A ideia de dilatação do mundo configura como um dos pontos limítrofes entre o imaginário e o real. A partir do processo de reordenamento do que se apresenta tangível para nós, um autor tem a chance de provocar certo tipo de espalhamento da realidade. Tal ação da escritura resulta em uma órbita inédita; uma nova conjunção diante das narrativas estabelecidas como regulares, sistemáticas.
No ensaio De cortiço a Cortiço, Antonio Candido afirma que, para alcançarmos as razões formadoras do “novo universo” proposto por determinada obra, devemos procurar indicações da “(…) fórmula segundo a qual a realidade do mundo ou do espírito foi reordenada, transformada, desfigurada ou até posta de lado, para dar nascimento a outro mundo”. Posto isso, surge a questão: como estruturamos o nosso elo com o real após presenciarmos a origem de outro cosmo?
Em uma entrevista concedida à Paris Review, Mark Strand — nome imprescindível para poética moderna norte-americana — declarou sua concepção da poesia como espaço mágico e espantoso: “Quando leio poesia, eu quero me sentir, de repente, maior; eu quero experimentar um tipo de deslumbramento”, disse ao ator Wallace Shaw. De acordo com Strand, quando voltamos para o cotidiano, depois de experimentarmos as estranhezas do mundo “recombinado e reordenado pelas profundezas da alma de um poeta”, estamos inseridos numa rotina fora de contexto. “(o poema) tem a voz do poeta inscrita sobre todo ele, por um lado, mas parece também de repente mais vivo”, arremata.
Na pista de um alargamento do real combinado à perspectiva de fundação literária, presente tanto na análise de Candido, quanto na fala de Strand, está a obra de Charles Simic. O poeta sérvio, que chegou aos Estados Unidos durante a adolescência (uma chegada pós-guerra, com memórias anestesiadas pela violência e pela fome), tornou-se, assim como Mark Strand, símbolo da poesia realizada nas terras de Whitman a partir dos anos 1970. Ainda pouco conhecido no Brasil e com traduções alheias ao circuito oficial (disponíveis em alguns sites e blogs voltados para poesia), Simic retorna, este ano, às prateleiras internacionais com duas belas compilações.
Formado pela reunião de 70 poemas, The Lunatic é um arcabouço preciso da proposta estética e argumentativa do poeta, desenvolvida ao longo de quase 50 anos. Divido em quatro seções, o livro apresenta a combinação do Simic mordaz e, ao mesmo tempo, melancólico, uma figura que se debruça entre as ruas bombardeadas de Belgrado e o inverno feroz de Chicago ou Nova York. Já no The life of images, conjunto de ensaios publicados anteriormente em diversas revistas, o leitor esbarra na possibilidade de entabular um contato apurado com a prosa corriqueira e sagaz empreendida pelo sérvio-norte-americano.
Ao lançarmos um breve olhar crítico na direção dessas publicações, podemos atestar, de início, a importância de ambas como mapas essenciais para a ideia cartográfica que gira em torno da linguagem trabalhada por Simic. Em seus escritos, predomina a recordação como ponto de partida; um marco zero da reminiscência como catalisador de qualquer tentativa de registro literário. O poeta parece repetir, com afinco, nas entrelinhas de seus poemas e ensaios: os argumentos que construo serão extraídos de uma memorabilia na qual uma extravagância inconveniente persiste em perturbar — ignorá-la, não é uma saída.
Em Why I still write poetry — crônica veiculada no The New York Review of Books em 2012 — Simic utiliza vários fragmentos do passado (recitais promovidos por sua escola parisiense, conversas com sua mãe, etc.) como única justificativa possível para continuar produzindo poesia. Os versos são um meio de construir a sua máquina do tempo particular; um artefato que volta aos períodos antigos com o intuito de encontrar sempre alguma utilidade futura para as lembranças.
Doravante esse processo de rememoração, começa a busca por certo tipo de consciência filosófica, outra característica recorrente em sua obra. Em Reading philosophy at night, um dos textos mais significativos do The life of images, Simic descreve a primeira vez em que passou pela estranha experiência de estar “fora de seu corpo”, assistindo de longe a seu próprio vulto durante determinado momento do dia. O poeta tinha vinte anos e estava num trem lotado, em Chicago.
