Um caso de sucesso

Best-seller em sua época, “A marquesa de Santos” apresenta uma trama pequena e estrábica
Paulo Setúbal, autor de “A marquesa de Santos”
03/06/2014

Publicadas imediatamente após a Semana de Arte Moderna ou poucos anos depois, A marquesa de Santos, de Paulo Setúbal, e as obras de Alcides Maya, Alberto Rangel e Gastão Cruls analisadas neste Rascunho confirmam que se a influência do modernismo não foi nula, também não se concretizou com a eficácia e a presteza apontadas por certos estudiosos. O caso de Setúbal é, inclusive, paradigmático: a Semana não passou de um espirro para esse paulista e seu imenso público. O desprezo, aliás, prolongou-se até seu último livro, em 1937, sempre ratificado pelos fiéis leitores, responsáveis por primeiras edições de, no mínimo, 20 mil exemplares.

Mesmo entre os modernistas há casos curiosos, em que festa e discurseira não contribuíram para real mudança estética. Veja-se, por exemplo, Graça Aranha, dado a cenas emotivas e ímpetos propagandísticos no seu afã modernizador, mas que, em 1929, ao publicar A viagem maravilhosa, fala de “crises da miseranda intimidade do lar tenebroso”, “combustão daquele ser desesperado na maior angústia humana”, “tortura nefanda”, “fatalidade inelutável” e “paixão […] maravilhosa e infinita”, apenas para citar exemplos de uma longuíssima lista de expressões que não conseguem ultrapassar o dramalhão e o lugar-comum.

Na verdade, Monteiro Lobato, execrado até hoje pelos tataranetos da Semana, fez mais pela literatura — e não precisou de um gesto de revolta grupal para escrever, por exemplo, O colocador de pronomes, conto perfeito, adoravelmente sarcástico.

Sentidos sentem
No que se refere a Paulo Setúbal, se lembrarmos das variedades do gênero do romance histórico apontadas por Otto Maria Carpeaux no capítulo Romantismos de evasão, em sua História da literatura ocidental, veremos que o romancista não se serviu do passado para “construir uma árvore genealógica de nobreza, para gente nova”, não teve a pretensão de “renovar moralmente e espiritualmente a nacionalidade, lembrando-lhe as grandezas do passado”, e não pretendeu “dar exemplos do passado para incentivar as lutas patrióticas” da sua época. Sabe-se lá por qual motivo, apenas preferiu “o passado ao presente”. E, com absoluta certeza, apreciava “só ou principalmente o aspecto pitoresco do passado”. Foi o que fez em A marquesa de Santos, lançado em 1925: produziu um romance pitoresco, no sentido de divertido; e divertido porque caricato.

Já no primeiro capítulo, Um acontecimento alvoroçante, o texto, espontâneo como uma crônica sobre a vida de socialites, emperra no parágrafo recheado de termos que remetem a um sentido único: a jovem Domitila, apelidada de Titília, “linda doidivanas”, de “adorável estouvamento”, sai pela rua, “trêfega” e “borboleteante”, movida pelo “alvoroço” e pela “entontecedora” felicidade provocada por seu noivado. Em cinco linhas, o autor consegue o feito de se apresentar como mestre da redundância.

Quando o leitor chega ao último parágrafo desse capítulo, aguarda-o nova surpresa: incontinente, o romancista oferece um resumo do que o destino reserva a dois dos principais personagens, matando ali, sem pena, grande parte da história.

Setúbal também aprecia os lugares-comuns: certo personagem é “belo e encantador como um Adônis”; adulta, Domitila não é mais um “botão de rosa prestes a romper”, mas tornou-se “mulher desabrochada, mulher-mulher em pleno verão de sua formosura”. Capítulo a capítulo, o sol é sempre dourado, o céu muito alto e muito azul. As mulheres, farfalhantes de sedas e cintilantes de pedrarias. E Pedro I tem um olhar que sempre “fuzila”.

