• No romance Chove sobre minha infância, você utilizou como epígrafe uma frase de Partes de África, de Helder Macedo: “Este livro não é sobre mim, mas a partir de mim”. Pode-se dizer o mesmo dos contos de Hóspede secreto?
Sim, continua válida a epígrafe, era um alerta aos espíritos mais simplistas que acham que tudo aquilo é minha vida. Tem muito de minha vida em Chove sobre minha infância, mas há, no mínimo, uma quantidade equivalente de literatura, de trabalho de ficção, de cultura. Sou um ficcionista que parte das vivências, mas que imprime nelas as marcas de uma deformação criadora. Não sou memorialista, no sentido restritivo da palavra. Agora, em Hóspede secreto, minha vida está mais na ambientação do que nas histórias, que são — excetuando O bom filho — todas inventadas. Mas é claro, como não sou um esquizofrênico, as histórias estão relacionadas diretamente à minha vida, às minhas preocupações. O Luiz Antonio de Assis Brasil, comentando o livro, disse que minha opção pelo narrador em primeira pessoa leva o leitor a tomar as narrativas como confissões. Por isso, acho que esta epígrafe pode ser estendida ao novo livro.
• Peabiru — uma cidadezinha no interior do Paraná — é seu território ficcional. Você também optou por morar em Ponta Grossa (cidade paranaense de médio porte). Enquanto a literatura brasileira converge para os grandes centros e suas idiossincrasias, você segue para o interior, para o pequeno… Por que esta escolha pessoal e literária?
Não sei se é bem escolha ou fatalidade. Por natureza, sou um introvertido, um homem que vive mais para a casa e para os livros, então não faz grande diferença morar em Ponta Grossa ou em São Paulo — o meu espaço será sempre o da casa. A casa, mais do que a cidade, é o grande tema em minha literatura, que se fixa nos dramas familiares, no espaço do quintal. Sou, neste sentido, um escritor doméstico, que não pretende desvelar as grandes transformações das cidades, pois prefiro esquadrinhá-las nas mínimas relações humanas, na vida em família, no pequeno grupo. Peabiru entra em minha literatura como uma metáfora, um modelo reduzido da cidadezinha, e não como um espaço real. Só como curiosidade, não existe e nunca existiu a valeta no centro de Peabiru, tal como aparece em O herdeiro. Eu a coloquei lá por necessidade narrativa.
• Você mantinha uma coluna semanal de crítica literária no jornal Gazeta do Povo (em Curitiba) e é considerado um dos principais críticos em atividade no Brasil. Mas ultimamente você abdicou da crítica em prol da crônica. O escritor está matando o crítico? Ou as pressões da política literária o cansaram?
Quando lancei Chove sobre minha infância, depois de anos militando na crítica, sofri por ter feito análises sinceras sobre vários autores. O livro que, sem falsa modéstia, ficará como uma das boas obras do período, não conseguiu espaço nos jornais, nem nos jornais em que eu havia trabalhado. Ele simplesmente foi apagado, passou pelo mundo editorial paulista como se não existisse. Foi depois desta experiência que compreendi a opção de Machado de Assis, que largou a crítica para seguir apenas na área criativa. Eu meditei muito sobre isso e fui me afastando emotivamente da crítica. Nós vivemos em uma sociedade religiosa, no pior sentido do termo. Qualquer visão realista que se tem é tida sempre como heresia e você passa a ser ignorado ou tripudiado. Os amigos não pronunciam o seu nome porque você virou uma espécie de leproso midiático. Quem ficar com você será contagiado pelo silêncio. Essa foi uma das razões de eu ter parado com a crítica. Outra é realmente a pressão literária, ampliada quando você se torna conhecido como escritor e passa a ter uma vasta rede de relações. A independência crítica vai desaparecendo e isso é algo deprimente. Eu não queria que meu espaço crítico se convertesse numa oportunidade de fazer mais amigos, de elogiar a celebridade do momento e, com isso, conquistar auditório para meu trabalho. Ou eu continuava a julgar os lançamentos com o espírito bélico necessário para a boa crítica ou virava um relações públicas, como muitos dos escritores que se dedicam a esta atividade. A opção mais digna que achei foi o silêncio.
