• O professor e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza sofre algum tipo de preconceito da Academia (o mundo universitário, os colegas) por adentrar a ficção pelas portas do romance policial?
Antes de mais nada, devo esclarecer que não sou psicanalista. Como criei e fui durante muitos anos professor do programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ, e como vários dos meus livros são sobre teoria psicanalítica, muita gente pensa que sou psicanalista, mas não sou nem nunca fui clínico, minha relação com a psicanálise foi estritamente teórica. Quanto a um possível preconceito da Academia pela minha escolha, não creio que tenha havido. Inicialmente, a reação dos meus colegas foi de surpresa, talvez perplexidade, mas não de preconceito. Alguns lamentaram estar perdendo um colega, mas pelo menos de forma direta ninguém lamentou o surgimento do novo escritor de ficção. Meus colegas sempre foram gentis.
• Por que o senhor optou pelo romance policial para iniciar sua carreira como escritor?
Primeiramente, porque eu gosto do chamado romance policial. É um gostar antigo, presente desde a adolescência e que se manteve inalterado paralelamente às leituras de Platão, Spinoza, Hegel e Freud ou a dos clássicos da literatura ocidental. Na verdade, eu nunca mantive um nicho com a rubrica “romance policial”, eu tanto lia Hammett e Chandler como Kant e Proust. Era como se essas leituras se realimentassem mutuamente e me alimentassem. Mas elas não aconteceram todas ao mesmo tempo: primeiro foi a literatura, depois veio a filosofia, e logo em seguida a psicanálise. Talvez a ficção policial (assim como a psicanálise) tenha se apossado dos temas centrais do pensamento trágico grego — morte, assassinato, sexualidade — e os esteja devolvendo ao leitor contemporâneo sob a forma de novela. (Prefiro o termo “novela” em vez de “romance”, admitindo-se aqui uma diferença de espessura temporal e de profundidade entre ambos).
• O que é necessário para se construir um bom romance policial? Há uma fórmula a ser seguida?
Não há fórmula para se escrever romance policial. A própria definição do que seja um romance policial é difícil de ser estabelecida. De que trata um romance policial? De assassinatos? Dostoievski pode ser considerado um autor de romance policial? E o que dizer de Shakespeare? Talvez devamos acrescentar ao assassinato um processo investigativo: trata-se, no romance policial, de se descobrir o autor do crime — Whodunit. Neste caso, Crime e castigo continuaria no páreo, e teríamos que incluir ainda Sófocles, para citarmos apenas três ícones da literatura ocidental. Mas se considerarmos que toda novela policial é caracterizada por uma busca da verdade, podemos dividi-la em dois grupos, segundo o modo de se conceber a verdade: como problema ou como enigma. No primeiro grupo (verdade-problema), que eu chamaria de modelo racionalista, o importante é instaurar ou recuperar a clareza lógica a partir da obscuridade dos fatos. O detetive/investigador procura a chave lógica que lhe permitirá chegar à solução do crime/problema. O crime é, acima de tudo, um problema a ser resolvido. O procedimento, isto é, o método, pode ser uma combinação do indutivo e do hipotético-dedutivo. O exemplo clássico na literatura policial é o Hercule Poirot de Agatha Christie. No segundo grupo (verdade-enigma), o crime é um enigma e não um problema. Não é possível reduzi-lo às idéias claras e distintas do cartesianismo ou do racionalismo cientificista. O enigma, tal como o oráculo da Grécia Arcaica, possui uma opacidade que lhe é essencial. A verdade não é toda luminosa e transparente, ela é também feita de sombra, e essa sombra não é um defeito, algo a ser eliminado em nome da transparência da razão, mas lhe é essencial. Verdade e engano são, aqui, complementares e não excludentes. É nessa região de sombra do enigma que reside a ambigüidade (sua riqueza) e a impossibilidade de uma verdade unívoca. Prefiro fazer ficção policial retomando essa concepção da verdade como enigma. Na ficção policial, a morte, o assassinato, é o enigma por excelência. Nem a vida nem tampouco a morte podem ser reduzidas à transparência cristalina das idéias claras e distintas. O trágico no homem é feito de luz e sombra, do que se mostra e do que se oculta. A morte não é asséptica, tampouco a vida.
• A literatura policial é vilipendiada no Brasil? O que vemos com freqüência é que tal gênero é considerado um subgênero (tanto pela crítica como por ficcionistas) e muitos escritores olham de esguelha para os romances policiais.
Não creio que haja uma desqualificação especificamente brasileira da literatura policial. Esse tipo de preconceito — se é que ele ainda de fato existe — talvez tenha a ver com a indevida comparação (e equiparação) da ficção policial com o romance em geral. Sei o quanto é delicada e difícil a distinção entre “novela” e “romance”, admitindo-se na primeira uma maior concentração temática, uma menor espessura temporal e um menor aprofundamento na caracterização dos personagens secundários, quando comparada ao romance. Como comparar O velho e o mar de Hemingway e Os irmãos Karamazov de Dostoievski? Prefiro o termo “novela policial” em lugar do comumente empregado “romance policial”. A novela policial é caracterizada pela horizontalidade, quando comparada à verticalidade de boa parte dos romances. Os romances tendem a ser “profundos” ou “sublimes”. Alguns são as duas coisas. Sua marca é a verticalidade: ou toca as alturas do sublime ou desce às profundidades do inferno. Não é incomum o gosto pelo metafísico. Comparada ao grande romance, a novela policial é rasa. Ela se passa na superfície dos acontecimentos. E não há nada mais raso (ou superficial, se preferirmos) que o acontecimento — situado nessa superfície/fronteira dos corpos com a linguagem. Então, quando dizem que a novela policial é superficial, eu concordo. Essa é a proposta da ficção. Deixemos para a filosofia e a poesia a tarefa de dizer o real.
