episódio do impeachment. Aquele foi um marco, uma espécie de virada, que mostrou para a própria imprensa o quanto ela era poderosa. Mas mais do que para a imprensa, mostrou para a sociedade, que é no fundo a dona do direito à informação, o quanto ela (sociedade) é poderosa. Tudo ainda é muito recente. Na Europa e nos EUA você tem uma tradição muito mais arraigada de liberdade de imprensa, de polêmica aberta, diálogo. Acho que estamos ainda em formação. Sem dúvida existe mais profissionalismo do que antes, tentativas mais consistentes de se fazer um jornalismo mais calcado nos fatos e menos na subjetividade. Mas existem, como sempre, as contrapartidas: superficialismo, texto ruim, falta de conhecimento e, muitas vezes, deturpação.
• É possível aproximar a literatura do jornalismo impresso, como desejavam Gay Talese e Tom Wolf (os pais do new journalism norte-americano), já que a superficialidade, muitas vezes, parece ser premissa de bom jornalismo?
Pessoalmente eu não sou fã do new journalism e suas vertentes. Acho que ficção é ficção e jornalismo é jornalismo. Não vejo necessidade dessa aproximação. Um texto jornalístico, para ser bem escrito, precisa ter ritmo, usar vocabulário adequado, saber hierarquizar fatos e enredos, tudo sem inventar absolutamente nada. Os parâmetros, na literatura, não têm nada a ver com isso, mesmo que você, como escritor, encaminhe para um texto mais “tradicional”.
• E como utilizar-se do jornalismo na literatura?
No que o jornalismo pode ajudar é na capacidade de observação que ele requer e, de certa forma, na demonstração que ele faz de que às vezes uma maior precisão na descrição de um fato pode ajudar o leitor a entrar mais no texto. É aquela história do García Márquez: escrever “vi elefantes passando no céu pela janela do meu quarto” é bem menos “realista” do que escrever “vi cinco elefantes passando no céu pela janela do meu quarto”. Neste segundo caso, por mais fantasiosa que cena a cena, ela ganha contornos de verossimilhança. Isso é uma ferramenta do jornalismo útil para a ficção. Mas, na balança, e pela minha experiência pessoal, o jornalismo mais atrapalha do que ajuda na hora de fazer ficção.
• O poeta e ensaísta alemão Hanz Magnus Enzensberger diz que “a doença do escritor é o narcisismo, a repetição, a rotina e o êxito”. O senhor sofre de algum desses males e como se prevenir?
Sofro claramente dos dois primeiros, um pouco do terceiro e nem um pouco do último. Não há como prevenir nenhum deles, a rigor. Eles fazem parte da cabeça do escritor. Ao menos no meu caso, falta acrescentar um mal: o apego ao isolamento.
• A epígrafe de A gaiola… — um verso de Fabrício Carpinejar (Um terno de pássaros ao Sul) — diz “desembaraça-me/ do excesso/ de estar/ onde não sou”. A escrita é a saída para ausentar-se e a cada livro o autor morre um pouco mais rápido?
Cada livro é uma entrega absoluta, doentia. E isso não é retórica, não. Não é charme de autor. Uma entrega sem prazo para acabar (a não ser nas famigeradas encomendas, mas isso é um outro assunto…). Implica, sim, ausentar-se. É quase uma fuga. Quando você está com muito medo, escreva. Quando quiser enfiar a cabeça na areia diante de algo grande que você não está sabendo enfrentar, escreva. É uma chance de, depois, quem sabe, enfrentar aquilo que precisa ser enfrentado. Por isso é difícil, também, ser escritor. Pessoalmente, você sacrifica muita coisa. Não sei de onde vem, mas vem de muito dentro a disposição para fazer isso, a necessidade de fazer isso. Sinto que escrever é recuperar o fôlego se desfazendo do ar antigo que está dentro do teu corpo. É trocar o sangue. Nessa medida, não sei, não vejo o livro, o ato de escrevê-lo, como um passo da morte. Pelo menos por enquanto!
• O que é preciso para construir uma gaiola de Faraday, no mínimo segura, nesse inferno diário?
Aí eu vou cair no mais velho chavão de todos, mas não tem jeito: é preciso gostar da vida e das pessoas, pelo menos daquelas que estão do teu lado, que te são unha e carne. Encarar os conflitos como parte da essência da vida. Entender que essas pessoas precisam de você, que você tem um papel a desempenhar, que elas esperam algo de você.