Velha e bem-vinda lição

"Como funciona a ficção", de James Wood, faz perguntas teóricas e dá respostas práticas
O crítico literário James Wood, autor de “Como funciona a ficção”
01/03/2012

A proposta do famoso crítico literário inglês James Wood, em Como funciona a ficção, é bem clara logo nas páginas introdutórias. De fato, o eminente estudioso da literatura, colaborador de jornais e revistas de fôlego como a The New Yorker, o The Guardian e o The New Republic, além de professor de Prática de Crítica Literária na Universidade de Harvard, deixa evidente as fontes de que se alimentam suas indagações acerca do literário, quais sejam a do formalismo russo e a do estruturalismo francês. Afirma, sem rodeios, que seus dois críticos literários favoritos do século 20 são Victor Chklóvski e Roland Barthes.

Diante disso, num primeiro momento, poderíamos perceber em tal tendência certo quê de anacronismo, tendo em vista o tanto que a teoria da literatura e seus novos postulados já avançaram, especialmente no que tange à incessante reformulação e re-significação dos conceitos de matriz formalista-estruturalista, que durante um bom tempo, dominaram o centro das atenções. Bastaria, a título ilustrativo, nesse sentido, apenas lembrar o nome de Mikhail Bakhtin (entre tantos outros) e a verdadeira revolução que suas idéias, a respeito da intertextualidade, dialogismo e polifonia desencadearam.

Mas, página a página, ao contrário do que inicialmente se poderia supor, vamos enriquecendo nosso primeiro olhar com os fascinantes exemplos de análises dos mais variados casos literários com que o autor nos brinda. E percebemos que a escolha de Wood está bem justificada, porque o que, em essência, ele pretende é que o seu livro faça perguntas teóricas e dê respostas práticas, ou, “em outras palavras, que faça as perguntas do crítico e dê as respostas do escritor”. E as perguntas a que ele se refere são extremamente pertinentes: o realismo é real?; o que é uma metáfora convincente?; o que é o ponto de vista e como ele funciona?; como reconhecer o bom uso do detalhe na literatura?; por que a literatura nos comove?

Assim, notamos o quanto é válido, em boa medida, retomar a velha lição dos formalistas e estruturalistas, que elegem a primazia do texto — como os já mencionados Chklósvki e Barthes —, a necessidade do entranhamento com seus elementos constitutivos, num ritualístico processo de dissecação das partes, para a melhor compreensão do todo. Mas que fique bem claro: a proposta de Wood não se esgota na aridez rigorosa de posturas extremistas, que se voltam ao corpus analisado e ali se fossilizam, sem dar um passo adiante. Ao contrário, elogia os processos constitutivos da tessitura ficcional, como se aumentasse, com uma lupa, as minúcias que, na maioria das vezes, nos passam despercebidas, exatamente para tornar mais acurada nossa capacidade de ler o literário. Melhor dizendo, ao proceder a uma análise, cuja premissa inicial é a de um debruçar-se sobre os mecanismos de composição ficcional, ele alarga nossa acuidade na recepção dos textos literários, tornando-nos leitores mais aptos. O que aqui se evidencia, portanto, é que, partindo de um pressuposto de base formalista, seria possível atingir instâncias elevadas de compreensão do que vem a ser a ficção, uma vez que a análise minuciosa dos textos selecionados ilustra e serve de apoio a um dos tópicos mais discutidos pela Teoria da Leitura: o da formação de leitores. Daí por que percebamos, no intuito do crítico que questiona e revitaliza conceitos, o elogiável didatismo do professor de Crítica Literária, que exagera em como proceder a certo tipo de análise literária, como exemplo fidedigno de leituras bem conduzidas.

Diante disso, observamos também, quem sabe, uma tentativa de minimizar os efeitos nefastos dos rumos mal conduzidos de certas pesquisas acadêmicas, muito comuns entre nós. O que vemos, infinitas vezes, é que se acaba fugindo dos propósitos de uma boa análise literária, quando o texto e seus elementos constitutivos são relegados a segundo plano, em detrimento da apologia do que está ao redor, em teses que suscitam psicologismos, sociologismos, e todos os outros “ismos” tendenciosos, que não conseguem privilegiar a matéria de que o literário é feito.

