As Canções de atormentar, da poeta gaúcha Angélica Freitas, levaram 12 anos para serem reunidas em livro. Publicado em agosto deste ano, o conjunto busca recuperar um certo clima da infância (“A infância é a gênese da poeta”) e dialoga com a tradição musical de um país cercado por catástrofes — repressão policial, pobreza, a usina hidrelétrica de Belo Monte, etc.
Apesar de alguns temas atuais, o trabalho de Angélica também segue dialogando com o cânone literário — o que vinha fazendo pelo menos desde Rilke shake (2007), quando estava lendo Pound, Gertrude Stein e outros nomes incontornáveis da literatura mundial.
“Não acho que você precise brigar com a tradição. Nem copiar. Agora que estou na meia-idade, acho que a tradição é um tesouro compartilhado e que podemos aprender muito com ela, inclusive a achar nosso próprio caminho”, diz.
Transitar pelo tradicional, sem perder de vista as urgências do presente, parece ser uma fórmula que condiz com a visão de mundo — por extensão, com o trabalho — da autora: “O poeta canadense Christian Bök me falou que a poesia era a barata dos gêneros literários, que se houvesse um cataclismo, a poesia dava um jeito de sobreviver. Eu concordo”.
Para além dessa crença na potência da poesia, parece haver em sua concepção uma espécie de fé de que é possível construir uma realidade melhor — se houvesse mais união entre as pessoas. Enquanto isso não acontece, ou acontece a passos curtos, Angélica senta-se com seu caderninho e clama (três vezes): “Musa, eu não sou nada, não sou ninguém, intercedei…”.
• No poema Canções de atormentar, o verso “não tem pra onde fugir” parece remeter a um sentimento que atravessa o seu livro: o Brasil é um país sem saída. As canções de atormentar são as da sua poesia ou são as que são ouvidas por você?
As canções de atormentar, originalmente, são as das sereias dos meus poemas. Elas cantam para atormentar os marinheiros. Fora esse dado, gosto de deixar a interpretação a quem me lê, e geralmente são pessoas muito inteligentes, cultas, finas, ótimas, as melhores leitoras que alguém poderia esperar.
• Qual é o espaço possível para a poesia num país como o Brasil, tão distante de índices aceitáveis de leitura?
O espaço que criarmos. Mas sou contra importunarmos as pessoas na fila do cinema. Uma vez o poeta canadense Christian Bök me falou que a poesia era a barata dos gêneros literários, que se houvesse um cataclismo a poesia dava um jeito de sobreviver. Eu concordo.
“Não acho que você precise brigar com a tradição. Nem copiar.”
• A forma melódica sempre esteve presente no seu trabalho. No entanto, Canções de atormentar é um passo a mais, pois você dialoga com referências literárias (de Homero a Ana Cristina Cesar) e também do universo da canção (de Carmen Miranda a Juçara Marçal). O que a levou a frequentar com mais intensidade a tradição da canção?
Sempre fui muito ligada em música, toco violão, meio mal, mas dá pro gasto, e já compus algumas canções sozinha. Porém, dois acontecimentos foram determinantes. Em 2008, recebi um e-mail do meu conterrâneo Vitor Ramil, músico, e ele disse que estava musicando poemas do Rilke shake. Desde aquele momento, já temos 15 canções em parceria. Depois de começar a trocar ideias com o Vitor, fiquei mais atenta à possibilidade de um poema virar canção. E em 2016 conheci a Juliana Perdigão, com quem agora sou casada. As possibilidades de fazer música ficaram ao alcance do lar.
• Os poemas de Canção de atormentar foram escritos entre 2008 e 2020. Neste período, a fisionomia do país mudou. O resultado desse trabalho muda de acordo com as condições sociais e políticas do país?
Acho que ainda é cedo pra constatar o que muda no trabalho, mas certamente alguns temas se impõem. No meu caso, os poemas que têm a ver com a situação atual se apresentaram, como Porto Alegre, 2016, que é sobre repressão policial, e micro-ondas, sobre Belo Monte. Eu não escolhi o tema.
• Desde Rilke shake seu trabalho poético passa por uma revisão do cânone ocidental. O que significa fazer poesia com o passado?
Bem, não sei se faço uma revisão do cânone… No Rilke shake, que gerou certo bafafá, escrevi poemas inspirados nas leituras que estava fazendo à época, 2005, por aí. Gertrude Stein, Ezra Pound, Djuna Barnes aparecem como personagens. Não acho que você precise brigar com a tradição. Nem copiar. Agora que estou na meia-idade, acho que a tradição é um tesouro compartilhado e que podemos aprender muito com ela, inclusive a achar nosso próprio caminho. Bonito, né?
“A infância é a gênese da poeta. É isso, está tudo lá.”
• De que maneira se dá a construção dos seus poemas? Como é o seu processo de criação?
Ah, eu faço um café, digo três vezes “Musa, eu não sou nada, não sou ninguém, intercedei…”. E abro o meu caderno.
• O que significa revisitar a infância em um poema como laranjal? O retorno ao passado tem alguma relação com a insuportabilidade do presente? Ou é natural que poetas revisitem sua história?
A infância é a gênese da poeta. É isso, está tudo lá. Rainer Maria Rilke vestido de menininha. Etc. Escrevi mais para recuperar o clima daqueles anos do que a história. Agora estou escrevendo sobre a minha adolescência, sobre quando comecei a “confessar” minha sexualidade. Porque nos anos 1980, 1990, você tinha que confessar. Já agora não, eu espero.
