“A morte não é asséptica, tampouco a vida”

Entrevista com Luiz Alfredo Garcia-Roza
Luiz Alfredo Garcia-Roza, autor de “Perseguido”
01/01/2004

• O professor e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza sofre algum tipo de preconceito da Academia (o mundo universitário, os colegas) por adentrar a ficção pelas portas do romance policial?
Antes de mais nada, devo esclarecer que não sou psicanalista. Como criei e fui durante muitos anos professor do programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ, e como vários dos meus livros são sobre teoria psicanalítica, muita gente pensa que sou psicanalista, mas não sou nem nunca fui clínico, minha relação com a psicanálise foi estritamente teórica. Quanto a um possível preconceito da Academia pela minha escolha, não creio que tenha havido. Inicialmente, a reação dos meus colegas foi de surpresa, talvez perplexidade, mas não de preconceito. Alguns lamentaram estar perdendo um colega, mas pelo menos de forma direta ninguém lamentou o surgimento do novo escritor de ficção. Meus colegas sempre foram gentis.

• Por que o senhor optou pelo romance policial para iniciar sua carreira como escritor?
Primeiramente, porque eu gosto do chamado romance policial. É um gostar antigo, presente desde a adolescência e que se manteve inalterado paralelamente às leituras de Platão, Spinoza, Hegel e Freud ou a dos clássicos da literatura ocidental. Na verdade, eu nunca mantive um nicho com a rubrica “romance policial”, eu tanto lia Hammett e Chandler como Kant e Proust. Era como se essas leituras se realimentassem mutuamente e me alimentassem. Mas elas não aconteceram todas ao mesmo tempo: primeiro foi a literatura, depois veio a filosofia, e logo em seguida a psicanálise. Talvez a ficção policial (assim como a psicanálise) tenha se apossado dos temas centrais do pensamento trágico grego — morte, assassinato, sexualidade — e os esteja devolvendo ao leitor contemporâneo sob a forma de novela. (Prefiro o termo “novela” em vez de “romance”, admitindo-se aqui uma diferença de espessura temporal e de profundidade entre ambos).

• O que é necessário para se construir um bom romance policial? Há uma fórmula a ser seguida?
Não há fórmula para se escrever romance policial. A própria definição do que seja um romance policial é difícil de ser estabelecida. De que trata um romance policial? De assassinatos? Dostoievski pode ser considerado um autor de romance policial? E o que dizer de Shakespeare? Talvez devamos acrescentar ao assassinato um processo investigativo: trata-se, no romance policial, de se descobrir o autor do crime — Whodunit. Neste caso, Crime e castigo continuaria no páreo, e teríamos que incluir ainda Sófocles, para citarmos apenas três ícones da literatura ocidental. Mas se considerarmos que toda novela policial é caracterizada por uma busca da verdade, podemos dividi-la em dois grupos, segundo o modo de se conceber a verdade: como problema ou como enigma. No primeiro grupo (verdade-problema), que eu chamaria de modelo racionalista, o importante é instaurar ou recuperar a clareza lógica a partir da obscuridade dos fatos. O detetive/investigador procura a chave lógica que lhe permitirá chegar à solução do crime/problema. O crime é, acima de tudo, um problema a ser resolvido. O procedimento, isto é, o método, pode ser uma combinação do indutivo e do hipotético-dedutivo. O exemplo clássico na literatura policial é o Hercule Poirot de Agatha Christie. No segundo grupo (verdade-enigma), o crime é um enigma e não um problema. Não é possível reduzi-lo às idéias claras e distintas do cartesianismo ou do racionalismo cientificista. O enigma, tal como o oráculo da Grécia Arcaica, possui uma opacidade que lhe é essencial. A verdade não é toda luminosa e transparente, ela é também feita de sombra, e essa sombra não é um defeito, algo a ser eliminado em nome da transparência da razão, mas lhe é essencial. Verdade e engano são, aqui, complementares e não excludentes. É nessa região de sombra do enigma que reside a ambigüidade (sua riqueza) e a impossibilidade de uma verdade unívoca. Prefiro fazer ficção policial retomando essa concepção da verdade como enigma. Na ficção policial, a morte, o assassinato, é o enigma por excelência. Nem a vida nem tampouco a morte podem ser reduzidas à transparência cristalina das idéias claras e distintas. O trágico no homem é feito de luz e sombra, do que se mostra e do que se oculta. A morte não é asséptica, tampouco a vida.

• A literatura policial é vilipendiada no Brasil? O que vemos com freqüência é que tal gênero é considerado um subgênero (tanto pela crítica como por ficcionistas) e muitos escritores olham de esguelha para os romances policiais.
Não creio que haja uma desqualificação especificamente brasileira da literatura policial. Esse tipo de preconceito — se é que ele ainda de fato existe — talvez tenha a ver com a indevida comparação (e equiparação) da ficção policial com o romance em geral. Sei o quanto é delicada e difícil a distinção entre “novela” e “romance”, admitindo-se na primeira uma maior concentração temática, uma menor espessura temporal e um menor aprofundamento na caracterização dos personagens secundários, quando comparada ao romance. Como comparar O velho e o mar de Hemingway e Os irmãos Karamazov de Dostoievski? Prefiro o termo “novela policial” em lugar do comumente empregado “romance policial”. A novela policial é caracterizada pela horizontalidade, quando comparada à verticalidade de boa parte dos romances. Os romances tendem a ser “profundos” ou “sublimes”. Alguns são as duas coisas. Sua marca é a verticalidade: ou toca as alturas do sublime ou desce às profundidades do inferno. Não é incomum o gosto pelo metafísico. Comparada ao grande romance, a novela policial é rasa. Ela se passa na superfície dos acontecimentos. E não há nada mais raso (ou superficial, se preferirmos) que o acontecimento — situado nessa superfície/fronteira dos corpos com a linguagem. Então, quando dizem que a novela policial é superficial, eu concordo. Essa é a proposta da ficção. Deixemos para a filosofia e a poesia a tarefa de dizer o real.