Nos próximos parágrafos, ele relembra que, enquanto as bombas alemãs caíam em Belgrado, seu contorno infantil encarava algumas rochas dispostas no esconderijo coletivo improvisado. Simic, então, questiona-se: “Os seixos permaneceram na alteridade, ficaram para sempre em minha memória. Pode a linguagem fazer justiça a tais momentos de larga consciência?”. Essa questão, talvez, é a bússola de boa parte dos discursos poéticos e prosaicos que investigaremos a seguir.
Explosões entre filosofia e literatura
Em Da poesia à prosa, o crítico italiano Alfonso Berardinelli recapitula a teoria eliotiana do correlativo objetivo como uma introdução para explanar o esquema sugerido por Hugo Friedrich no clássico Estrutura da lírica moderna. Sobre o ponto de vista de T. S. Eliot, Berardinelli grafa: “O pensamento, a emoção, o impulso imaginativo ou psíquico do autor necessitam, segundo Eliot, projetar-se numa forma já constituída, recorrendo a um suporte externo, cultural, realista e comunicativo, que liberte a individualidade criativa de si mesma, de sua inefabilidade”.
Friedrich alega que esse tipo de estilo poético moderno citado acima deveria ser reformulado ou, ainda, “superado”. Em seu estudo, o alemão defende que a lírica revelada no Ocidente a partir da segunda metade do século 19 deve bastar a si mesma: “Não necessita mais do mundo, evita qualquer vínculo com a realidade. (…). Fecha-se numa dimensão absolutamente autônoma”, explica com minúcia o crítico italiano. Neste ponto, ao confrontá-lo com essas premissas, observamos um desacordo por parte de Simic. De antemão, sabemos que o sérvio não se adequa a nenhuma das duas ideias; apesar de aproximar-se um pouco da projeção objetiva de que fala Eliot.
Mas é curioso como se, em seus versos, manifesta-se um pequeno delineamento do real, na prosa, quando Simic pondera sobre os pormenores da elaboração poética, demonstra certo deslumbramento com o fantástico. O sutil toque na realidade pode ser observado, por exemplo, na primeira estrofe de The stray, na qual Simic fala sobre suas andanças pela costa leste — “One day, chasing my tail here and there,/ I stopped to catch my breath/ On some corner in New York,/ While people hurried past me,/ All determined to get somewhere,/ Save a few adrift like lost children”. Em contrapartida, no ensaio intitulado The little Venus of the eskimos, o poeta resgata um lampejo da lírica de Friedrich ao sustentar que poetas acreditam em “golpes de sorte” e “poemas são escritos sozinhos”.
O poeta parece repetir, com afinco, nas entrelinhas de seus poemas e ensaios: os argumentos que construo serão extraídos de uma memorabilia na qual uma extravagância inconveniente persiste em perturbar — ignorá-la, não é uma saída.
Ora, se a poesia irrompe, quase de forma sobrenatural, na cabeça de alguém, de que maneira poderíamos rastrear qualquer relação entre uma poética e o concreto, ou entre a lírica e os elementos externos a ela? O sérvio nos dá a impressão de circunvagar entre essas duas polaridades; por vezes perdendo-se inteiramente na feitura metafísica de um poema, por vezes aludindo a acontecimentos e imagens concretas como prova de seu fazer literário.
No que diz respeito às questões filosóficas e existenciais, a primeira seção do The Lunatic traz alguns poemas notáveis. Entre eles, o mais simbólico é About myself (Sobre mim) — incluído numa seleção traduzida para esta edição do Rascunho [ver páginas 42 e 43]. “Eu sou o rei, sem coroa, dos insones/ Que ainda luta contra seus fantasmas com uma espada,/ Um estudante com tetos e portas fechadas,/ Fazendo apostas de que dois mais dois não é sempre quatro”, formula Simic, mais uma vez, partindo de um imaginário que repousa na hipótese memorial.
