Um crime quase perfeito

"O senhor do lado esquerdo" forma um tecido narrativo complexo e rico de possibilidades
Alberto Mussa, autor de “O senhor do lado esquerdo”
01/10/2011

O senhor do lado esquerdo — romance da Casa das Trocas, de Alberto Mussa, inicia-se apresentando uma proposta de tese: “Não é a geografia, não é a arquitetura, não são os heróis…, muito menos a crônica de costumes ou as imagens criadas pela fantasia dos poetas: o que define uma cidade é a história de seus crimes”. Ainda, na introdução do romance, o narrador se apresenta como estudioso e pesquisador da história das cidades e, particularmente, da cidade do Rio de Janeiro. Com o objetivo inicial de participação num Congresso sobre Teoria e Arte da Narrativa Policial, em Londres, levanta um grande número de casos na história do Rio, em diferentes momentos.

Mais adiante, divergências o levam a abandonar o encontro acadêmico e a transformar sua pesquisa numa novela. Ou seja, ao defender sua tese, tem por base apontamentos da História da cidade. Em linhas gerais, está garantida aí a verossimilhança da narrativa. Qualquer estranhamento que o leitor encontrar nos fatos narrados, e espera-se que sejam muitos, não diz respeito diretamente ao narrador, mas sim às narrativas que recolheu de diversas fontes. Segundo ele, essa é uma história baseada em documentação vasta, produto de estudo de um tempo do qual não foi testemunha direta. Reúne discursos, processos jurídicos, notícias jornalísticas, testemunhos de outros viventes da cidade, que se envolveram com os acontecimentos do passado, inclusive toda uma tradição literária dos bons contadores de histórias, como Machado de Assis, Lima Barreto, Joaquim Manuel de Macedo e outros. Estes surgem no texto ou de maneira direta ou implicitamente como referências subliminares em tomadas intertextuais.

Afinal, este narrador também se constitui como um leitor compulsivo. Neste sentido, a Casa das trocas e as experiências científicas do Dr. Zmuda sobre a sexualidade feminina podem nos remeter à Casa Verde, com o psiquiatra pesquisador da mente humana do Alienista, de Machado. Os túneis da antiga casa da marquesa de Santos são tão cobertos de mistério quanto os subterrâneos do Monte Castelo do folhetim jornalístico de Lima Barreto.

Trata-se de uma discussão em torno da experiência urbana, na qual a cidade se oferece à leitura. Portanto, poderíamos nos remeter a Barthes, quando este afirma que “toda cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem”. Quando o narrador dá destaque à história do crime para definir a cidade em questão, ele tenta organizar o discurso dessas histórias vividas e contadas em diferentes situações priorizando o tema. Debruça-se sobre o discurso das histórias dos crimes, que, por seu caráter múltiplo, incorpora muitas linguagem. Dentre tantas histórias, destaca especialmente uma que será o fio condutor do romance, intercalado por outras, que, por vezes, parecem ter vida própria e independente da história principal. Em outras situações, funcionam como fortes exemplos de afirmação dos argumentos levantados. Como, em outras, parecem meras digressões para nos confundir.

Tecido complexo
No mais, com o pacto firmado com o leitor, a rede de intrigas segue num fluxo contínuo e vertiginoso. A primeira especulação que pode suscitar será sobre a tipologia do texto. Será romance policial, histórico, de aventura, uma fragmentação de narrativas mitológicas, realismo fantástico, crônicas de costumes, tradições folclóricas, ensaio acadêmico, tratado científico? A questão remete a uma série de possibilidades aparentemente conflituosas e até excludentes. Pode-se dizer que o livro tem tudo isso. Ou seja, esses aspectos podem ser encontrados em maior ou menor grau. Mas ao mesmo tempo, nenhum deles pode ser considerado nas suas tradicionais linhas de abordagem. A pluralidade de caminhos implica também, além de um hibridismo de formas e fórmulas, a construção de uma rede de fios que se entrecruzam formando um tecido complexo e rico de possibilidades.

A história central começa em 1913, em torno da “legendária” Casa das Trocas, em São Cristóvão, anteriormente residência de ilustres personalidades, como a marquesa de Santos e o barão de Mauá. Na ocasião, a casa funcionava com a fachada de uma clínica médica dirigida pelo Dr. Miroslav Zmuda, médico e pesquisador da sexualidade feminina. Paralelo a isso, como atividade principal, era um suntuoso prostíbulo. Além das atividades comuns a qualquer prostíbulo, servia também de ponto de encontros de casais, trocas de parceiros, orgias coletivas e outros gêneros de atividades eróticas.

Num dos aposentos da casa, o secretário da presidência da República, do governo Hermes da Fonseca, fora assassinado. Logo, um assassinato e, portanto, um corpo morto e um detetive investigador colocado em ação já justificariam uma narrativa policial. Não podemos considerar, entretanto, o relato como um tradicional romance de enigma. As dificuldades de solução se anunciam na apresentação do texto. Além do mais, desde o primeiro capítulo já se conhece o suspeito de assassinato: “As testemunhas foram quase sempre convictas e afirmativas, e apontavam uma única suspeita — a prostituta conhecida como Fortunata”. Evidência de estrangulamento, estudos das digitais e outros detalhes a mais já exibiam provas quase que suficientes de elucidação do crime, não fossem outros elementos que se sobrepõem aos acontecimentos. Não fosse o deslocamento dos eixos da curiosidade sobre o que aconteceu no passado para o foco de um presente narrativo como promessa de surpresas no que está para acontecer.

