Uma intrusa na festa dos modernistas

A obra de Júlia Lopes de Almeida é de uma riqueza impressionante e digna de figurar entre os clássicos brasileiros
Ilustração: Júlia Lopes de Almeida por Fabio Miraglia
01/10/2022

O trecho a seguir poderia ser, por exemplo, de Guy de Maupassant ou de Théophile Gautier, ambos escritores franceses afamados do século 19, que flertaram com o fantástico. 

Em cima da mesa, bem exposto à claridade da lâmpada elétrica, estava aberto um dos grandes livros da estante e, como se mão invisível o manuseasse, as suas folhas viravam-se lentamente, sossegadamente… (…) depois o livro permaneceu imóvel, até que sobre o papel amarelo apareceu um dedo de homem, um dedo velho que, deslizando sob várias linhas, fixou-se por fim sob uma só frase.

Já este segundo trecho bem poderia estar em A alma encantadora das ruas do fecundo cronista João do Rio, para quem a rua tinha alma.

Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranquila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.

Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter.

Nada disso. O primeiro foi retirado de uma das novelas de A isca, intitulada O dedo do velho, publicada em 1922, ou seja, no mesmo ano em que se enfunavam os papos de Os sapos de Manuel Bandeira, na Semana de Arte Moderna. Então, essa coletânea de quatro intrigantes novelas, das quais o tal dedo velho faz parte, completa também cem anos este ano. Evoé! O segundo trecho é de um romance chamado A intrusa, publicado em 1908, mais ou menos no mesmo momento em que João do Rio escrevia suas crônicas para a coletânea mencionada e que estão há muito (mais) tempo em minha memória.

Trouxe os nomes dos escritores franceses e do brasileiro — todos homens — porque eu os conheci antes dela. E eu teria arriscado propor os nomes deles para autores dos trechos acima, se alguém tivesse me perguntado. Conheci a autora dos excertos de abertura apenas em 2020 e, desde então, já li romances, contos, novelas, livros escritos em parceria, uma tese de doutorado sobre sua obra e estou longe, muito longe — felizmente — de ter me fartado da obra de Júlia Lopes de Almeida. Ela me surpreendeu, ela me surpreende, e comemoram-se agora em 2022 os 160 anos de seu nascimento.

Nos primórdios da ABL
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) fez sucesso em vida, ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras, candidatou-se, não entrou, é autora de uma obra grande, em números e em diversidade, que, entretanto, depois de sua morte, foi submersa pelas instituições que consolidam o cânone ainda bastante masculino da literatura brasileira. Em ano em que festejamos o centenário da Semana de Arte Moderna, os leitores e as leitoras de Júlia reivindicam um convite nas celebrações também para a escritora.

Júlia era carioca, mas morou no estado de São Paulo e também em Portugal; nasceu em meio letrado e começou cedo na literatura. Publicou com a irmã, aos 24 anos, uns contos para crianças. Aliás, Júlia gostava de escrever com os outros, pois publicou com o filho e também com o marido, Filinto de Almeida, que ficou com a sua vaga na ABL. A escritora nasceu e conviveu em meios letrados; sua coletânea de contos Ânsia eterna é repleta de dedicatórias de sua sociabilidade letrada. Tem até um conto para Machado de Assis, o primeiro presidente da ABL. Uma fineza contra o machismo da instituição.

Ainda antes dos 30 anos, Júlia publicou em folhetim uma narrativa de ficção autobiográfica perturbadora, Memórias de Martha (1888/1899), pelo que ela tem de desilusão. Dez anos depois, essa narrativa foi publicada em livro. Acredito que Júlia tenha gostado do texto, daí o retrabalho literário e a insistência em publicar. Depois dessa experiência, a escritora publicou o romance A família Medeiros (1891), uma narrativa em que Júlia me passou a perna… Torci pelo herói errado. Segundo o juízo do professor Marcelo Medeiros da Silva (UEPB), Júlia teria alcançado a plena realização literária com esse romance, mas também com A viúva Simões (1897), A falência (1901) e A intrusa (1908). Então, se atentarmos para o intervalo compreendido por esses romances, para o tamanho e diversidade de sua obra, para sua participação na vida pública, em conferências e em jornais, que vai além do intervalo, não resta dúvida de que Júlia foi uma escritora muito consistente e que seu nome compareceu de maneira contínua na cena literária da época por muitos anos.

