Versos vermelhos

Resenha do livro "Romances de cordel", de Ferreira Gullar
Ferreira Gullar, autor de “Romances de cordel”
01/12/2009

Quando se fala em Ferreira Gullar, é citada sua atuação como militante político durante o período da ditadura militar instalada no Brasil de 1964 a 1985. Tal associação faz com que Gullar seja rotulado como um poeta social (no sentido mais específico do termo), o que caracteriza uma generalização contra a qual ele já protestou publicamente. Nesse caso, Romances de cordel — volume de quatro poemas publicados esparsamente na década de 1960, e só agora reunidos num livro exclusivo (com belíssimas ilustrações do xilogravador Ciro Fernandes) — é uma amostra da parte da obra do poeta que serviu como mote para a estigmatização.

Mais do que impregnados pela inclinação social e socialista do poeta, os textos do livro são completamente panfletários, como o próprio Gullar assinala na introdução: “São poemas, como se vê, escritos muito mais com o propósito de contribuir para a luta política do que para fazer poesia”. Isso inviabiliza as possibilidades de expressão artística dos escritos, seja pela ingenuidade das dicotomias — “Praia do Pinto é favela/ que fica atrás do Leblon./ O povo que mora nela/ é tão pobre quanto bom” — seja pelo caráter doutrinário que estimula esse tipo de criação textual: “Já vão todos compreendendo,/ como compreendeu João,/ que o camponês vencerá/ pela força da união./ Que é entrando para as Ligas/ que ele derrota o patrão,/ que o caminho da vitória/ está na revolução”.

A despeito da tônica geral — a vontade de fazer da literatura um instrumento de transformação da realidade pela via partidária —, e da métrica comum (a redondilha maior, muito própria do cordel), os quatro poemas apresentam-se de forma distinta, sendo uma epopéia, uma tragédia, uma comédia e uma ode.

No primeiro deles, João Boa-Morte, cabra marcado para morrer, narra-se a história de um lavrador que afrontou o latifundiário para quem trabalhava. Por conseqüência, João é demitido da fazenda, e, por influência do ex-patrão, não consegue trabalho nos arredores. Forma-se uma situação desesperadora, levando Boa-Morte a querer aniquilar, por causa da fome irremediável, toda a sua família. Porém a ideologia age para fazer do comunismo o bote de salvação do homem explorado por outro homem — “Compadre, não faça isso,/ não mate quem é inocente./ O inimigo da gente/ — lhe disse Chico Vaqueiro —/ não são os nossos parentes,/ o inimigo da gente/ é o coronel fazendeiro” —, e injeta no texto um patente neo-romantismo: “Enquanto Chico falava,/ no rosto magro de João/ uma luz nova chegava”.

A crença de que ao final tudo ficará bem cede espaço a um amargo realismo em Quem matou Aparecida?, narrativa trágica acerca de uma moça favelada que, ao perder tudo na vida, põe a perder a própria vida. Engravidada pelo patrão e despedida do serviço acusada de ladra, Aparecida, tempos depois, casa-se Simão, que desaparece após participar de uma greve. Em decorrência disso, o filho do casal morre de inanição, e a Aparecida resta um desfecho não menos aterrador: “Foi assim que Aparecida/ sem pensar e sem saber/ derramou álcool na roupa/ pra logo o fogo acender”.

O tom grave do protesto é substituído pela comicidade de Peleja de Zé Molesta com Tio Sam, no qual um cantador cearense efetua um duelo, na sede da ONU, com uma personificação do capitalismo norte-americano, o Tio Sam. A ira contra o capitalismo e a tentativa de denunciar suas hipocrisias são mantidas, mas o personagem central desfila como um malandro, no sentido mais brasileiro do termo: “Com seis anos sua fama/ corria pelo Pará;/ com oito ganhava um prêmio/ de cantador no Amapá;/ com nove ensinava grilo/ a cantar dó-ré-mi-fá;/ com dez fazia um baiano/ desconhecer vatapá”.

Fecha o livro História de um valente, na qual se fundem uma homenagem e um apelo à libertação do líder político Gregório Bezerra, que fora perseguido, preso e extremamente torturado pelo governo militar, em 1964, e no texto aparece como “homem de ferro e flor”: “Gregório é exemplo/ para todo comunista./ É generoso e valente,/ não teme a fúria fascista./ À barbárie do inimigo/ opõe o amor humanista”.

Em linhas gerais, Romances de cordel pouco acrescenta à bibliografia deste que é o maior poeta brasileiro vivo. Mas o livro tem valor, e ele se manifesta por propiciar uma leitura mais acessível, e, principalmente, por trazer consigo, ainda que com exageros e tolices, a crença viva e sincera de que o mundo pode e deve ser diferente.

Romances de cordel
Ferreira Gullar
José Olympio
96 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho