Eric Blair não nasceu no futuro que chegou a imaginar. Nem no passado que condenava com toda a força do intelecto. Herdeiro de tradições que veio a atacar com veemência, inclusive nos preconceitos que ele mesmo se flagrou, Blair era tão britânico quanto muitos conterrâneos que desprezava. O que lhe restou fazer, por fidelidade a si mesmo, foi aceitar a época em que abriu os olhos, e mergulhar em suas próprias inquietações. Para exercer o papel que lhe cabia, escolheu a escrita como arma, sem se valer da literatura como trincheira ou esconderijo. Era preciso que a arma da palavra fosse lida para ser efetiva. Personagem típico de uma elite cultural, ele não se contentou em representar o escritor engajado. O ativismo que demonstrou em episódios marcantes de sua vida pode ter se refletido na arte literária que viria a desenvolver — mas não serviu como pretexto de um exercício estilístico desatrelado da realidade. O contrário talvez seja mais provável: a experiência lhe muniu de argumentos e cenários propícios para que a palavra que espalharia por jornais, revistas e livros ganhasse o sulco de perenidade que uma obra é capaz de deixar.
O português José Saramago afirmou que o escritor é um lugar em que o tempo escreve. A literatura está imersa na época do autor. Saramago e Blair podem ter pontos de tangência, na forma como observaram o mundo em volta e o traduziram em palavras que, imaginando outros mundos, descreveram com maestria os temores e as contradições habitando o tempo em que viveram. Na cidade dos cegos ou na terra do Grande Irmão que tudo vê, a leitura de um peso invisível, estrutural, sobre as existências individuais, talvez abra um diálogo entre dois grandes expoentes da literatura. Eric Blair jamais escaparia das origens criticadas em suas páginas, mas realçadas pelo nome que escolheu no batismo da carreira, quando lançou o primeiro livro — começando pelo prenome visceralmente inglês, acompanhado de sobrenome fictício em homenagem a um rio cuja visão lhe agradava. Ao se tornar escritor, Eric Blair preferiu a companhia de um pseudônimo, como se sabe, e se transformou em George Orwell.
Com a chegada de sua obra ao domínio público desde janeiro, a popularidade do autor de A revolução dos bichos e 1984 ganhou reedições e novas traduções — inclusive com mudança no título de um dos mais conhecidos romances de Orwell, aproximando-o do título original: Animal farm é agora A fazenda dos animais, em novas edições lançadas no Brasil. No ano passado, poucos meses antes do domínio público, também foi lançado no país o ensaio biográfico Orwell — Um homem do nosso tempo, de Richard Bradford, publicado pela Tordesilhas. Nele, são tecidos paralelos entre as críticas de Orwell destinadas aos contemporâneos e problemas que atravessaram as décadas e persistem como sombras problemáticas sobre a Inglaterra, Europa e toda humanidade.
Capacidade analítica
O que faz de seus textos tão realistas na descrição da miséria, da opressão e da guerra, e de suas distopias lidas por várias gerações, referenciais obrigatórios para se refletir sobre ameaças que não ficaram para trás? A capacidade analítica de Orwell e sua visão de longo alcance revelam não apenas uma compreensão aguda válida para o diagnóstico profundo de sua época, mas também sugerem o discernimento da permanência de condições latentes inclinadas à materialização de um futuro distante de sua própria morte. Sem profecias objetivamente confirmadas mais tarde, o que o grande escritor conseguiu foi apontar a sensibilidade para perigos estruturais, com raízes na cultura e consequências políticas que marcaram a história. Perigos que ainda nos rondam, e até podem ser vistos em plena potência, seja na aversão britânica a estrangeiros, seja na habilidade do pensamento duplo presente na retórica de políticos como o ex-presidente norte-americano Donald Trump.