Júlia escreveu em um momento de grandes e exitosas experiências literárias — Machado de Assis, Marcel Proust, Virginia Woolf, Thomas Mann, a Semana… — e edificou o seu lugar. Ela gostou do fantástico, alguns contos de Ânsia eterna devem ter feito os mais medrosos manterem a vela ou lamparina do quarto acesa (ou ainda a luz elétrica nos apartamentos do novo milênio…), “entrou” pelas fazendas da aristocracia escravocrata, passeou pelas ruas do Rio, escreveu sobre recasamento, sobre trabalho, sobre pobreza, luxo, miséria, sobre economia; deu voz à diversidade social. Que lugar é esse que Júlia edificou e que entrevejo em sua obra tão diversa? Júlia não liga muito para monólogo interior, embora conceba páginas de discurso indireto livre muito interessantes; Júlia não fica sondando o interior dos personagens e esquecendo da vida, mas sabia fazer isso e provou cedo, em Memórias de Martha; Júlia não quis inventar um idioma, parece muito à vontade com a língua em que escreveu e falou com todo mundo, mas não fez o seu todo mundo literário falar do mesmo jeito no texto; Júlia sabia muito bem o que é prosa poética e algumas páginas suas são daquele tipo de singeleza que um escritor sua muito a camisa para alcançar. Não sei se Júlia leu o poema Carnaval de Bandeira, mas em suas páginas seus personagens até seguiram o bloco.

Equilíbrio de gêneros
A obra de Júlia demonstra equilíbrio entre o protagonismo feminino e o masculino. Mas alguém pode discordar, quando voltar os olhos a esses quatro romances da “plena realização literária”. Afinal, em três deles, o protagonista parece ser um homem. Eu empreguei “parece”. Em A família Medeiros, o romance se inicia e termina com o movimento de um personagem: Otávio Medeiros, filho da aristocracia paulista, rural e escravocrata. O romance teria sido escrito entre 1886 e 1889, acolhe na narrativa a antessala da abolição, os primeiros momentos pós Lei Áurea (1888) e o início da República (1889). Júlia decide fazer o quê? Nega a Otávio, que não tem força para realizar as transformações necessárias no meio em que foi engendrado, distraído pelos amores da prima, a solução fácil da conciliação dos contrários… Foi aí que ela me pegou! Júlia esvazia a fazenda Santa Genoveva, porque acredita nas escolhas realizadas pela fazenda Mangueiral: do trabalho livre, de Eva e Paulo.

Na Falência, é a falência de Francisco Teodoro decerto que acorda a família no meio da noite e mancha de sangue o tapete do gabinete, mas é esse acontecimento também que opera mudanças familiares significativas: acorda Camila, espanta o insosso Dr. Gervásio e revela publicamente uma artista ao final, Ruth. Falando em insosso, eis uma coisa que Júlia sabe conceber: uns homens insossos. O que dizer de Luciano, de A viúva Simões? E pensar que essa criatura superficial causou tantos danos?! Mas até nisso Júlia é excelente. Resta A intrusa. Sim, o protagonista é Argemiro, porém… olhe o título. Ele nem está lá. Por quê? Porque Júlia criou uma mulher tão sutil que sua presença arrasta devagar o protagonista e os leitores. Entrego: A intrusa é meu romance favorito de Júlia e eu, que conheci Mário de Sá-Carneiro — mais um… — antes dela, fiquei me lembrando de A confissão de Lúcio. Só um detalhe: o romance de Mário de Sá-Carneiro é posterior ao romance de Júlia.

Júlia gosta de política e de economia. Seus personagens debatem ideias do contexto. Já se disse que o romance A família Medeiros perdeu o timing da Abolição e da República, que seu tema teria ficado desinteressante. Eu não concordo. O romance foi escrito no calor dos eventos e ele contrapõe escolhas e esmiúça propostas que Júlia escolheu apresentar de forma ficcional. Como Júlia nega a Otávio o sonho do personagem? Ela afirma que a “primeira mulher” de um Brasil novo não poderia desposar o velho Brasil. É o que está dito lá. Interessantíssima a forma como a ficção propõe uma “solução” para o país, um jogo de escalas. Dez anos depois, em A falência, Júlia não oferece uma saída redentora à especulação econômica. Ela “abandona” Francisco Teodoro e salva as mulheres. É uma salvação à Júlia, ou seja, que passa por renúncias e pelo elogio ao trabalho coletivo realizado pelas mulheres. Júlia já havia testado isso; o elogio ao estudo e ao trabalho estava presente em Memórias de Marta. O trabalho é a escolha consciente de Martha. O casamento brando e infeliz chega depois da aprovação no concurso. Sem ilusões românticas, Martha é uma mulher independente.

Inventiva
Júlia gosta mesmo de criar situações e ver até onde seus personagens vão. Ela é inventiva. Ernestina é a viúva Simões. Um dia, depois de muitos anos, o antigo namorado adentra a sua porta e o coração enlutado ganha ânimo. Ela está carente e a vida ainda palpita em seu interior. Eis a situação. Os leitores e as leitoras estão vendo que Luciano Dias não vale nada. No passado, partiu sem mais nem menos e, recém-chegado ao Brasil, vai em busca do rosto de quem fugira. Uma distração. Só que a coisa não sai como ele quer. Ernestina parece mosca morta, mas não é. Júlia não faz a gente sofrer por causa desses dois, mas por causa de Sara. Nível Elena Ferrante.