• Crítico e escritor convivem em harmonia?
Do ponto de vista da criação, sim. Você pode exercer a crítica nos domínios da ficção ou da poesia. Eu tenho feito isso. O olhar crítico ajuda muito e eu não teria conseguido ser escritor se não tivesse publicado antes centenas de artigos. Eu treinei na crítica uma maneira de olhar o homem, de analisá-lo, e isso está presente em meu trabalho de escritor. Para mim, não houve nenhuma dificuldade de passar de uma linguagem para outra, pois elas sempre estiveram muito próximas. Fiz crítica como um homem de letras e não como um teórico, e minha crítica sempre teve um caráter narrativo, literário. Mesmo tendo interrompido esta vocação, o crítico continua sendo uma parte importante de minha identidade.
• A crítica complacente ainda é a que se sobressai na literatura brasileira?
A complacente e a rancorosa. O que não existe em abundância é a analítica. Todos querem ser aceitos dentro de grupos, querem circular dentro de um espaço de privilégios, e, para isso, acabam falando bem de alguns — os barões assinalados — e mal de outros — os bárbaros. Enquanto isso, a crítica que analisa com isenção fica em segundo plano, pois ela não carrega nos adjetivos e nem maltrata os inimigos de plantão.
• De que maneira a infância pobre e as dificuldades de acesso às artes em geral foram importantes na sua formação como escritor?
A infância pobre me colocou em contato com gente de verdade, de carne e osso, e não com os fantoches sociais que são os elementos da classe média e da elite. Eu senti na carne o que é ser brasileiro, ter que lutar para a sobrevivência. E assumi o ponto de vista da pobreza. Por outro lado, como pobre (não apenas material, mas também culturalmente), eu tive que vencer muitos obstáculos para conseguir melhorar minha vida e isso me deu uma força que acho que consigo passar para o texto. Por mais melancólica que seja minha literatura, ela tem este caráter que entusiasma as pessoas. Sou um escritor brasileiro, que fala de trajetórias brasileiras. Isso é uma raridade, pois o artista esconde suas origens humildes, querendo ser aceito pelos círculos mais elevados. Eu alardeio minha história de vida, não tenho medo do ridículo e do comentário das cadelinhas de seda enfeitadas pro domingo.
• Em seu livro de poesia, Venho de um país obscuro, um dos versos de Olvidado vivo diz: “Nas palavras moramos sempre de aluguel”. O preço de tal aluguel tem sido muito alto?
Vivemos em uma época de valores proprietários. Você tem que ter tais e tais coisas, trocar de carro, morar no que é seu e possuir palavras suas — um estilo, um cacoete, uma tatuagem. Isso é um erro, principalmente na literatura. As palavras que uso não são minhas, são de um grupo social, de uma tradição literária, sou apenas um inquilino, que um dia será despejado para dar lugar a novos inquilinos. É esta a sistemática da língua. Eu tenho quitado o aluguel com o esforço de meu trabalho, uma dedicação total à literatura e a conseqüentes perdas familiares, pessoais e financeiras. Mas é a única forma de não trair o escritor em mim.
• Você iniciou na poesia, passou ao romance, agora ao conto. Os poemas de Venho de um país obscuro serão em breve reeditados. A pluralidade é a sua marca literária?
A inquietação é minha marca. Gosto de tentar tudo, de experimentar tudo, agora estou de namoro com a literatura infanto-juvenil. Uma vez, Cristovão Tezza me disse que para ser romancista tínhamos que anular o poeta. Eu pensei muito nisso, ainda não tinha escrito ficção e gostava do poetinha encalacrado em minha alma. Possuía apenas um livro de poemas — Inscrições a giz, prêmio nacional Luis Delfino de 1989. O Tezza tinha razão quanto ao fato de os meios da prosa serem diferentes dos meios da poesia, mas nunca consegui coragem para matar o poetinha, e ele aparece na minha ficção no uso da linguagem. Eu incorporei o poeta ao invés de bani-lo. E sempre que dá, cometo alguns poeminhas, que um dia acabarão virando um novo livro. Mas hoje sou um poeta bissexto.