Discurso indireto livre
E uma dessas matérias, a ser estudada com atenção, segundo Wood, é o uso adequado do que se convencionou chamar “discurso ou estilo indireto livre”. Em vez de buscar teorizações a respeito, o autor apenas constata que graças a esse tipo de discurso, “vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor”, o que permite que habitemos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade. Um dos melhores exemplos de excelente manejo desse recurso está nos modos de narrar de Henry James (um dos favoritos do crítico). A propósito, vale verificar como este analisa um trecho de Pelos olhos de Maisie:

O estilo indireto livre nos ajuda a compartilhar a confusão infantil, neste caso a confusão de uma garotinha. James conta a história, em terceira pessoa, da menina Maisie Farange, cujos pais passaram por um divórcio difícil. Ela é jogada de um lado para o outro, conforme se sucedem as governantas que lhe são impostas ora pela mãe, ora pelo pai. James quer que o leitor compartilhe a confusão da menina, e quer também descrever a corrupção dos adultos vista pelos olhos da inocência infantil […] Que exemplo de escrita! Tão flexível, tão capaz de ocupar diferentes níveis de compreensão e de ironia, tão repleta de uma identificação pungente com a pequena Maisie, apesar de o tempo todo se aproximar dela e depois se afastar, de volta para o autor.

[…] o estilo indireto livre é tão benfeito que aparece como “pura voz” — ele quer se reconverter na fala da qual é paráfrase.

Ao tratar da ironia, define-a como um refinamento do estilo indireto livre e escolhe o conto O violino de Rothschild, de Tchekhov, como bom exemplo do uso desse recurso, percebendo que o famoso autor russo consegue, logo de saída, subverter a neutralidade que se esperaria no começo de um conto ou romance: “A cidade era pequena, pior que aldeia, e habitada quase só por velhos, que morriam tão raro que isso até causava desgosto. Poucas eram também as encomendas de caixão do hospital e da cadeia. Em suma, os negócios iam pessimamente”.

Coro local
O que Wood observa é que o conto começa já em pleno estilo indireto livre e que nos coloca (a nós leitores), pensando da mesma maneira que o fazedor de caixões muito mesquinho, para o qual a longevidade é um aborrecimento financeiro. A esse procedimento ele dá o nome de “coro local”, porque o conto é escrito de um ponto de vista mais próximo do coro de uma aldeia do que de um indivíduo.

E aprofunda a questão, ao tratar do italiano Verga:

O escritor siciliano Giovanni Verga (quase da mesma época de Tchekhov) usa esse tipo de narração em coro de modo muito mais sistemático do que seu colega russo. Os contos de Verga são escritos tecnicamente na terceira pessoa, mas parecem emanar de uma comunidade de camponeses sicilianos; são repletos de provérbios, truísmos e analogias rústicas.

Podemos dizer que é um “estilo indireto livre não identificado”.

Aqui, entretanto, para quem conhece o brilhante estudo do professor e crítico brasileiro Antonio Candido, que elaborou o posfácio da edição brasileira da obra Os malavoglia do famoso autor siciliano, a constatação de Wood parece pouco abrangente, uma vez que, embora parta da verificação muito adequada dessa narração “em coro”, deixa de lado, porém, as questões contextuais que a justificariam. Em outras palavras, o apelo aos provérbios e a uma voz coral que se sobrepõe à individual, em Verga, tem uma função que vai bem além da construção formal do texto e deita raízes na voga do Determinismo Sociológico de Tayne ou do Naturalismo de Zola, que influenciaram toda uma geração de escritores e cuja premissa é a de que o indivíduo não tem como se haver com a pressão e os condicionamentos impostos pelo meio que o circunda, sucumbindo às suas imposições. Nesse sentido, as feições assumidas pelo texto estão imbricadas aos ditames da época, que exigiam uma postura literária alinhada ao que se convencionou denominar “romances de tese” (já que defendiam o quanto a voz da aldeia ou da comunidade se impunham à do indivíduo, que permanecia sempre sem qualquer chance de expressão).