• Por que o Brasil não tem ainda tradição (uma escola) em literatura policial, como acontece nos Estados Unidos e na Europa?
O Brasil viveu sob a ditadura Vargas e sob duas décadas de ditadura militar. Isso foi o bastante para fazer da polícia um aparato quase que exclusivamente repressivo em vez de investigativo. Durante décadas o imaginário popular identificou a figura do detetive (ou mesmo do delegado) com a do troglodita espancador. Como desfazer essa imagem e colocar no lugar dela a de Humphrey Bogart interpretando o detetive Sam Spade de Dashiell Hammett? Foram necessárias outras duas décadas para uma nova imagem começar a se esboçar. Quanto ao “detetive particular”, eram em número muito reduzido e sem nenhuma expressão cultural. Assim, fomos alimentados durante quase todo o século 20 com a literatura policial americana e européia.

• Seus livros são construídos sempre levando em consideração o ambiente em que os personagens vivem. O Rio de Janeiro é descrito com fidelidade e ganha vida na trama ficcional. Isso é fundamental para cativar o leitor e aproximá-lo da ficção?
O Rio de Janeiro não é apenas a paisagem das minhas histórias, é a geografia dessas histórias. Corpo e alma, uma só e mesma coisa.

• De que maneira a formação como filósofo e, principalmente, como psicanalista contribui para a construção dos personagens?
Não sou filósofo, sou apenas professor de filosofia, assim como não sou psicanalista. É difícil dizer de que maneira e em que intensidade minha formação em filosofia e em teoria psicanalítica contribuiu para a construção dos meus personagens. A própria idéia de “construção de personagem” me soa estranha. Eles não são construídos de modo análogo ao da construção de uma casa; não obedecem a um projeto prévio ou a uma regra de construção. Eles vão se configurando juntamente com a trama. Sua matéria-prima é o meu imaginário, feito muito mais de fantasias do que de planos de construção. O que posso dizer quanto ao papel da filosofia e da psicanálise é que ambas me mostraram que a potência do imaginário é tão grande quanto a potência da razão. Até porque, uma sem a outra é inteiramente impotente.

• A violência urbana brasileira, principalmente a do Rio de Janeiro, tem alguma interferência na sua ficção?
Ela faz parte do caldo cultural no qual estamos imersos. A violência urbana brasileira não é acidental, é estrutural.

• Espinosa é um delegado ético e também um bom leitor, sempre passa num sebo para novas aquisições a sua estranha biblioteca. Esses traços não destoam muito da idéia (muitas vezes preconceituosa) que se tem de um delegado?
Apesar de muita coisa ter mudado na polícia, a figura de delegado Espinosa ainda destoa. Não é por outra razão que ele é descrito como “excêntrico”, uma espécie de estranho no ninho (embora não tão estranho a ponto de não continuar lá). Espinosa é, sobretudo, um cético, e é a consciência crítica do cético que o mantém lá, já que nem dentro nem fora há valores absolutos. Espinosa não acredita em “além”. Aliás, nem ele nem o Espinosa “original”, autor da Ética.

• O crítico Wilson Martins diz que “de uma forma geral, acho que os brasileiros não têm a ‘cabeça detetivesca’”, ao afirmar que a literatura policial brasileira é muito frágil. Como o senhor encara tal afirmação?
Desconheço o contexto no qual foi feita a afirmação. Se por “cabeça detetivesca” ele entende “cabeça investigativa”, concordo com ele. Mas não concordo que por esta razão a literatura policial brasileira seja frágil, porque se assim fosse, poderíamos dizer igualmente que de uma forma geral, os brasileiros não têm uma “cabeça literária”, mas nem por isso a literatura brasileira é frágil ou um Guimarães Rosa é ilegível.

• O que podemos esperar para o futuro do delegado Espinosa?
Para um futuro imediato, umas férias, apenas férias, nem exílio nem morte.

• Quais autores têm lugar de destaque em sua biblioteca? Quais são as suas referências na literatura policial?
É muito difícil apontar “referências”, prefiro apontar algumas “preferências”: Dostoievski, Dickens, Proust, Melville, Conrad, Faulkner, Hemingway, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Borges… Quanto aos autores policiais: Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James Cain, Ross Macdonald, Rex Stout, Cornell Woolrich, George Simenon, Patricia Highsmith, Lawrence Block, Manuel Vázquez Montalban, Andrea Camilleri…

• Como é o seu processo criativo?
Semi-anárquico ou quase-anárquico. Começo remexendo o “caldeirão da bruxa” (o copyright do termo pertence a Sigmund Freud), deixando os monstros aflorarem, depois peço socorro à razão.

• Quais são os seus próximos passos literários?
Uma novela com um personagem principal completamente diferente do Espinosa.

LEIA RESENHA DE PERSEGUIDO

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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