O pensamento duplo, ou “duplipensamento”, apresentado em 1984, é um artifício dos poderosos para controlar a realidade sem o escrúpulo de alterar a verdade quando for conveniente. Nada diferente dos políticos brasileiros de qualquer tonalidade ideológica. Embora não surja como tema no clássico de Orwell, o comportamento negacionista dos criminosos pegos com a boca na botija da corrupção é tão tipicamente verde-amarelo quanto o escapismo com que os ingleses elaboram o seu isolacionismo para justificar a saída da Comunidade Europeia desde a aprovação do Brexit. Na perspectiva dos relatos da personalidade do povo britânico, a identificação de traços coletivos, por Orwell, faz imaginar que a decisão pela saída da Comunidade não seria, para ele, nenhuma surpresa.
O traço xenofóbico que não se restringe aos britânicos é a negação do espírito europeu e dos esforços institucionais de traduzir a realidade continental em instrumentos legais que favoreçam a circulação de pessoas de diferentes nacionalidades e a convivência entre habitantes provenientes de diversos países, em um mesmo país. O retorno à ilha decretado pela vontade da maioria dos ingleses no Brexit é contraditório — mas ao mesmo tempo em que espelha a nossa época de contradições, a negação da Comunidade Europeia é reação que vem de longe, e se inscreve na história e na cultura dos britânicos. “A insularidade dos ingleses, a sua recusa em levar a sério os estrangeiros, é uma tolice pela qual pagamos um preço alto de tempos em tempos”, escreveu Orwell em ensaio citado por Bradford.
Pós-verdade acolhe a mentira
O duplipensar pode ser visto como uma espécie de língua política universal, em que a negação constante dos fatos é misturada à afirmação insistente de mentiras ou ambiguidades. Mais uma vez, o futuro em que vicejam as fake news e o conceito fluido de pós-verdade não seria espantoso para o autor. Especialmente em estação de campanha eleitoral, mas também com retumbante rotina fora dela, o exercício mental que refuta no que diz aquilo que pensa, não deixa de ser um sintoma do tipo de deterioração que Orwell gostaria de não ter visto se espalhar. Abrindo ainda mais a lente, a reverência dos líderes mundiais de hoje ao poderio da economia chinesa, sem considerar a prática de apagamento e substituição de registros históricos, ou a violação dos direitos humanos naquele país como algo digno de nota, é apontado por Bradford como triste constatação do legado simbólico de George Orwell.
Antes de se vestir de Orwell, Eric Blair já exercitava o pensamento crítico sem se preocupar com ataques que poderia receber, ou com as reações que poderia produzir.
A China é o exemplo que parece mais claro, no exame de cenários sobre os quais o escritor britânico poderia se manifestar com a conhecida contundência. Assim como pintou a caricatura do comunismo soviético em A fazenda dos animais, ou alertou para a privação das liberdades que se ligam às tiranias, em 1984, a suposição de Bradford é que Orwell não se calaria diante da hipocrisia dos que fecham os olhos para o autoritarismo chinês. Pois, para ele, valor da liberdade paira acima do clamor da igualdade como pressuposto do desenvolvimento humano. Sacrificar a liberdade pela igualdade não seria uma boa troca.
Muito menos sacrificar o real pelo ilusório. Daí a impaciência do jornalista e escritor com voos, para ele, despropositados, na literatura. Chega a recordar a expulsão dos poetas da República, por Platão. A importância do real para o autor de consagradas distopias parece indicar o quanto o apreço às verdades de seu próprio tempo serviu de base para sua criação literária — como em Saramago. Em coerência com o exercício da profissão jornalística, conduzido pelo espírito atento aos contorcionismos ideológicos de seus contemporâneos, e cioso dos efeitos de longo prazo dessa acrobacia sobre tudo o que mais prezava: as verdades que enxergava e o direito — para ele, um dever — de expressá-las de modo fidedigno e crítico, até na fantasia distópica. Na junção da fidelidade histórica com o direito dos indivíduos à liberdade, era como se Orwell escrevesse pela caneta de seu protagonista em 1984: “Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós — a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito”.
