Na seara da tradução, o ramo da poesia é talvez o que apresente os desafios mais desalentadores. Um poema, como diria Noel Delamare, é um núcleo de sugestões de sentidos múltiplos. Irradia idéias, atira setas para todos os lados, de maneira irresistível. Desespero real para quem pensa em traduzir letra por letra, ou mesmo sentido por sentido.
Traduzir um poema não é compreender todas as suas partes e elementos; é construir sentido a partir dessas partes e elementos. Nem mesmo ajudaria perguntar ao autor do poema original o que ele quis dizer; o tradutor de poesia é um solitário recriador, dependente de sua criatividade, experimentação, paciência e mesmo ousadia. Traduzir poesia requer escrituras e reescrituras, às vezes versões e versões sucessivas.
Campo tão vasto e rico não deveria carecer de reflexões de maior fôlego. Não deveria carecer de obras e obras dedicadas a ele. Mas carece. Anderson Braga Horta, com seu Traduzir poesia (Thesaurus, 2004), vem suprir essa falta. Reúne num único volume copiosa coleção de poemas traduzidos (ao lado dos originais) e inspirados textos de reflexão sobre o ofício. É coisa que não se vê nem se lê todo dia.
O fio condutor é a tradução da poesia em si. Não é obra dedicada a este ou àquele poeta. Nem à poesia desta ou daquela língua. Horta traduz poemas de nada menos que seis idiomas: alemão, espanhol, francês, galego, inglês e italiano. Os poetas são inúmeros: Baudelaire, Petrarca, Quevedo, Borges, José Martí, Neruda, Rilke, Shakespeare, William Blake, dentre outros. Seleção de craques. O resultado é uma viagem pela poesia e pela arte da tradução.
Nela vemos não só os produtos acabados — não só os poemas originais e suas traduções. Também é possível vislumbrar um pouco do processo criador envolvido na montagem de um novo poema em outra língua. Ao expor as variantes anteriores de um mesmo verso, Horta nos mostra o quanto pode haver de dificuldade, criatividade e transformação nessa passagem.
A complexidade de um poema resume todos os percalços que se podem encontrar no ato tradutório. Para Horta, o poema é aquela “construção vocabular para a qual tem o poeta à disposição a palavra e tudo que ela é capaz de abrigar/ocultar/revelar, vale dizer, um infinito”. Diante do infinito, o poeta se abisma e se arrebata. Diante do poema original, outro infinito se abre na mente do tradutor, com aquelas múltiplas possibilidades de sentidos apontadas por Delamare, sem falar nas alternativas de ritmo e efeitos sensoriais diversos.
Horta, poeta-tradutor, crê na força da tradução especialmente quando ela é movida pela admiração, pelo amor ao original. Traduzir, para Horta, é, ou deveria ser, um ato de homenagem. Não enxerga na “tradução por encomenda” motor capaz de alçá-la a vôos literários mais altos. Exibe certa desconfiança diante da tradução feita por interesses outros que a admiração pura e simples.
Talvez haja um exagero aí. Ou a desconsideração de outros elementos e dimensões que parecem ter peso na tradução: o conflito autor-tradutor; a luta pela propriedade do texto; a violência criadora que faz nascer o broto do ramo decepado. Talvez traduzir poesia seja esse jogo insolúvel de amor, admiração, fidelidade, homenagem, de um lado, e ódio, usurpação, violência e transgressão, de outro.