Flaubert
Entre os escritores que decide analisar, Wood destaca a grande importância de Flaubert:

Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna e sua influência é tão grande que se faz quase invisível.

E, segundo a percepção do crítico, o que confere esse status ao famoso escritor francês é o fato de que ele consegue realçar o detalhe expressivo e brilhante; de privilegiar um alto grau de percepção visual; de manter numa compostura sentimental, abstendo-se de comentários supérfluos; de ser neutro ao julgar o bem e o mal; de procurar a verdade, mesmo que seja sórdida e de trazer em si as marcas do autor, que, embora perceptíveis, paradoxalmente não se deixam ver. Algumas dessas características se encontrariam em Defoe, Austen ou Balzac, mas todas juntas só em Flaubert.

Personagens planos e redondos
Outra grande qualidade de Como funciona a ficção é a de questionar e reverter certos conceitos, tidos como padrão para os estudos literários. É o que Wood faz ao discordar da célebre dicotomia estabelecida por E. M. Forster em Aspectos do romance, distinguido os personagens mais bem elaborados como sendo complexos, “redondos” enquanto os “planos” estariam num grau de elaboração inferior:

Forster é francamente esnobe em relação aos personagens planos e gosta de rebaixá-los, reservando a categoria mais alta aos personagens redondos ou completos.[…] Eu ficaria muito feliz em abolir a própria idéia de “redondeza” (roundness) da caracterização, porque ela nos tiraniza — a nós leitores, romancistas e críticos — com um ideal impossível. A “redondeza” é impossível na literatura, uma vez que personagens literários, embora muito vivos à maneira deles, não são iguais a pessoas de verdade… O que importa é a sutileza… A divisão de Forster privilegia em grande medida os romances em relação aos contos, pois os personagens dos contos raramente têm espaço para se tornar “redondos”. Mas aprendo mais sobre a consciência do soldado em “O beijo” de Tchekhov, do que sobre a consciência de Becky Sharp em “A feira das vaidades”, porque o exame de Tchekhov sobre como funciona a mente de seu soldado é mais agudo do que a vivacidade em série de Thackeray.

Realismo e verdade
Ao enfrentar o sempre problemático conceito do que vem a ser o realismo em literatura, nosso crítico opta por deixar o termo de lado, a fim de poder explicar de que modo algumas obras como A metamorfose, de Kafka; Fome, de Hamsun, e Fim de partida, de Beckett, embora não sendo representações de atividades humanas típicas ou prováveis, ainda assim devam ser consideradas como textos “aflitivamente verdadeiros”.

Seja pela riqueza de abordagens em relação a dúvidas, sempre presentes nos enfoques teóricos da literatura, seja pelo questionamento acurado de conceitos, tidos como convencionais e, sobretudo, pela análise minuciosa de casos repletos de índices sinalizadores dos procedimentos que norteiam a constituição de um texto, o livro de James Wood nos deixa, no mínimo, muito curiosos pelos autores que apresenta. Quanto mais não seja, diante dessas suas bem-vindas lições, poderemos nos tornar, no mínimo, leitores melhores.

Como funciona a ficção
James Wood
Trad.: Denise Bottmann
Cosac Naify
232 págs.
James Wood
Nasceu em 1965 em Durham, Inglaterra, e é considerando um dos mais renomados críticos literários da atualidade. Foi o principal crítico literário do The Guardian (de 1992-1995); em 1995 tornou-se editor sênior da revista The New Republic. Seus ensaios têm sido publicados com freqüência no The New York Times, The New Yorker, New York Review of Books. Ensina Prática de Crítica Literária na Universidade de Harvard. É também autor de um romance: The book against God, de 2003, inédito no Brasil.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

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