Um livreiro de Florença

"Vespasiano da Bisticci" foi o mais respeitado livreiro do Quattrocento, não apenas em Florença ou na Itália, mas em toda a Europa
Ilustração: Eduardo Souza
01/09/2022

“Hoje em dia, todas as ideias mais estúpidas podem ser, num instante, reproduzidas aos milhares e espalhadas pelo mundo.” A frase, que se encaixa perfeitamente em nossos dias, é de 1471, e foi proferida pelo poeta florentino Angelo Poliziano. Ele se referia à edição impressa de livros, com uma opinião bem pouco otimista sobre a então recente invenção de Gutenberg. Na opinião de Poliziano (e de muitos outros), a impressão em grandes volumes eliminava o cuidado editorial na produção dos livros manuscritos. Que era o ofício de Vespasiano da Bisticci (1421-1498), o protagonista do livro do historiador canadense Ross King, The bookseller of Florence – The story of the manuscripts that illuminated the RenaissanceO livreiro de Florença – A história dos manuscritos que iluminaram a Renascença, em tradução livre – 2021). Às vezes os novos problemas, vê-se, não são assim tão novos.

Desde que o tema foi inaugurado, em 1860, pelo historiador suíço Jacob Burckhardt, com o livro A cultura do Renascimento na Itália, os anos decisivos do Quattrocento nos deram uma infinidade de livros. Mudam-se o enfoque e os protagonistas (algum Medici, ou Machiavel, ou Leonardo da Vinci…), mas a conclusão principal será sempre a mesma: foi naquele momento, naquela região, com aquelas pessoas, que o mundo moderno, com suas qualidades e também seus defeitos, começou a nascer.

Florença, em particular, viveu um verdadeiro frenesi, liderado por intelectuais e incentivado por políticos esclarecidos (como Cosimo de Medici) e papas (como Nicolau V), de busca, tradução e divulgação de textos clássicos, muitos deles dados como perdidos desde o fim do Império Romano. Foi esse movimento que permitiu, por exemplo, que a maior parte da obra de Platão, alimentando brocas em mosteiros remotos, chegasse até nós. Em A virada (2011), Stephen Greenblatt contou a história de como o pensador florentino Poggio Bracciolini descobriu, na Alemanha, a única cópia existente de Da natureza das coisas, do poeta e filósofo romano Lucrécio (99-55 a.C.), o que teria sido decisivo, segundo Greenblatt, para o surgimento do racionalismo moderno (daí o título do livro).

E agora é Ross King quem retorna à Florença daqueles anos. Seu grande mérito não foi ter desencavado um personagem obscuro: começando pelo pioneiro Burkchardt, Vespasiano é mencionado em praticamente todos os livros que falam daquela cidade naquela época. Mas, em geral, Vespasiano não passa de um coadjuvante, mais lembrado pelos registros que deixou sobre seus contemporâneos do que pelo que foi ou fez. O livro de King tampouco apresenta fatos novos ou documentos inéditos. Mas, aqui, Vespasiano é o protagonista, e a maneira como a história do período é contada, a partir da vida do livreiro, é deliciosa.

No epicentro cultural
Vespasiano nasceu numa família respeitada, mas pobre. Como sua família tinha contatos, conseguiram encaixá-lo, ainda criança, como aprendiz em uma conhecida casa editorial de Florença, o que o colocaria no epicentro cultural da cidade. O lugar onde trabalhava, abrindo uma tradição seguida por incontáveis livrarias pelos séculos adiante, muito mais do que apenas um espaço onde se vendiam livros, era um ponto de encontro da elite intelectual, onde se debatiam tanto temas corriqueiros quanto filosóficos. O Poggio Bracciolini (do livro A virada), assim como o filósofo Pico della Mirandola e pelo menos dois futuros papas, foram frequentadores habituais. Ali, Vespasiano poderia ter sido apenas mais um funcionário que o tempo trataria de deixar anônimo, mas seu talento muito acima da média fez a diferença, e ele logo seria visto, por aquele grupo, primeiro como mascote, depois como um igual (que se tornaria sócio da livraria). Além disso, o rapaz excedia em sua capacidade como produtor de livros, caindo nas graças de gente como Cosimo de Medici e outros poderosos, que recorriam diretamente a ele para obter livros com o padrão de qualidade de que não abriam mão.

Os anos em que Vespasiano passou de aprendiz a livreiro foram o ápice da produção editorial nos moldes que se fazia desde a Antiguidade: cada livro era reproduzido manualmente por um copista. Edições mais caras eram editadas em pergaminho (páginas de couro de vitela ou carneiro), com decorações desenhadas nas margens e capas cravejadas de pedras preciosas, enquanto as “populares” eram de papel, com economia de adornos. Os bons copistas, mais caros, garantiam textos mais legíveis e fieis ao original. Quase toda a produção era por demanda. O cliente procurava o editor, solicitava um título qualquer, escolhia o acabamento e, então, montava-se a equipe e, em algumas semanas, ou meses, o livro era entregue.

Vespasiano foi o mais respeitado livreiro de seu tempo, não apenas em Florença ou na Itália, mas em toda a Europa. Encomendas chegavam de lugares tão distantes quanto Inglaterra, França ou Hungria. Ele contava com uma rede de pelo menos meia centena de copistas. Atendendo a reis, papas e filósofos, Vespasiano era às vezes obrigado a se equilibrar entre a fidelidade a um ou a outro, quando alguns de seus clientes entravam em guerra entre si. Os anos de apogeu do livreiro, porém, já prenunciavam o seu declínio. A recém-inventada prensa, apesar de não poucas reservas iniciais, acabaria por se impor, até mesmo entre muitos dos mais fiéis amigos de Vespasiano. Quando este se aposentou, inconformado com a péssima qualidade dos novos livros, a maior parte de seus clientes já havia migrado para os impressos.

Seria inevitável, como é hoje, que as mudanças tecnológicas causassem impactos nem sempre positivos, e não só para os copistas que perderam o emprego. Num exemplo emblemático, King conta a história de um dos primeiros best-sellers impressos, em 1484, do pensador florentino Marsilio Ficino, no qual se previa que, quando Júpiter e Saturno se alinhassem em Escorpião, surgiria na Itália um profeta, portador de enorme sabedoria e de poderes sobrenaturais. E, de fato, no Domingo de Ramos daquele ano, um profeta, montado em um burrico, entrou em Roma. Ele vestia um manto de seda, calçava botas escarlates e, na cabeça, levava uma coroa de espinhos com uma lua prateada e a inscrição, em latim, com os dizeres “sou o escolhido”. O sucesso foi imediato, multidões o seguiram e ele foi até mesmo recebido pelo papa. Não tardou a descobrir-se, porém, que o “profeta” se chamava Giovanni da Correggio e era um notório golpista de Bolonha. Ele tinha lido o livro de Ficino e incorporou o personagem, algo impensável antes da democratização do conhecimento proporcionada pela disseminação dos livros impressos.

Muito já se escreveu sobre a Florença do Quattrocento. Mas a vida do livreiro Vespasiano, contada por Ross King, nos traz uma perspectiva muito interessante daquele universo (e, por tabela, do nosso). Em tempo: o “profeta” Giovanni acabou preso, torturado e executado, que era como se cancelavam as pessoas naqueles anos.

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

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