• No poema ana c., você conta como Ana Cristina Cesar te “salvou” de ser técnica em eletrônica. Que outras experiências literárias te “salvaram”?
Bem, o jornalismo me salvou de ser jornalista.
• A infância parece estar presente também na forma de sua poesia. Por exemplo, no humor a partir de palavras que se parecem ou se modificam sutilmente até se tornarem outra palavra ao longo do poema. Poesia é também um jogo infantil?
Também. Há jogos infantis e jogos de adultos, mas o princípio é o mesmo.
• O que você diria a um(a) jovem poeta que lhe perguntasse o que é mais importante na sua formação?
Prestar atenção. Ler, de preferência com um lápis na mão. Sublinhar, anotar. Aprender a escutar. Prestar atenção aos sobes e desces da fala, ao ritmo da linguagem, ao que cabe num fôlego, ao que não cabe. Ouvir o que está e o que não está. Aprender a ver (faça um curso de desenho, se puder). Ter um caderno sempre por perto. Anotar, anotar.
• O poema Canções de atormentar foi performado por você e Juliana Perdigão pela primeira vez em 2017. De lá para cá, de que modo essa convivência transformou o seu trabalho?
Bem, a Juliana é o máximo. Pura potência de criação, charme e alegria, traz pro que eu faço uma alegria também, a alegria de fazer, de compartilhar. Ela trouxe música pros meus poemas, quer algo mais maravilhoso do que isso? E me deu uma outra dimensão aos meus escritos, quando os lanço ao ar. Agora precisam do meu corpo também abaixo da faringe.
• A realidade brasileira se apresenta, muitas vezes, um espaço dos mais inóspitos: a violência, a desigualdade, o preconceito, a corrupção. Qual é a melhor maneira de encarar a brutalidade que nos cerca?
Sempre desconfio de que o Brasil seja um experimento do capitalismo selvagem, cujo objetivo é constatar até quando as pessoas aguentam sem as condições básicas para sobreviver. Vamos tirar tudo das pessoas e ver o que acontece. Nesse sentido, penso que o Brasil pode já ser o país do futuro, se for mesmo um laboratório, e que os outros países deveriam olhar para nós. Mas não tem que ser esse o futuro, necessariamente. Acho que existem vários futuros possíveis. Não podemos comprar a ideia de que “acabou”. Cuidado. O presente é uma construção coletiva, também. O ideal seria que conseguíssemos desejar e imaginar cenários melhores coletivamente. Mas sem comida e sem um teto sobre a sua cabeça e a da sua família, é quase impossível ter energia mental para se engajar nesses processos de imaginação. Por isso, penso que uma boa ideia seria implementar a Renda Básica de Cidadania no Brasil.
• Quais leituras/autores preenchem os seus dias?
Comecei a pandemia com uma luxuosa leitura da Ilíada, proporcionada pela oficina do professor Élvio Cotrim. E também li as Sátiras, de Horácio. Aqui em Berlim, tenho acesso a duas bibliotecas muito boas, a do Instituto Ibero Americano, e à Amerika-Gedenk-Bibliothek, que apresentam concomitantemente a oferta de milhares de livros que quero ler. Quase não é preciso comprar livros em Berlim. Você os encontra em caixas de papelão à saída dos prédios, porque as pessoas os doam depois de ler. E também há cabines de doação de livros nos bairros, parecidas com as cabines telefônicas britânicas de antigamente. À noite, você abre a porta e uma luz acende, para que você não tenha que procurar no escuro. Sempre li muito, leio de tudo, leio tudo ao mesmo tempo. Na minha mesa agora estão os livros Vox horrísona, do poeta peruano Luis Hernandez, El pensamiento del poema, do também peruano Mario Montalbetti, Cronologie delle lesioni, da italiana Jolanda Insana, Alphabet, da dinamarquesa Inger Christensen, Le spleen de Paris, do Baudelaire, e 50 estados, do argentino Ezequiel Zaidenwerg.
“Sempre desconfio de que o Brasil seja um experimento do capitalismo selvagem, cujo objetivo é constatar até quando as pessoas aguentam sem as condições básicas para sobreviver.”
• Esta pandemia — que relegou o mundo a certa reclusão — alterou de alguma maneira o seu olhar sobre o outro, sobre si mesma?
Penso muitas coisas sobre a pandemia, como cidadã. Não me apresso a julgar comportamentos individuais, embora às vezes pense que há uma loucura exuberante correndo solta. Me pergunto, naturalmente, por que muitos homens cobrem a boca mas não o nariz. Vejo muita incapacidade nossa de chegar a acordos que beneficiem toda a sociedade. Como poeta, tampouco me apresso a escrever sobre o que ocorre. Mas conto isto: ontem, ao sair do vagão do metrô, na estação perto de casa, um homem de uns 70 anos de idade, sem máscara (obrigatória no transporte público), barba e cabelos amarelados, desgrenhados, sentado num banco à porta da composição, disse entredentes para mim e uma senhora de gorrinho e máscara (as duas trajávamos esses acessórios): “So ein Quatsch!” (“Que bobagem!”, referindo-se provavelmente à nossa cordata adesão às máscaras), e bateu uma mão espalmada na outra, pof!, como se estourasse um saco de papel cheio de ar. Demos as duas um pulinho.
*Colaborou Rogério Pereira