Onde a verdade existe, a palavra não se apaga, como ocorre nas repartições públicas do romance distópico em busca de uma utopia. A verdade não é dispensável em nossas vidas. E um dos méritos da literatura é descortinar verdades sobre nós mesmos que estavam encobertas. De modo similar, obras literárias desvendam o que se esconde na realidade, sem sair dela. O cinismo totalitário e a supressão do indivíduo em nome de ideologias ou partidos que se afastam do que pregam dogmaticamente tanto podem ser denunciados pela prática jornalística quanto pela inventividade da literatura. No caso de George Orwell, Eric Blair contou desde cedo com o talento que mesclou realismo e ficção, ultrapassando a brevidade da existência e chegando à terceira década deste milênio como um autor atual.
A biografia visitada por Richard Bradford em Orwell — Um homem do nosso tempo destaca a inteligência precoce que se internaliza na solidão e se expõe na independência do pensamento crítico. O resultado não tinha como fugir a um intelectual que se sente sempre deslocado de seu local de origem e de sua época, cuja potencialização vital se dá no amadurecimento que leva a introspecção a se mostrar através de uma crítica mordaz ao mundo que o rodeia. A perspicácia no olhar não abdicava da autocrítica, exposta em textos que conduzem a sentimentos de culpa e vergonha pelo reconhecimento de si nos outros, constatando a identidade com atitudes consideradas, por ele, deploráveis.
Antes de se vestir de Orwell, Eric Blair já exercitava o pensamento crítico sem se preocupar com ataques que poderia receber, ou com as reações que poderia produzir. Como jornalista e escritor, Orwell, que tinha firmes convicções como alicerces, não se intimidava com a opinião da maioria das pessoas a respeito de seus escritos. Fazia questão, aliás, de se mostrar no polo oposto do ocupado pela maioria. Postura rebelde coerente com a trajetória de vida, desde o estranhamento com o ambiente familiar até a apresentação voluntária para combater o totalitarismo na Guerra Civil Espanhola. A liberdade era sua causa, seu destino, sua revolução.
Em trecho que vale a pena marcar, dentre as citações selecionadas por Bradford, Orwell recorda o episódio do cumprimento de uma pena capital por enforcamento, que testemunhou na Birmânia:
É curioso, mas até aquele momento eu nunca me dera conta do que significava destruir um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro pisar de lado para desviar da poça d’água, vi o mistério, a inominável injustiça de abreviar uma vida em pleno auge. Aquele homem não estava agonizando, estava tão vivo quanto nós. Todos os órgãos de seu corpo estavam funcionando — os intestinos digeriam o alimento, a pele se renovava, as unhas cresciam, os tecidos se formavam — labutando numa solene sandice. As unhas continuariam a crescer quando ele estivesse no cadafalso, quando começasse a cair no ar, restando-lhe um décimo de segundo de vida.
O parágrafo é ilustrativo do posicionamento do autor contra a pena de morte — cuja vigência resta em poucas nações, como a China e os Estados Unidos, mas cujo retorno vem ressurgindo no desejo de parcelas crescentes das populações, a exemplo da britânica. Não por acaso, a extinção da pena de morte é condição de participação de um país na Comunidade Europeia desde 2003. A volta da adoção da pena de morte na Inglaterra, abolida em 1964, foi um dos argumentos dos defensores do Brexit. O horror de Orwell diante do enforcamento em curso sob seus olhos é a reação do humanista aviltado pela desumanidade patente, escancarada e irrefreável feito instinto animalesco assassino. Matar por matar é comparável à disputa do poder pelo poder — e ambas as coisas são vistas pelo autor de A fazenda dos animais como indignas do espírito humano, além de evidências do quanto é possível se ir fundo na imoralidade que sustenta a desigualdade — para ele, sinônimo de crueldade.
