Uma metáfora para as falências

Em "Jóias de família", Zulmira Tavares Ribeiro busca entender e denunciar o legado de hipocrisias das grandes famílias ocidentais
Zulmira Ribeiro Tavares age como um pintor expressionista, deforma as imagens e cria enigmas.
01/05/2007

Basta uma leitura de parte da obra de Gilberto Freyre — sobretudo a trilogia Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil — para se entender os segredos entranhados na formação da família brasileira. Para se conhecer a psique — sempre marcada por mistérios e imensas ilusões — de tal núcleo, um bom começo é a leitura de Jóias de família, o breve romance de Zulmira Ribeiro Tavares. Sua estrutura se forma como uma imensa metáfora a todas as falências.

A primeira dessas falências é econômica. Zulmira narra a vida de Maria Bráulia Munhoz. Filha de uma família rica, ainda moça, nos anos 1930, casa com um respeitado juiz de direito. Na velhice, viúva e sem filhos, vive do aluguel de alguns imóveis. Embora longe da riqueza de sua mocidade, mantém todos os rituais que a fortuna a ensinou.

Segue-se uma falência moral. Toda vida de Bráulia foi escudada em conceitos rígidos, mas que ao longo da narrativa vão sendo apagados, anulados pela seqüência de fatos que revelam intensas imposturas. Ela mesma vai compreendendo todo esse estranho mecanismo e, claro, se moldando a ele de maneira até cínica. Não abre mão da impostura, pois compreende o quanto ela é necessária para sua sobrevivência como gente. Afinal, precisa manter algumas ilhas de respeito, como a subserviência de Maria Preta.

Só que este respeito é também falido, pois nasce de necessidades mais profundas. Maria a respeita por um certo hábito, enquanto Julião, o sobrinho do juiz Munhoz que deixa o jornalismo para cuidar dos negócios de Bráulia — a tia Brau —, pauta-se pela esperança de uma gorda herança. Sonhando-se muito vivo, ele desconhece toda falsidade daquele mundo familiar. A própria virtude tão cultuada de Bráulia está maculada por seu enigmático envolvimento com o joalheiro Marcel, um francês descendente de português que constrói — ele também — uma biografia escudada numa falsa santidade.

Apesar de todos os pesares, Bráulia mantém seus ritos. Sempre lava as pontas dos dedos em água de pétalas de rosas, respeita o horário da sesta, guarda as jóias em cofre, preserva a memória de uma família mesmo conhecendo o quanto de falsidade e falência há nisso tudo. Mas cada gesto deve ser recorrentemente realizado. E novamente surge a necessidade da sobrevivência e do sentido para a vida. Ela — a vida — foi toda construída sobre as falências e não há mais como mudá-la.

Um mundo envelhecido. Este é o ambiente em que vive a protagonista. Tudo é denso e escuro. Mesmo as felicidades — inexistentes no presente — quando chegam vêm conduzidas pelas lembranças falsificadas, o que desnuda a verdade das alegrias. E embora tudo isso se passe em São Paulo, sob o mundo crescido com os pés de café, tudo se traduz em universalidade. Zulmira conta a saga de Bráulia buscando entender e denunciar o legado de hipocrisias das grandes famílias ocidentais.

Assim as jóias falsas guardadas nos cofres servem como metáfora para as falências daquele mundo. Foram anos em que o discurso da dignidade do trabalho escondeu a prática do ócio, a defesa dos gestos humanitários encobriu a ação autoritária e preconceituosa, a riqueza aparente encobriu o ouro escurecido, o sofá puído, as cortinas empoeiradas. Tudo foi consumido pelo tempo, até a pele sedosa de Bráulia, mas mesmo este fato ela encobre com o excesso de cremes e maquiagem.

No entanto, em Jóias de família nada é explícito, claro. Zulmira age como um pintor expressionista, deforma as imagens, cria enigmas como a presença do cisne de Murano. Aliás, tudo isso se resume de maneira brilhante no breve capítulo final. Ele consegue instigar ainda mais a leitura, pois salienta a necessidade de se olhar esse mudo por mais tempo que o necessário para a leitura de um breve romance.

Zulmira Ribeiro Tavares sabe que trabalhar com palavras exige silêncios. E é exatamente se valendo disso que constrói seu romance como uma pequena obra-prima. Diz tudo aquilo que quis dizer, mas, ao mesmo tempo, instiga a imaginação do leitor, o chama para uma parceria. O mundo de hipocrisia, mesmo metaforicamente descrito, está ali com todo sua intensidade. Conclusões, continuidades e similitudes que fiquem a cargo do leitor.

Jóias de família
Zulmira Ribeiro Tavares
Companhia das Letras
81 págs.
Zulmira Ribeiro Tavares
Nasceu em São Paulo, em 1930. É autora de Termos de comparação (1974, prêmio de revelação APCA), O japonês de olhos redondos (1980) e O mandril (1988). De sua autoria, a Companhia das Letras publicou Café pequeno (1995), Cortejo em abril (1998) e O nome do bispo (1ª. edição pela Brasiliense; prêmio Mercedes-Benz de Literatura).
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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