• Por que o Brasil não tem ainda tradição (uma escola) em literatura policial, como acontece nos Estados Unidos e na Europa?
O Brasil viveu sob a ditadura Vargas e sob duas décadas de ditadura militar. Isso foi o bastante para fazer da polícia um aparato quase que exclusivamente repressivo em vez de investigativo. Durante décadas o imaginário popular identificou a figura do detetive (ou mesmo do delegado) com a do troglodita espancador. Como desfazer essa imagem e colocar no lugar dela a de Humphrey Bogart interpretando o detetive Sam Spade de Dashiell Hammett? Foram necessárias outras duas décadas para uma nova imagem começar a se esboçar. Quanto ao “detetive particular”, eram em número muito reduzido e sem nenhuma expressão cultural. Assim, fomos alimentados durante quase todo o século 20 com a literatura policial americana e européia.
• Seus livros são construídos sempre levando em consideração o ambiente em que os personagens vivem. O Rio de Janeiro é descrito com fidelidade e ganha vida na trama ficcional. Isso é fundamental para cativar o leitor e aproximá-lo da ficção?
O Rio de Janeiro não é apenas a paisagem das minhas histórias, é a geografia dessas histórias. Corpo e alma, uma só e mesma coisa.
• De que maneira a formação como filósofo e, principalmente, como psicanalista contribui para a construção dos personagens?
Não sou filósofo, sou apenas professor de filosofia, assim como não sou psicanalista. É difícil dizer de que maneira e em que intensidade minha formação em filosofia e em teoria psicanalítica contribuiu para a construção dos meus personagens. A própria idéia de “construção de personagem” me soa estranha. Eles não são construídos de modo análogo ao da construção de uma casa; não obedecem a um projeto prévio ou a uma regra de construção. Eles vão se configurando juntamente com a trama. Sua matéria-prima é o meu imaginário, feito muito mais de fantasias do que de planos de construção. O que posso dizer quanto ao papel da filosofia e da psicanálise é que ambas me mostraram que a potência do imaginário é tão grande quanto a potência da razão. Até porque, uma sem a outra é inteiramente impotente.
• A violência urbana brasileira, principalmente a do Rio de Janeiro, tem alguma interferência na sua ficção?
Ela faz parte do caldo cultural no qual estamos imersos. A violência urbana brasileira não é acidental, é estrutural.
• Espinosa é um delegado ético e também um bom leitor, sempre passa num sebo para novas aquisições a sua estranha biblioteca. Esses traços não destoam muito da idéia (muitas vezes preconceituosa) que se tem de um delegado?
Apesar de muita coisa ter mudado na polícia, a figura de delegado Espinosa ainda destoa. Não é por outra razão que ele é descrito como “excêntrico”, uma espécie de estranho no ninho (embora não tão estranho a ponto de não continuar lá). Espinosa é, sobretudo, um cético, e é a consciência crítica do cético que o mantém lá, já que nem dentro nem fora há valores absolutos. Espinosa não acredita em “além”. Aliás, nem ele nem o Espinosa “original”, autor da Ética.
• O crítico Wilson Martins diz que “de uma forma geral, acho que os brasileiros não têm a ‘cabeça detetivesca’”, ao afirmar que a literatura policial brasileira é muito frágil. Como o senhor encara tal afirmação?
Desconheço o contexto no qual foi feita a afirmação. Se por “cabeça detetivesca” ele entende “cabeça investigativa”, concordo com ele. Mas não concordo que por esta razão a literatura policial brasileira seja frágil, porque se assim fosse, poderíamos dizer igualmente que de uma forma geral, os brasileiros não têm uma “cabeça literária”, mas nem por isso a literatura brasileira é frágil ou um Guimarães Rosa é ilegível.
• O que podemos esperar para o futuro do delegado Espinosa?
Para um futuro imediato, umas férias, apenas férias, nem exílio nem morte.
• Quais autores têm lugar de destaque em sua biblioteca? Quais são as suas referências na literatura policial?
É muito difícil apontar “referências”, prefiro apontar algumas “preferências”: Dostoievski, Dickens, Proust, Melville, Conrad, Faulkner, Hemingway, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Borges… Quanto aos autores policiais: Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James Cain, Ross Macdonald, Rex Stout, Cornell Woolrich, George Simenon, Patricia Highsmith, Lawrence Block, Manuel Vázquez Montalban, Andrea Camilleri…
• Como é o seu processo criativo?
Semi-anárquico ou quase-anárquico. Começo remexendo o “caldeirão da bruxa” (o copyright do termo pertence a Sigmund Freud), deixando os monstros aflorarem, depois peço socorro à razão.
• Quais são os seus próximos passos literários?
Uma novela com um personagem principal completamente diferente do Espinosa.