• Você mantém a sete chaves os detalhes de seu novo romance, mas sabe-se que se passará entre o ambiente literário curitibano, que, como nos demais lugares do mundo, tem suas mesquinharias. O que se esconde atrás do cadeado?
O romance está pronto e não é tão secreto assim. Meu agente literário já leu e está cuidado da publicação. Mas é, sem dúvida, um romance polêmico, pois parte de minhas vivências com os escritores de Curitiba, é uma espécie de Ilusões perdidas curitibanas. Mas o personagem central, Beto Nunes, é totalmente fictício. Não quero falar sobre o livro, pois tiraria a graça e a surpresa.
• De quais escritores você fala?
Praticamente de todos com quem convivi, dos monstros sagrados aos candidatos, mas busquei condensar esta rica fauna em alguns personagens, para que o romance não ficasse colado a figuras reais. Não é, por isso, um roman à clef.
• Como é o seu método criativo? Você disse recentemente que segue Hemingway e só escreve sobre aquilo que conhece. O desconhecido não o atrai?
O desconhecido me atrai muito, por isso sou inquieto, quero vivê-lo, roubar as suas frutas. Agora, não vou nunca escrever sobre coisas que não me tocam, que não me machucam. Este negócio de escrever sobre o nada, sobre situações aéreas, desenraizadas, não é comigo. Eu tenho que ter convivido com o tema, os fatos devem ser importantes para mim. Por exemplo, agora ando pesquisando a vida de um inventor da máquina de escrever. É uma personalidade do século 19, e aparentemente não tem nada a ver comigo. Mas quem leu Chove sobre minha infância sabe da importância da máquina de escrever em minha vida, na minha formação. Este inventor é uma pessoa que está diretamente ligada à minha experiência, embora eu só o tenha descoberto este ano. Meu método criativo, se é que ele existe, é bem simples. Eu convivo longamente com uma história, fico com ela em minha cabeça, sem tomar notas, até ela tornar-se tão insuportavelmente pesada que preciso escrevê-la. Escrevo daí com grande rapidez, sem maiores planos, num fluxo meio alucinado. Pronto o texto, sinto nojo dele, uma espécie de tédio pós-coito, e o abandono, até, passada esta fase mais emotiva, poder ler tudo criticamente. É aí que a escrita realmente começa. Vou aparando, limpando, preenchendo algumas lacunas, criando outras. Para mim, é neste trabalho de saneamento do texto que está a arte da escrita. Mas ela não existe se não houver os momentos anteriores, de ruminação e de explosão. Mais uma coisa, só escrevo em absoluto estado de indignação com o homem que sou, com o país em que vivo, com minhas limitações.
• Durante alguns anos, você foi diretor da Imprensa Oficial do Paraná e desenvolveu um interessante projeto editorial, com o lançamento de vários livros na coleção Brasil Diferente. De que maneira os governos podem contribuir para a difusão da literatura e do livro, já que o mercado editorial, muitas vezes, é um funil por demais estreito?
Os governos devem principalmente criar políticas de compra de livros, políticas de criação e melhoria de bibliotecas públicas. É a melhor maneira de fortalecer o mercado do livro e criar novas chances editoriais. Não acredito no papel editorial do governo — eu sofri muito para poder editar coisas de qualidade, pois as pressões políticas são sempre no sentido de editar os apadrinhados do poder, escritores de quinta e dos quintos. Mas se o governo comprasse livros para as bibliotecas e criasse prêmios sérios, com alguma diferenciação por faixa etária, para gerar oportunidades aos jovens, haveria uma mudança completa da situação da leitura no país. Infelizmente, estou cada vez mais descrente no poder de mudança de nossa baixa democracia. Sonho hoje com a meritocracia. Cansei do governo dos mais populares e menos inescrupulosos.
• A literatura é ainda a melhor saída?
No meu caso, é a única saída.