Nada é tão grave, contudo, quanto a desmesura. Há cenas que se transformam em enormidades. Veja-se, por exemplo, a abertura do capítulo O Grão-Mestre da Maçonaria:

O Grande Oriente, a famosa Loja Maçônica da Corte, desempenhou papel preponderantíssimo nos movimentos políticos do seu tempo. Ali, naquele sobradão da Rua Nova do Conde, fervilharam ideias extremadas de Independência. Ali reboaram discursos exaltados de patriotas. Ali se coligaram, sob juramentos formidáveis, em prol da grande causa nacional, os políticos mais prestigiosos e os homens mais em destaque daquela época. Tão intensa e tão irradiante foi a ação daquela Loja, que dentro de pouco tempo, agremiando prosélitos entre os mais poderosos, centralizou em si o mais terrível foco da propaganda, a máxima potência da campanha.

Os grifos são meus. E servem para salientar a pobreza ribombante do estilo. O exagero permeia tudo — e com tal intensidade, com tamanha insistência, que surge um cenário completamente inverossímil.

Todas as situações, todos os estados de ânimo são narrados da mesma forma, obedecendo à norma de exaltar, dizer com excesso:

[…] Num instante, pelas tribunas imperiais, onde as colchas da Índia, despencando, riam pelo riso quente de suas cores, espalha-se fidalgamente o bando suntuoso. Por toda a parte, onde o olhar pousasse, era um gosto o contemplar as cores estonteantes dos vestidos, a garridice das plumas, os gorgorões pesados das matronas, a riqueza dos grandes leques marchetados. E chispando pelas cabeleiras e incendiando os colos, e fuzilando nas orelhas, e enroscando-se pelos braços, fulgia sobre aquela florida ninhada de camareiras e damas, um dardejar de broches, de borboletas cravejadas, de pingentes, de trepa-moleques, de bichas, de camafeus, de pedraria de toda a cor.

É o estilo antidescritivo. O autor acumula informações vazias e vai sobrepondo-as num movimento crescente. Ao final, temos o cenário extravagante mas flácido, em que nenhum elemento concreto se oferece ao leitor.

A recepção de Pedro I em Salvador não foge à regra:

[…] Foi uma apoteose. Tudo embandeirado! Tudo enguirlandado! Tudo recamado de flores! Eram arcos de triunfo, dísticos laudatórios, coretos a cada canto, colchas de damasco a despencarem das varandas, ondear de flâmulas e de bandeiretas, e, redourando tudo, uma alegria larga, ruidosa, esparramada pela cidade em festa.

Depois de receber as chaves da cidade, dom Pedro,

entrando debaixo do pálio, cujos varais os vereadores carregavam, lá foi cintilando de grã-cruzes, pela ladeira da Preguiça acima, ao som reboante das charangas, sob larga chuva de rosas que tombavam das sacadas.

Paulo Setúbal tinha vocação holywoodiana. É o Cecil B. DeMille da literatura brasileira, sem medida para perceber quando abandona o razoável e resvala para o grotesco.

No capítulo Uma cena do Paço, o conhecido estado depressivo da imperatriz Leopoldina, humilhada por Pedro I, que chega a nomear a própria amante como dama camarista de sua esposa, transforma-se numa tediosa repetição:

Na Quinta da Boa Vista, encostada a uma janela, a Imperatriz D. Leopoldina, cismarenta, derrama vago olhar nostálgico pela melancolia do parque. Ensombra-lhe o semblante uma expressão dorida, um tom esmaecido de saudade que punge. Em que cisma, tão merencória, a desventurada filha de Francisco Leopoldo? Talvez, na paz enevoante daquele crepúsculo, ante seus olhos pisados e olheirentos perpassem, numa sucessão dolorosa, visões de antigas felicidades […].

Bastaria, para conformar o quadro de dor, a pieguice deste trecho. Mas o autor insiste, poucos parágrafos depois: “[…] D. Leopoldina derrama novamente o seu olhar nostálgico pela melancolia do parque. […]”.