A relação entre a manipulação da informação e a manutenção do poder é considerada uma das antevisões de George Orwell.
Ditadura da tecnologia
Um dos símbolos de sua última e mais famosa obra é a onipresença do Grande Irmão — o Big Brother, pasteurizado no programa de TV que fecha as pessoas numa casa monitorada 24 horas por dia por câmeras que transmitem imagens ao vivo para os espectadores. Embora a caricatura da franquia do reality show pareça desmerecer a fonte literária, a essência tecnológica e cultural da vigilância subsiste, bem como o controle do enredo farsesco pela produção do programa, que faz as vezes de “Estado”.
No romance de Orwell, o caráter opressor das “teletelas” é acentuado pela passividade dos vigiados, de um lado, e pela capacidade do “Partido” de reduzir a realidade aos seus interesses, esmagando simultaneamente a dimensão individual da existência e a concepção de verdades reais do lado de fora da consciência. O mundo, para os tirânicos governantes de 1984, é o produto ilusório de cada mente — e a mente do indivíduo está submetida à realidade imposta pelo poder absoluto do Grande Irmão.
A relação entre a manipulação da informação e a manutenção do poder é considerada uma das antevisões de George Orwell. O recente distúrbio na transição presidencial dos Estados Unidos pode ser lido por esse prisma, em mais uma prova da ligação do autor com o nosso tempo, como exprime Richard Bradford. A reação das empresas de tecnologia, ao banir Donald Trump das redes sociais, bem como impedir o acesso a aplicativos conservadores utilizados pelo ex-presidente norte-americano, foi sintomática do alcance desse tipo de manipulação na maior democracia do planeta. E também mostrou o quanto essas empresas, mudando a percepção para outro rumo, são um risco latente para a própria democracia, ao carregarem o poder de decidir quem fica ou quem sai, e o que pode ou não ser postado — exatamente como ocorre na China, onde os principais canais de acesso ao resto do mundo pela internet são bloqueados.
O modelo de gestão totalitária da informação vai muito além do debate ocidental centrado na dicotomia entre privacidade e liberdade individual. Os ditadores chineses não estão preocupados com tal polêmica, porque na prática, por lá, a discussão já foi superada. Tanto a modelagem de novas verdades em lugar de antigas, jogadas no “buraco da memória”, quanto o domínio da vida privada da população são fatos consumados. Daí o perigo crescente da naturalização das relações dos países ditos democráticos com a potência asiática, em nome da economia. A prosperidade da China passa a ser almejada, admirada, ainda que o pensamento duplo, vez por outra, condene a natureza dessa prosperidade, sem se importar de negociar com ela.
A tecnologia do totalitarismo é mais abrangente do que seus aparatos tecnológicos. O desafio da democracia contemporânea é não sucumbir à instrumentalização autoritária da informação e da comunicação. A fragilização democrática perante ameaças populistas e dos defensores da relativização do real, propagandistas de mentiras por fake news, precisa ser combatida pela mesma tecnologia que a afronta. A questão é de postura, de iluminação versus obscurantismo, e não de mais ou menos tecnologia, à maneira de tecnofóbicos. Para não chegarmos no ponto em que chega o protagonista de 1984, Winston, ao se dar conta de que “para guardar um segredo, teria de guardá-lo também de si mesmo”. Pois o mero fato de pensar criticamente seria um indisfarçável ato criminoso. Na visão de Bradford, a noção de realidade interior é, para o personagem, “o último refúgio contra forças que parecem determinadas a extinguir seu senso de identidade”.
Vale a pena lembrar o artifício usado por George Orwell para fazer a identidade pessoal reagir à realidade agressiva de um mundo avesso à identidade, contrapondo-se ao real com veemência: o ato subversivo da escrita, armado com a caneta e um caderno com folhas em branco. A palavra que vem de cada indivíduo e se projeta para a leitura muito além de si mesmo — eis a esperança otimista no horizonte distópico.