A situação criada em A intrusa responde pelo nome de Alice Galba. Quando o foco de luz está na personagem, tudo é muito suave; sua beleza passa despercebida, ninguém vira o rosto em direção a ela quando passa; mas quando ela se afasta e a narrativa compreende o efeito da sua presença, aí o resultado é radical! É radical sobre Glória, a filha de Argemiro, sobre o Padre Assunção, sobre a sogra de Argemiro e sobre o protagonista. Preso por uma promessa egoísta, Argemiro contrata Alice sem olhar-lhe o rosto, o que lhe interessa é o currículo. O currículo é excelente. Júlia é ótima! Argemiro não quer se comprometer trazendo uma moça solteira à sua casa, fica na dele, está interessado em oferecer um lar organizado para a filha. Precisa de uma boa governanta e de uma boa preceptora, se puder ser uma mulher só para ambas as coisas (e só essas mesmo, longe do leito), ele está disposto a remunerá-la bem. Dos homens de Júlia, talvez seja esse o mais interessante, o mais inteligente. A atuação de Alice vai mobilizando os sentidos: o perfume, o toque de um livro, a transformação do jardim… Mas Júlia não reescreve Encarnação de José de Alencar, ela vai deixar isso para Carolina Nabuco.

Talvez Júlia tivesse consciência de que seus leitores e leitoras poderiam reconhecer aqui e ali um aroma do Romantismo. Falsa pista. Bem cedinho na literatura, Júlia havia destruído todas as (nossas) ilusões em Memórias de Marta e, já célebre, no conjunto de A isca, com a novela intitulada O laço azul: novela romântica, volta à carga. Nesta, há um rapaz apaixonado, há famílias honradas que se conhecem e que programam o casamento, há casamento, há um neném que nasce, mas Júlia achou um jeito de azedar tudo isso, quando propôs duas gêmeas idênticas para despertar a paixão no (meio parvo) Raul. Quem é o verdadeiro amor desse moço que não sabe a quem ama? Ele está sempre em dúvida. O que Júlia faz? Mata uma das gêmeas! Júlia não é romântica, mas também não é iconoclasta. O resultado não é cópia de nada, mas obra sua.

Muita ação
Grande parte desses grandes escritores brasileiros de entre o Romantismo e o Realismo é fascinada pela juventude das mulheres. Só a pele intocada pelo tempo tem charme nas suas páginas. Ah, as fantasias desses escritores homens. Atravessando o Atlântico, só me ocorre José Mathias de Eça de Queirós para salvá-los, ele permanece amando no tempo, fiel a uma mulher que, por sua vez, vai amadurecendo. A obra desses homens encantados secreta ou abertamente pela Moreninha tem horror às rugas dos sorrisos e às curvas das mulheres que já pariram. Pois bem, Júlia traz para suas páginas o charme de uma Ernestina e de uma Camila — Luciano tem medo de Ernestina desde novo —, ao mesmo tempo em que não refuta a juventude de Eva ou de Alice. Aliás, a escritora lembra que a juventude pode não ser fresca, mas amargurada, com Martha. Já disse que Júlia não liga para grandes explorações da psique. Diante de situações-problema, suas personagens femininas agem. O desabafo de Isabel diante de Antônio, em A isca, novela que dá nome à coletânea, é de arrepiar. E quando ele levanta a mão, ela desafia: “— Bate. (…) sem se mover do lugar em que estava”. Ele se atreve? Claro que não. E não há um processo “evolutivo”, Júlia gosta de variar: jovens ou maduras, a escritora não tem preferência, ela quer mesmo ação.

Júlia gosta de propor situações-problema, mas que não esqueçamos que ela as propõe primeiro para si mesma, como artista. É só de maneira metafórica que afirmei que os personagens agem depois que ela os reúne em uma dada situação. Ora, tudo nos romances, nas novelas e nos contos é engendrado pela sua inventividade. Então, o desafio é proposto por ela e ela precisa conduzir seus personagens imperfeitos, imperfeitas, insossos, sedutores, sedutoras, frágeis, corajosas às soluções possíveis, sem ilusões. Nisso, Júlia nos desafia. O destino trágico de Sara, a desesperança de Martha, a morte de Lucila são golpes duros no coração dos leitores — não vou enganar ninguém. Então, Júlia não tem medo de trazer para a sua ficção esses insucessos, ao mesmo tempo em que repica os sinos em A intrusa. Nesse caso, o mais engraçado é que Júlia até nos dá um casamento, mas coloca a vassoura atrás da porta e encerra a festa rapidinho. O romance acaba e a gente diz: “Ué, mas?…”.

A aparente rispidez do final de A intrusa não pode nos iludir sobre o potencial de poesia na prosa de Júlia e sua coletânea A árvore (1916) dá sobejos exemplos disso. O miniconto A amendoeira é uma dessas coisas que eu gostaria de ter escrito e eu já escrevi um conto sobre uma amendoeira! Júlia Lopes de Almeida é uma escritora muito grande para ficar em um escaninho da literatura brasileira. Que as celebrações da Semana sejam uma boa isca para nos aproximar da diversidade literária que nos constitui. Feliz aniversário, intrusa!

Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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