O investigador Baeta, designado para estudar o crime, não possui o perfil de um detetive tradicional, que se caracteriza pela imparcialidade racional, com o afastamento necessário para garantia de sua imunidade quanto aos efeitos da ação criminosa. Ele é freqüentador da Casa de Trocas. Juntamente com a esposa, teve relação com a suposta assassina, envolve-se com os investigados, o sedutor capoeirista Aniceto, irmão de Fortunata, e Rufino, o feiticeiro e visitador do cemitério, assim como a vida malandra da cidade, suas crenças e rituais. Não é também um romance negro, cuja violência gratuita se justifica por si só e assume o primeiro plano. Contudo, a criativa e rica fabulação permite que como um romance de suspense muitas surpresas sejam oferecidas ao leitor o todo o tempo.

Imaginário histórico e cultural
É um livro com pretensão histórica, já que se baseia em fatos e documentos de registro de épocas passadas, tem o crime como tema e a cidade como espaço privilegiado de construção do imaginário histórico e cultural do povo. Textos contemporâneos como Cidade de Deus, de Paulo Lins, já estabelecem esse recorte sobre “o crime”, partindo de uma pesquisa antropológica. Apesar de ambos possuírem uma dicção contemporânea em recortes ou fragmentos, suas perspectivas são completamente diferentes. Enquanto este último reúne narrativas que foram contadas e vividas no sentido de registro de um presente recente num enfoque realista, o primeiro articula acontecimentos de passados longínquos que não se permitem ler apenas pela lógica racional. Ou seja, encontramos situados num mesmo plano textual cientificidade com magia, tempo histórico cronológico com atemporalidade mítica. Ao tentar costurar casos de diferentes momentos da história do Rio, marcando-os com a concretude de datas e localizações geográficas, intercala-os com supostos mitos da oralidade popular ou do repertório literário. Estes ganham o mesmo tratamento de importância da primeira abordagem, só que quanto ao tempo e origem, situam-se na atemporalidade da lenda, do mito. Basta observar a insistência de algumas frases iniciadas por “Dizem…” ou “Consta que…”, que em última instância podem significar: “Era uma vez… (num tempo fora desse tempo histórico…)”.

O velho feiticeiro Rufino entra na história com o caráter transgressor de trazer o elemento sobrenatural como desagregador da lógica racional que tentaria se impor numa pesquisa científica como a do Dr. Zmuda ou numa investigação policial como a do perito Baeta. Sobre Rufino muitas lendas circulam na cidade: é um homem que nunca mentira, circula em cemitérios, transita nas rodas mais sofisticadas e nas mais malandras, guarda um tesouro que todos cobiçam e é muito poderoso em suas feitiçarias. Por isso tudo, é muito considerado e perseguido.

Fortunata surge no início da história como a suposta assassina e desaparece após o crime. Pouco ou nada se sabe de sua origem e do seu paradeiro. Seu irmão Aniceto, malandro, capoeirista, exerce um excepcional poder de sedução sobre as freqüentadoras da Casa das Trocas e até ameaça relações estáveis como a do perito Baeta e sua esposa, também admiradora e participante das atividades da Casa. Envolve o perito nessa sedução e numa disputa acirrada: poder e virilidade em xeque.

Indagações ao leitor
Estão aí, em linhas gerais, os principais personagens e eixos da intriga. Muitas indagações ficam para o leitor antes mesmo de iniciar o livro: Por que esse título? Que senhor do lado esquerdo da Casa das Trocas é esse? Por que do lado esquerdo, será um gauche na vida, terá a ver com sua localização na casa, terá a ver com sua prática sexual nada ortodoxa?

E por que mataram o Sr. Secretário da Presidência? E qual o porquê das outras mortes? Terão a ver como a do secretário? É mais um caso a se pensar.

”Esta é uma história real… embora pareça ficção”? Se já no subtítulo encontramos indícios para questionar esta afirmativa, não seria o romance da Casa das Trocas exatamente o contrário: esta é uma ficção embora pareça real? Ou o real a que se refere é o real construído na narrativa, de natureza ficcional, baseado apenas em fatos de uma realidade física e social, mas de outra natureza que a literária? Ou ainda, seria esta afirmação pista falsa, para garantir suspense e interesse de um mercado ávido, cheio de fome de realidade? São questões a se refletir e talvez não impliquem numa pronta resposta.

Muitos casos interessantes foram narrados aqui, em alguns o narrador até fez promessas de transformá-los em outros romances. Mas por que o caso da Casa das trocas assumiu a prioridade? O caso é destacado por suas peculiaridades, entre elas, o fato de parecer um “crime perfeito”. “Só que a ‘perfeição’ desse crime não estava na inviabilidade material de se encontrar provas, mas na impossibilidade lógica de se admitir a solução.” A narrativa desses crimes guarda o mesmo mistério da cidade que os abriga: pontos-cegos que se ocultam tanto nos túneis e subterrâneos quanto na claridade do dia em cada esquina. Temos aí uma cidade invisível que pede para ser lida, ao mesmo tempo, que tenta resguardar-se em segredos. Como diria Marco Polo, personagem de Italo Calvino: “As cidades, como os sonhos, são constituídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e em todas as coisas escondam outra coisa”.

O senhor do lado esquerdo
Alberto Mussa
Record
288 págs.
Alberto Mussa
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Escreveu os contos de Elegbara, seguidos dos romances O trono da rainha Jinga, O enigma de Qaf e O movimento pendular. Recriou a mitologia dos antigos tupinambás em Meu destino é ser onça. Sua obra, publicada em dez países e traduzida em sete idiomas, vem sendo estudada em universidades da Europa, dos Estados Unidos e do Mundo Árabe. Ganhou os prêmios Casa de Las Américas, Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, e, por duas vezes, o da APCA.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho