Transe existencial

Resenha do livro "Entre as mulheres", de Rafael Cardoso
Rafael Cardoso, autor de “Entre as mulheres”
01/02/2009

Rafael Cardoso escreveu um livro de contos admirável. As personagens intensas, sedutoras, sempre transbordantes de significação, freqüentemente são apresentadas como flashes humanos. Ou seja, são fotografadas em momentos variáveis, desde os mais banais aos mais trágicos.

O escritor foi ousado e ultrapassou a linha que separa o escrever bem do escrever com arte. Em todos os seus contos a simbologia é fundamental. A partir de um foco, ele desnuda a realidade factual e a imaterial, ora ligando-as, ora rompendo-as, ou ainda, transgredindo-as.

Cada conto é um jogo de cartas pulsantes que nos lê e nos convida a lê-las. As personagens principais são mulheres. Impressiona a capacidade do autor de criar tantas e tão distintas figuras femininas, todas magicamente construídas.

Entre as mulheres é um complexo coeso de textos. O autor conseguiu amarrar várias histórias com a corda paisagística — Rio de Janeiro, cultura carioca. Mas não se trata de carioquismo. As personagens apenas vestem roupas culturais, mas a afetividade que detona vida e morte está além ou aquém dos elementos que materializam o real — é transe existencial.

Um livro que certamente agradará aos jovens tão necessitados de linguagens que traduzam seus olhares, ainda que não seja um livro escrito para esse ou aquele público.

Rafael Cardoso nos apresenta uma linguagem construída com instrumentos de alta precisão, que a torna fluente, versátil, colorida, ironicamente trágica, cotidiana, vigorosa e outros tantos elementos fundamentais que compõem uma obra de arte literária.

Muito engenhosos os títulos dos contos que são compostos pelo nome de uma mulher, o bairro onde vive ou de onde vem e sua idade. Há mulheres para todos os gostos e filosofias. A propósito, o autor, ao escrever os contos, não perde a chance de filosofar, através de suas personagens que, por mais medíocres que pareçam ser, são permeáveis à reflexão e ao aprofundamento mental e psíquico.

Dentre os textos, selecionei alguns para citar, embora considere que, diante da grandeza da arte apresentada, só mesmo um mergulho nas páginas de Entre as mulheres dará ao leitor uma noção da qualidade literária atingida pelo autor.

Em Bel, Jardim Botânico, 41, Uma mulher analisa seus cabelos ao espelho. A problemática vaidade/envelhecimento no mundo atual, repleto de recursos de “rejuvenescimento”, é enfocada a partir daí. Que perspicácia na captação dos detalhes físicos e psicológicos da personagem! As questões do amor na mulher madura, da relação dela com a filha são tratadas com perícia. O narrador invade a intimidade feminina e a expõe narcisisticamente — ele a incorpora e a aflora em si.

Puxou algumas mechas de cabelo para baixo, a fim de cobrir a testa. E se colocasse uma franjinha? Será que não ganharia um ar mais jovem? Ponderou o resultado da simulação, mas logo desistiu. Não, franja não! Tudo, menos franja. A franja na mulher de quarenta é o equivalente feminino do homem careca que usa rabo-de-cavalo. Sinal inconfundível de desespero de causa. Ou de falha de caráter.

Jamily, Copacabana, 25 é uma obra-prima. História de uma gaúcha do interior que se prostitui no Rio. Em breve estariam todos juntos celebrando o Natal. Sim, os estupradores também celebram as datas festivas […] A maioria das celebrações não exige a felicidade verdadeira, apenas sua aparência…

Em Ana, Laranjeiras, 29, uma jornalista tem de escrever sobre o tema “cidade mulher”. Isso a leva a refletir sobre a vida carioca, sobre o que se propala a respeito da cidade cantada em prosa e verso e sua verdadeira identidade de metrópole caótica, suja, hipócrita, ignorante. É o texto que “justifica” as temáticas de todos os textos: mulher e Rio de Janeiro.

O brasileiro é muito ressentido, especialmente o carioca. Não suporta ver o colega de profissão progredir. Basta ver o que eu sofro aqui nessa redação. Só porque sou um pouquinho competente, tem um monte de gente querendo me derrubar. Eles não só invejam quem se dá bem por dom divino, e não por mérito. Ninguém aqui tem raiva de quem nasce rico ou bonito ou poderoso. Eles têm raiva mesmo é de quem trabalha. No fundo, acho que os cariocas têm vocação para o feudalismo. Nunca vi gostar tanto de rei, de imperador. É Rei das Tintas, Rei dos Sucos, Rei do Mate. Tem até um supermercado chamado Império da Banha, em Niterói. Pode?

Entre as mulheres
Rafael Cardoso
Record
270 págs.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho