Uma fábula de diversos Brasis

“Utopia selvagem”, de Darcy Ribeiro, é uma incursão aos muitos países que formam a imensidão brasileira
Darcy Ribeiro: Olhar atento aos muitos Brasis que nos rodeiam e não se entendem.
01/08/2007

Em época de Jogos Pan-americanos, nada mais normal que colocarmos os diversos Brasis em contraste e comparação. Qual é o Brasil mais verdadeiro, aquele que conquistou uma penca de medalhas, aquele que gastou muito a mais do que estava previsto para construir as instalações dos jogos ou aquele que ficou supervigiado para não perturbar os estrangeiros que por aqui passaram? É de longa data que todos sabemos que há diversos Brasis e que eles convivem de maneira relativamente pacífica entre si. Claro, nos últimos anos, temos a impressão de que esta paz, este armistício, está meio que acabando. Vamos ver aonde vai dar.

Em 1981, Darcy Ribeiro, um dos maiores intelectuais já nascidos por essas plagas, cometeu uma pequena alegoria de como esses diversos Brasis podiam ser vistos ao longo da história, utilizando muita paródia, absurdo, humor e nonsense para poder escrever uma fábula que, de tão distante da realidade, pudesse refleti-la de alguma maneira. Utopia selvagem, saudades da inocência perdida é um relato que pode parecer estranho à primeira impressão, mas que, após algumas páginas, parece um retrato bastante verossímil da realidade.

O enredo é quase que um delírio insano. Gasparino Carvalhall, tenente do Exército Brasileiro na Guerra Guiana, negro e gaúcho, está à procura do Eldorado em alguma região do Norte do Brasil, na região da fronteira norte. Um dia, sem que ele saiba direito como, acaba prisioneiro da tribo das amazonas, as lendárias guerreiras que deram o nome à grande floresta nacional. Não se sabe qual é a razão da guerra, e Carvalhall também não quer discutir, fiel que é à hierarquia militar.

Junto às amazonas, Carvalhall recebe o apelido de Pitum. Logo nos primeiros dias, ele descobre por que é o único homem dentre uma tribo enorme de mulheres. Ele foi capturado para ser o reprodutor oficial da tribo. A ele cabe o dever de toda noite ter relações sexuais com uma mulher diferente da tribo. Logo, descobre que estas mulheres podiam ter apenas uma única relação sexual em sua vida, e que por isso possuíam um método peculiar de transar. De início, desconfortável por ser considerado um mero pênis e por não poder ter nenhuma função no ato, Pitum vai aos poucos se acostumando com seu papel, e relaxa.

As amazonas não conversam com Pitum, nada revelam a ele sobre seu modo de vida, suas maneiras, como guerreiam, o que fazem de seus filhos homens, enfim, não contam nada a ele. Mas perguntam tudo o que podem a Pitum. Este, entusiasmado por ter uma platéia de ouvintes, fala tudo o que sabe e o que não sabe. E assim, dá a estas mulheres a sua versão bem peculiar do Brasil. Darcy Ribeiro, em sua viagem, consegue incluir no mesmo texto diversos Brasis separados no tempo, ao misturar uma guerra que tem contornos de confrontos dos tempos do Brasil Colônia ou Brasil Império com aviões, armas modernas, bombas e outras invenções tecnológicas.

Esgotado o seu papel como reprodutor, Pitum é abandonado pelas amazonas e, em uma armadilha, acaba sendo trocado por outros dois indígenas para que um destes seja o novo reprodutor. Nesta aldeia, Pitum encontra duas freiras missionárias, uma jovem católica e outra quase idosa protestante, que vivem junto aos índios com o objetivo de catequizá-los. Estes índios são canibais, mas um tipo diferente de canibais. Nesta cultura, é normal para eles comer os restos mortais de seus antepassados como maneira de fazê-los viver para sempre. Outro detalhe importante é o consumo de uma erva alucinógena — o caapi (seria o chá de Santo Daime?), prática comum entre todos os membros da tribo que faz com que eles comunguem com a selva.

Novo Brasil
Nesta nova etapa de seu exílio do Brasil que conhecia, Pitum vira Orelhão e descobre um novo País, desta vez o das religiosas. Este Brasil é completamente diferente do de Orelhão, ele não está em guerra, a TV Globo já existe e manda no povo, a medicina é avançadíssima e com apenas 12 remédios se curam todas as doenças conhecidas, há aviões. Enfim, novamente há um outro Brasil que se mistura no tempo para dar uma outra versão do que conhecemos.

Há um capítulo meio chato, em que Darcy Ribeiro explica a estrutura de poder de um país não conhecido da calota de baixo do planeta, mas que bem poderia ser o Brasil. Nessa estrutura ideal, teria sido alcançada a Utopia Burguesa Multinacional. Darcy tenta fazer uma paródia total ao sistema de governo do Brasil daquela época (do Brasil e de tantas outras repúblicas das bananas), mas o tiro acaba saindo pela culatra devido ao tédio que ele imprime a sua descrição. Talvez seja o ranço do teórico em ação, em sua necessidade de explicar tudo em seus mínimos detalhes.

No entanto, de modo geral, Utopia selvagem é uma grande alegoria sobre os vários Brasis que sempre existiram e pelo jeito demorarão a se unir. Darcy Ribeiro usa seu talento em decifrar a realidade para desconstruí-la em uma fábula meio sem pé nem cabeça, mas que faz todo o sentido quando confrontada com a realidade. Há uma mistura de estilos narrativos feita bem ao gosto de um samba do crioulo doido, mas que acaba fazendo um conjunto harmônico que evolui de maneira agradável ao leitor até o seu fim, um êxtase apoteótico também inusitado, talvez fruto do caapi (e não seria demais insinuar que o autor também experimenta da erva para poder concluir seu trabalho, dada a singeleza do final), ainda que relativamente exagerado, mesmo se levarmos em consideração todos os excessos do resto do texto.

A farsa de Utopia selvagem (farsa por se tratar de uma história que não é verdade, mas que se assemelha em muito ao que conhecemos) serve também como um estímulo para repensarmos a nossa história e em como ela nos foi contada ao longo do tempo. Talvez seja impossível descobrir a verdadeira história de nosso País, pois sempre haverá versões contraditórias para tudo o que existiu. Mas Pudéramos ser mais críticos sobre tudo o que nos cerca e se tomássemos atitudes que pudessem mudar o que não gostamos, quem sabe não teríamos tantos Brasis diferentes e afastados um dos outros, em contato apenas em situações de conflito.

Utopia selvagem
Darcy Ribeiro
Leitura
160 págs.
Darcy Ribeiro
Nasceu em Montes Claros (MG), em 1922. Etnólogo, antropólogo, professor, educador, político, ensaísta e romancista, seus livros alcançaram sucessivas edições em diversos países. Foi ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, em 1963; vice-governador do Rio de Janeiro, em 1982; secretário da Cultura e coordenador do Programa Especial de Educação, e senador da República de 1991 a 1997. Em 1992, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Faleceu em Brasília, em 1997, ano em que foi criada no Rio de Janeiro a Fundação Darcy Ribeiro.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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