Ato contínuo, regressamos para Reading philosophy at night. Como epígrafe do ensaio, o poeta escolheu a máxima nietzschiana que contrapõe noite x dia, escuro x claro, com o objetivo de tencionar as circunstâncias que envolvem a criatividade. Durante o texto, para além das erudições sobre as leituras noturnas de Kant e Hegel, Simic busca compreender a sua relação com a filosofia e, também, com um futuro processo criativo. Quando posto em triplo paralelo: ensaio, fragmento nietzschiano e poema, entendemos que esse último repercute como a imagem fantástica do Simic jovem, um leitor noturno assíduo, debatendo-se, nas madrugadas frias e vigilantes, entre anseios e divagações.
Ao cotejarmos os dois discursos a partir desses títulos, percebemos que o poético funciona aqui como tentativa difusa de reproduzir uma memória subvertida pela ficção. A poesia é para Simic, o campo do embate entre o que foi e o que poderia ter sido; entre o desejo e a aproximação dele com a realidade. No texto prosaico, o sérvio esmiúça seu exercício recordativo e deixa claro: esse é o principal recurso de minha narrativa; rememoro para poder contar/ conto para poder lembrar.
Na obra poética, a resolução para a pergunta “Pode a linguagem fazer justiça a tais momentos de larga consciência?” é encontrada com frequência. Devido ao tom melancólico, atrelado às ironias e pontuações agudas, Simic entrega ao leitor uma linguagem clarividente, capaz de criar sequências imagéticas que ultrapassam a noção estética. O poeta consegue transpor o seu mundo para o nosso com um vigor muito próprio, difícil de ser apreendido por outros.
Já na prosa, a resposta para o choque entre linguística e consciência é caçada com nuances de aventura impossível. Simic manifesta um esforço que não chega a ser irritante, porém, talvez, descabido. A leitura de seus ensaios possui um ritmo seguro e harmônico, que prende os leitores mais desatentos. O empenho em rastrear, através de palavras, certa lucidez suprema pode ressoar como artifício supérfluo se considerarmos o conjunto completo de The life of images. Essa insistência é posta de lado em alguns textos, como no aprazível Food and happiness, ensaio no qual o poeta fala sobre como foi construído seu afeto pela comida.
Quanto à formação de personagens, testemunhamos em seus poemas a presença de personalidades com qualquer coisa de sombrio, misterioso e inusitado, como uma alma que costuma tocar acordeão no cemitério ou padres e pedreiros provindos de um vilarejo desconhecido. Os indivíduos de Simic dividem-se entre representações que aludem ao bizarro e ao vestígio; sujeitos pouco nítidos, sempre borrados pelo movimento ou por permanecerem na penumbra.
No momento em que ajustamos o foco para a sua escrita ensaística, notamos que tais sujeitos continuam ali. Apesar da sempre forte relação familiar que vem à tona — Simic não esconde o carinho pelo pai, figura que parece conduzir boa parte de seus pressupostos —, esses personagens nebulosos, aleatórios surgem com frequência e misturam-se ao núcleo doméstico. Aquela tia que cozinha um prato típico da sua região natal parece, na verdade, proveniente de um dos seus poemas. Mais uma vez, o poeta equilibra-se em meio ao espalhamento da realidade previsto por Candido.
Na estrutura literária de Simic, existe um instante que se relaciona com a ideia desenvolvida por Mark Strand em Something in the air (poema de 1964, contido no livro Sleeping with one eye open — primeira publicação de sua carreira). Escreve o canadense: “by wich is not meant/ what you have been reading/ in the papers, or the rumors/ you have been spreading// nor even what you hate to mention: (…)// Something is happening/ that you can’t figure out./ Things have been put in motion / Something is in the air.” Simic traz consigo essa anunciação de alguma coisa na iminência de ser descoberta; um senso não exatamente de nascimento, mas de algo que se desloca para uma bonita destruição. Um projeto horrível e, ao mesmo tempo, maravilhoso; Deus e o Diabo juntos na criação de outro cosmos: lugar no qual é possível um diálogo, entre ambos, durante um pôr-do-sol na ponte do Brooklyn.