E volta a repetir o que está claro desde o início do capítulo:

[…] de toda aquela exuberante e fresca mocidade, restava agora, tristonha e enervada, uma criatura sem cor, enfermiça, ferida de melancolias pungentes. Era um enlanguescer, um desflorir, um murchar-se dia a dia.

Insatisfeito, Setúbal retoma a ladainha: “[…] Sua Majestade derrama o olhar nostálgico pela tediosa melancolia do parque. Tudo tão triste! Tudo tão enervante! Que tarde…”.

O leitor entendeu e se enfastia, mas o autor mostra-se inabalável: “A Imperatriz, com duro punhal cravado no peito, encosta-se de novo ao peitoril da janela”. Mais à frente, Setúbal precisa salientar que “D. Leopoldina, com a sua nevrose, recolhe-se taciturna aos aposentos”; que “encerrou-se no seu gabinete, calada e sofredora”; e que carrega “lancinante desespero”.

Depois da morte da imperatriz, o romancista perde o que lhe resta de bom senso e escreve:

[…] Dolorosa angústia aperta a todos. Erra pelo ar, como se alma daqueles crepes voasse pelo ambiente, uma tristeza funda, uma tristeza espessa, que os sentidos sentem.

Pergunto-me o que seria dos sentidos se não sentissem…

Colunismo social
Os problemas do romance não terminam, entretanto, nas questões estilísticas. A trama é pequena e estrábica. Na corte em que intrigantes e alcoviteiros se digladiam para ganhar os préstimos da cortesã real, os gestos de indignação sequer ultrapassam o murmúrio. Todos são, em maior ou menor grau, coniventes. Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa, e Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, confidente do imperador, possuem poder quase absoluto sobre um Pedro I irresponsável e leviano. E a única personagem relativamente digna, José Bonifácio de Andrada e Silva, merece atenção apenas na medida em que seu comportamento reforça esses estereótipos.

As questões políticas, tratadas com superficialidade e de forma esquemática, transformam-se em disputas nas quais o que importa é fazer a vontade da marquesa e manipular Pedro I, um adolescente que sofre de priapismo. Ou seja, o livro, extremamente simplista, é fraco como romance e como exemplo de erudição histórica.

Na tentativa de disfarçar sua carência de dados, de subsídios, Setúbal cria descrições como esta, típica do pior colunismo social:

[…] A flor mais nobre da aristocracia brasileira resplandece em São Cristóvão. É soltar os olhos pela sala… Que deslumbrante! D. Ilda Mafalda de Sousa Queiroz, a rutilante Marquesa de Valença, vestido de gorgorão negro, cadeia de ouro e mitenes de seda, corre pelos grupos o seu lorgnon de madrepérola. A graciosa Baronesa Nogueira da Gama, a pequenina D. Maria Francisca Calmon, filha da austera Condessa de Itapagipe, enfeita lindamente o Paço com a garridice primaveril dos seus vinte anos. A Viscondessa do Rio Seco, recamada de laçarotes, grande fortuna da época, traz no decote um áspero faiscar de joias dardejantes.

Mediocridade e valor
Otto Maria Carpeaux está certo quando afirma, com ironia, que “não existe relação entre os valores literários e os efeitos sociais: o sucesso não é prova de valor; a mediocridade não exclui consequências benéficas”.

Os bons leitores realmente não devem se surpreender com o fato de as pessoas amarem livros ruins. São eles, os livrinhos medíocres, que financiam os bons livros e garantem o desenvolvimento do mercado editorial. Aliás, se as editoras publicassem apenas o que é ótimo, ainda estaríamos imprimindo livros com os tipos móveis de Gutenberg. No caso de A marquesa de Santos, verdadeiro best-seller, resta-nos, portanto, o consolo de que os lucros da editora devem ter financiado meia dúzia de clássicos.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Plínio Salgado e O estrangeiro.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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