Os leitores e tradutores de poesia italiana muito provavelmente já se defrontaram com Mattina [Manhã], poema lapidar de Giuseppe Ungaretti:
M’illumino
d’immenso.[i]
Sua aparente simplicidade esconde, todavia, um problema considerado insolúvel para a tradução em língua portuguesa: o fato, assinalado por vários estudiosos, de o verbo original soar proparoxítono — “illUmino” —, diverso do paroxítono vernáculo “ilumIno”.
O texto italiano comporta dois versos de duas sílabas métricas (assim considerados porque é na sílaba 2 que incide a tonicidade), seguidas, no verso 1, de duas átonas (“-mino”), e, no seguinte, de uma (“-so”).
Numa tradução literal, teríamos:
Me ilumino
de imenso.
Tudo certo quanto ao segundo verso, mas no primeiro há um deslocamento da tonicidade para a sílaba 3, gerando sensível prejuízo rítmico pela supressão da simetria com o verso seguinte, acentuado (nas duas línguas) na sílaba 2. “Ilumino-me” tampouco resolveria o impasse.
Uma engenhosa solução foi proposta por Haroldo de Campos:[ii]
Deslumbro-me
de imenso.
O tradutor conseguiu restaurar a tonicidade da segunda sílaba do verso inicial, consoante a matriz de Ungaretti: “illUmino”/ “DeslUmbro”, com a vantagem suplementar de escolher um verbo que mantém a vogal tônica, /u/, presente no texto italiano — ao custo, porém, de uma forte alteração semântica, na troca de “iluminar” por “deslumbrar”[iii]. A afirmação explícita de deslumbramento frente ao dia não é informação contida no poema original. Ademais, o iluminar é ação de fora para dentro, o poeta se deixa iluminar pela manhã, enquanto o deslumbrar-se é reação de dentro para fora, diante da manhã.
Busquei uma alternativa que unisse a fidelidade ao pensamento de Ungaretti às características melódicas e rítmicas com que ele foi expresso. Para tal, optei pela inversão dos versos da sequência italiana. Tive de trair o poema de origem nesse aspecto para tentar ser-lhe fiel em outros, no plano da forma:
De imenso me i-
-lumino.
Vejamos. Em Ungaretti (“M’illumino”), conforme já dito, encadeiam-se uma sílaba átona, a tônica e duas outras átonas. Na tradução (“De imenso me i-”), ocorre disposição similar, com o adendo de o atributo da amplitude replicar-se na duração mais longa da vogal /i/, expandida nas crases que abrem e fecham o verso: “De i”; “me i-”. Para falar de algo imenso, prolongam-se também as vogais. Com isso, o fecho do poema em português (“-lumino”) passa a preservar uma rigorosa identidade rítmica com o epílogo italiano (“d’immenso”): nos dois casos, os versos se constituem de três sílabas, numa sucessão de átona, tônica e átona. Ambos igualmente dispõem da consoante /m/ no início da sílaba forte.
Essas considerações objetivaram demonstrar que a grande poesia, mesmo condensada em pequeno poema, demanda um trabalho inesgotável para o tradutor, perpetuamente lançado ao desafio de recriar em outro idioma a química indissolúvel de som e sentido que deu vida ao texto original.
NOTAS
[i] Mattina. In: WATAHIN, Lucia, org., CAMPOS, Haroldo de, BERNARDINI, Aurora F., trad. Ungaretti. Daquela estrela à outra. São Paulo; Ateliê Editorial, 2003. p. 56.
[ii] Id., ibid., p. 57.
[iii] Geraldo Holanda Cavalcanti, entre outras observações, contrapõe a “epifania”, no poema de Ungaretti, ao “deslumbramento”, na tradução de Campos. In: UNGARETTI, Giuseppe. Poemas. CAVALCANTI, Geraldo Holanda, sel., trad. e notas. São Paulo: EdUSP, 2017. p. 263.