Sétima reunião de contos do sergipano Antonio Carlos Viana, Jeito de matar lagartas por pouco não ficou na gaveta dos inéditos. Exigente, Viana continuava trabalhando no livro, certo de que o material que tinha em mãos ainda não estava pronto para ser publicado. Para enviar o original à sua editora, ele precisou ser convencido pelos seus quatro primeiros leitores, aos quais submete seus escritos tão logo os finaliza. Principalmente por Paulo Henriques Britto — respeitadíssimo poeta, tradutor e crítico literário.
Além do entrave do que se pode chamar de excesso de autocrítica, durante o processo de edição e publicação Viana adoeceu gravemente. Some-se a isso um diagnóstico equivocado e a consequente submissão a desnecessárias sessões de radioterapia. Em entrevista ao também escritor Marcelino Freire (disponível no YouTube com o título Reverbera com o escritor Antonio Carlos Viana), Viana revela ter pensado que não estaria vivo quando seu novo livro fosse publicado. Coincidência ou não, o autor começou a se reabilitar ao mesmo tempo em que a data de lançamento do livro se aproximava.
Semelhanças e diferenças
Jeito de matar lagartas lembra, em alguns aspectos, os livros anteriores do autor — principalmente o premiado Cine privê (melhor livro de contos de 2009, segundo a Associação Paulista de Críticos de Artes). Estão presentes, no novo volume, as descobertas da infância, a morte e a velhice, acompanhadas das tradicionais doses de erotismo e crueldade que permeiam a obra de Viana. Isso não significa dizer que seus livros sejam “mais do mesmo”, longe disso. Mesmo que um conto faça o leitor recordar da atmosfera de uma outra história, não há similaridades entre elas. Cada uma tem suas peculiaridades, seus conflitos. Considerado por muitos como mestre do conto contemporâneo no Brasil, Antonio Carlos Viana consegue fazer grande literatura a partir de situações aparentemente banais, superficiais.
Outra característica marcante do autor é misturar elegância e delicadeza textuais com a linguagem coloquial e a crueldade que assola a maioria de seus personagens — seja ela física ou emocional. É com maestria que Viana transita entre esses extremos, e talvez seja esse o seu maior trunfo.
No conto A Muralha da China, que abre o livro, por exemplo, o autor se vale de um fato aparentemente simplório: a dificuldade que temos para dar más notícias a outrem. Mas, nas mãos de Viana, pequenos acontecimentos são lapidados e se revelam grandes conflitos. O primeiro parágrafo é arrasador:
Nossa mãe tinha avisado: “façam de conta que Lelo ainda está vivo, conversem com dona Irene, fiquem como se ele fosse chegar e que vocês foram lá só pra brincar com ele”.
A solidão é o tema do conto seguinte. Nele, uma mulher se dá conta de que não tem “ninguém no mundo, o telefone não toca e o silêncio toma conta de tudo”. Para sair do isolamento involuntário, dona Irene (não é a mesma da história anterior) tem uma ideia: colocar sua casa à venda, “apenas para ter alguém batendo à sua porta, convidar para entrar, tomar um café e entabular negociações em que ela não estaria nem um pouco interessada”. Nesse caso — e isso não é incomum na obra de Viana —, a crueldade está em como, de uma hora para a outra, toda a promessa de uma vida menos solitária se esvai.
O erotismo se apresenta no conto que dá título ao livro, mas de forma bastante sutil. Um grupo de crianças encontra uma maneira um tanto estranha de passar o tempo durante um verão: matando lagartas. Prestes a entrar na adolescência, as curiosidades e conversas não são mais infantis, inocentes — chegou o tempo das descobertas. Uma delas se refere à tia Marluce, que tem uma “alma de santa”.
É na quarta história, Amarelo Klimt, que Jeito de matar lagartas começa a se diferenciar de Cine privê. A partir daqui, outros contos trarão referências culturais e geográficas não muito comuns nos livros anteriores. Cozinha benguela, por exemplo, se passa em Paris. Ao longo do livro, cidades europeias são citadas aqui e ali e, no último conto, a narradora, uma evangélica humilde, cita o Skype. Talvez um sinal de que o autor esteja mais à vontade para colocar em seus contos um pouco mais de seu lado cosmopolita — nascido em Aracaju, onde reside atualmente, Antonio Carlos Viana morou durante alguns anos na França, onde fez doutorado em literatura comparada, na Universidade de Nice. Ou não: talvez seja apenas a História sendo refletida na obra do autor. Afinal, nos últimos anos, não obstante a atual crise econômica, milhões de pessoas ascenderam à classe média, no Brasil. Não apenas o consumo aumentou, mas também o acesso à cultura e às viagens internacionais. Nesse caso, Viana estaria reverberando em seus contos o momento histórico que vivemos. De uma forma ou de outra, quem ganha com isso são os leitores, que têm acesso ao mesmo Antonio Carlos Viana de sempre — um escritor impecável e sempre original.
Histórias peculiares
São vinte e sete os contos reunidos em Jeito de matar lagartas. Neles, impera a objetividade. Econômico na linguagem — as histórias têm entre três e nove páginas —, Viana não se deixa levar por verborragias que desaguam em lugar algum. Não há excessos no livro. Trabalhador incansável, Viana burila seus contos até que não haja mais nenhuma palavra a ser eliminada. O excesso fica por conta da criatividade.
Em Madame Viola faz escova progressiva, por exemplo, o título por si só é um achado. O nome da madame, outro. E o enredo, também. Casada com Seu Nachbim, “homem forte da economia do estado”, madame Viola “estava assistindo ao jornal quando viu a notícia de um acidente de carro num córrego da zona Sul. Pela cor e modelo do carro, tudo indicava que era o de seu marido. O motorista estava morto. Madame Viola teve uma atitude que jamais pensaria ter num momento como esse: tinha marcado hora no salão para sua escova progressiva e fez de conta que não tinha visto nada”.
Já Dona Katucha apresenta uma senhora “entrada nos sessenta” cuja libido ainda não arrefeceu. Depois de passar a vida inteira desfrutando vários homens, Dona Katucha tenta acalmar seus instintos sexuais com um “agrônomo oito anos mais velho do que ela, barrigudo, feio, triste” por quem se deixa apaixonar. “Estamos muito derrubados”, diz dona Katucha para o agrônomo, depois de não conseguirem fazer sexo. Mas esse é apenas um detalhe da história.
Outro conto peculiar é Salviano, nome que o narrador dá a um porco “diferente” que nasceu no pequeno sítio da família. Aqui, Viana trata mais uma vez de descobertas da infância, mas desta vez ela é dolorosa e pode ser resumida em uma frase que todos nós conhecemos e que é dita pela mãe do narrador: “É a vida”.
E é assim que, transitando entre os extremos da delicadeza e da crueldade, transformando situações do cotidiano em excelente literatura que Antonio Carlos Viana confirma, com este Jeito de matar lagartas, o seu lugar entre os melhores escritores em atividade no Brasil. Lidos este e seus livros anteriores, só resta, agora, esperar pelo próximo.