Crítica e criação literárias sempre mantiveram reticente distância em terras brasileiras. Nossos grandes escritores aventuraram-se de maneira não mais que tímida pelas teorias e sombras que rondam a literatura. Os críticos — vestidos com o manto de uma sabedoria por vezes duvidosa — arriscaram passos moucos pela invenção. Distantes, apesar de juntos, numa contradição permanente, críticos e escritores lutaram em trincheiras profundas e diferentes, mesmo sendo um só o território a ser conquistado. Nossa história literária não carrega nas veias a intromissão de terrenos como os ingleses, franceses ou mesmo norte-americanos. Carecemos de ímpeto para em plena batalha invadir a casa alheia e pedir guarida, ou conquistá-la.
Numa passada ligeira (o que permite o exíguo espaço), consagrados escritores, no afã ou agonia de extravasar a teoria e técnicas, trocaram inúmeras cartas. Aí, como de tempos em tempos vêm à luz, os missivistas e suas inquietações saltam para deleite de uma platéia sedenta. Várias discussões epistolares renderiam belos ensaios. Clarice, Machado, Rosa, Drummond, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Wilson Martins, Antonio Candido, Alfredo Bosi (para misturar temperos de diversos tempos) sempre estiveram em posições definidas e quase nunca se aventuraram numa jogada de efeito no campo adversário, como se a vida fosse curta demais para tantas vãs preocupações.
Em diferentes épocas, é claro, surge aqui e ali um intrépido mosqueteiro louco para lutar várias batalhas. Atualmente, não podemos deixar de citar Miguel Sanches Neto — com visão crítica apurada e sensibilidade poética e ficcional capaz de transformar a quase inóspita Peabiru num paraíso literário; José Castello — jornalista de muitas incursões pela arte da escrita, tanto como escritor competente e crítico de saboroso texto; Nelson de Oliveira — sempre atento à sua geração de escritores, sem descolar o olho de sua inquietante ficção. São nomes de força que partiram de campos “opostos” (Sanches começou na crítica, Castello no jornalismo e Oliveira na ficção) e ilustram muito bem a possibilidade de crítica e criação se enroscarem pelo meio do caminho, sem prejuízo a qualquer. Alguns outros nomes integram essa “lista”, com destaque especial para Luciano Trigo, Luís Augusto Fischer, Floriano Martins, Silviano Santiago, entre outros. E falo do tempo presente, obviamente. A lista seria infinita, caso entrássemos nos esporádicos resenhistas de jornais, sem falar é claro em alguns enclausurados acadêmicos. Mas deixemo-los, por ora.
Ao fim, essa discussão poderia render páginas e páginas e, como quase tudo em literatura, chegaria em lugar nenhum. Ao éter, como gostam alguns poetas e diluidores da poesia. Não considero necessário citar as panelinhas pseudocríticas em torno da poesia. De tempos em tempos, elas surgem, mas são de tanta efemeridade que causam apenas o saudável riso em quem sabe que as caveiras hão de se igualar na mediocridade de obras sofríveis (as crias se lambem e se aconchegam quando o frio ameaça matar). Longe de futricas casuais e, por isso, sem nenhuma importância, e com soberba consistência crítica, Antonio Carlos Secchin junta-se “agora” ao pelotão dos preocupados em exercer a crítica e a criação (poética, neste caso), com Todos os ventos (Nova Fronteira, 156 págs.), livro que reúne a sua esporádica, mas consiste poesia construída a partir de 1973, com Ária de estação, passando por Elementos (1974-1983) e Diga-se de passagem (1983-1988), além de poemas dispersos e aforismos.
Para chegar a Todos os ventos, Secchin lapidou, cortou, adicionou, multiplicou-se em versos livres, brancos, sonetos perfeitos, praticou o poema narrativo e, com pouquíssimas derrapadas, marca a sua “estréia” com força de uma poesia que duvida o tempo todo, em busca de respostas e caminhos, pois “se eu já soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai sendo ensinado enquanto escrevo”, como ele mesmo diz no trecho Aforismos (1991-1999).
Mas o que esperar da poesia de um dos mais importantes ensaístas e críticos de poesia do país? O risco de cair numa metapoesia ininteligível era grande. O crítico — por estar mais tempo na estrada — poderia engolir o poeta, jogando-o numa escuridão sem fim. Graças à segurança e à dissociação quase completa (ninguém é perfeito), o crítico passa despercebido, longe, com uma voz suave, mas cortante. O tempo também mostra-se muito favorável à sua poesia. Vê-se o apuro poético de Todos os Ventos (1997-2002), primeira parte do livro e que aglutina os melhores versos, principalmente em Dez sonetos de circunstância. Em tempos de experimentalismo pífios e risíveis, é prazeroso saborear belos poemas cujos versos nos dizem: “A casa não se acaba na soleira,/ nem na laje, onde pássaros se escondem./ A casa só se acaba quando morrem/ os sonhos inquilinos de um homem” (p. 38) ou ainda “de passado é bem certo que eu não morro./ Indiferente à sorte ou ao inferno,/ não tenho tempo para ser eterno” (p. 35).
Como não poderia ser diferente, a poética de Secchin carrega a influência de suas leituras e predileções. As referências a Bandeira, Jorge de Lima, Drummond e Cabral (Secchin é o maior conhecedor da obra do autor de Morte e vida Severina) são fortes, sem figurar apenas como um diluidor. O modernismo, o romantismo e o parnasianismo também estão presentes, mesmo que, às vezes, em “polêmicos” versos como o caso de É ele (poema de abertura de Todos os ventos), em referência a Álvares de Azevedo: “No Catumbi, montado a cavalo,/ lá vai o antigo poeta/ visitar o namorado./ Não leva flores, que rapazes/ raro gostam de tais mimos./ Leva canções de amor e medo./ Cachoeiras de metáforas,/ oceanos de anáforas, virgens a quilo./ Ao sair, deixa ao sono cego do parceiro/ dois poemas, um cachimbo e um estilo” (p. 17).
Com Todos os ventos, Secchin mostra-se por inteiro, abre as janelas de sua casa, convida-nos para um café fumegante, sacia-nos a fome e diz: “mesmo sozinhos não estaremos sós”. Poeta e crítico compartilham um espaço de destaque na literatura brasileira.