Todos derrotados

Personagens de Marçal Aquino tentam sobreviver nas frestas do cotidiano
Marçal Aquino: pouco tiro e muita dor
01/09/2003

Pregar uma placa na literatura de Marçal Aquino com a inscrição “policial” — a balançar ao vento (como naquelas cidades-fantasmas de filmes de faroeste) — é reduzi-la, transformá-la em apenas uma fresta fina; é esconder do leitor o sumo que escorre nas elipses, avanços, silêncios, desgraças e escombros que permeiam a obra deste paulista de Amparo — até o nome da cidade natal parece querer distorcer a prosa de Aquino, feita de desamparados, sofredores, perdedores. O reducionismo (e como tal, nocivo) perpetrado por resenhistas e críticos deve-se às facilidades que os rótulos proporcionam. Muito simples: policial, passemos a outro, pois a fila só faz aumentar a cada dia. E, alguns, esquecem-se de aprofundar uma discussão que pode render boas querelas, ou pelo menos ocupar os dias enfadonhos.

Costuma-se aproximar a literatura de Aquino à de Rubem Fonseca (engraçado como todos querem estar à sobra de alguém; quando não o crítico, o autor: vejam aí o exemplo de Patrícia Melo, colada a Fonseca como o berne às carnes do boi). Tal aproximação só é válida em partes. O crime viceja em ambos. Mas um está mais interessado nas desgraças da classe média (Fonseca), o outro prefere a periferia, os anéis de um Saturno desgraçado (Aquino). Já que é para comparar — apenas a título demonstrativo, que fique bem claro —, peguemos a obra-prima, digamos, policial de Rubem Fonseca: Vastas emoções pensamentos imperfeitos. Há aqui todo um trabalho de aprofundamentos sociais, principalmente quando o protagonista tem “crises de consciência” ao fazer filmes publicitários para o irmão, um pastor dos mais inescrupulosos. A solidão de carnavalescos é escancarada de uma maneira a nos fazer sentir pena à saída do baile de máscaras. Os périplos pela Alemanha, a discussão sobre diamantes, o roubo de supostos originais de um escritor russo são atrativos requintados neste romance de vida longa. E o que é mais marcante: Fonseca atiça o tempo todo a nossa vontade de desvendar os enigmas da trama, precisamos saber quem matou. Mas, como todos sabemos, tampouco a alcunha policial fica confortável nas linhas de Rubem Fonseca. Ele a extrapola.

(Talvez o único legítimo escritor policial brasileiro na ativa — legítimo porque já tem uma obra “dedicada à causa” — é Luiz Alfredo Garcia-Roza, com seus quatro romances: O silêncio da chuva, Achados e perdidos, Vento sudoeste e Uma janela em Copacabana. Todos construídos com habilidade e um protagonista convincente, o delegado Espinosa. O resto são apenas tiros no escuro, uma escorregada aqui, outra ali. A literatura brasileira não tem tradição policial. Infelizmente. Talvez por preconceito dos autores, já que tal gênero é considerado “menor”, um subgênero como tentou vaticinar o crítico Edmund Wilson numa acalorada discussão em 1945, com artigos achincalhando o gênero policial, com argumentos, admita-se, sólidos, como fragilidade na construção dos personagens, um desenvolvimento claudicante do enredo e soluções por demais fáceis, quando não inverossímeis. Tais características abundam na literatura policial, vejam o caso do próprio Garcia-Roza que resolve um de seus romances com a morte do algoz ao não resistir às emoções da transa com a vítima. Mas os “defeitos” apontados por Wilson podem (e estão) presentes em qualquer gênero. No alvoroço do cardume, muitos bagres morrem por falta de oxigênio. Mas, no Brasil, o preconceito sobre o gênero policial persiste, o olhar enviesado dos escritores e da crítica faz-se notar, ainda mais quando Bellotos da vida investem no gênero. O descrédito aumenta. Um tiro pela culatra, com lugar-comum e tudo.)

Voltemos, pois. Já em Aquino, o requinte — pelo menos o social — não existe. Há o submundo, e dele emerge a patuléia, os estropiados, os marcados para morrer de tiro. A leitura de Cabeça a prêmio nos leva pelo mundo dos matadores de aluguel (outra vez), das prostitutas (como em muitos contos) e dos traficantes. Sem nenhum volteio, Marçal Aquino descarrega o tambor do revólver e diz: “este é o meu mundo, o meu terreno, por aonde me movo com destreza”. Não há discussões sociais (não escancaradas) na fala de seus personagens; eles circulam com rapidez, ariscos, sempre fugindo, correndo atrás de um corpo para derrubar na cova ou na cama. Albano e Brito são competentes matadores e estão na tocaia de mais um que vai para a cova; um piloto transa com a filha do fazendeiro e traficante para quem trabalha, e tem a cabeça colocada a prêmio. As duas situações correm em paralelo e se cruzam. Acabam em tiro e na cama.

O interessante em Aquino — e aqui o rótulo de apenas policial se esfacela um pouco mais — não é o desfecho da história: já sabemos que todos sairão derrotados. O que fascina em sua prosa é a margem; ele não circula pela rodovia, prefere o matagal à beira da estrada movimentada, embrenha-se até encontrar uma cova rasa para deitar o corpo. A literatura de Marçal Aquino é feita pelos grotões do Brasil, numa referência clara a todos aqueles que não conseguem adentrar na chamada (famigerada?) paz social. Aquino tira a casca da ferida antes do tempo e expõe a carne pútrida, levanta a lajota e deixa entrever o fervilhar de insetos se refestelando na nojenta umidade. Quando percorre as fronteiras do Brasil, está mostrando que à margem a vida dos desgraçados pulsa febrilmente: “Uns três quilômetros antes, vira um bando de homens tentando desatolar um caminhão com a ajuda de um pequeno trator agrícola. Dois meninos de cócoras sobre um barranco acompanhavam o trabalho com cara de tédio. Ao fundo, depois de uma cerca precária, carneiros enormes pastavam na chuva” (p. 187).

(Algumas coisas podem incomodar (?) na prosa de Marçal Aquino. As mulheres parecem ser sempre as mesmas: os trejeitos se repetem, as pinturas, a maneira de fazer amor; como se esculpidas a partir de uma fôrma, em série. Outro cisco no olho são os resquícios de caráter existentes nos bandidos: no caso de Cabeça a prêmio, Brito mata, mas as mortes tremem em suas mãos, nas entrelinhas tenta deixar que não é de todo mau, mas acaba não convencendo. Podemos encarar tais “deslizes” como permanente reforço e vigilância de um projeto literário.)

De beco em beco
Ao percorrer o caminho marginal, Marçal Aquino aproxima-se de João Antônio (1937-1996), o escritor que viu o mundo pelos olhos da marginália, em obras como Malagueta, Perus e Bacanaço, Leão-de-chácara e Dedo-duro. São mundos, ou melhor, submundos, traçados com a frieza da navalha junto à jugular. Enquanto João Antônio enfurna-se pelos confins das noites paulistana e fluminense, Aquino prefere percorrer os rincões do Brasil, sempre acompanhado de um “treisoitão” na cintura, alguns cafajestes, mulheres para atrapalhar (ou melhorar) a harmonia das coisas e doses de ironia para amenizar o impacto do tiro à queima-roupa no peito do leitor. Os becos de João Antônio são os inferninhos esquecidos na beira da estrada de Marçal Aquino.

Ao emparelhar a ambos, não se pode deixar de notar o corte seco, a economia, a facilidade com que deambulam pelos mundos criados. Vê-se claramente o peso do jornalismo: Marçal e João agüentaram firme a lida nas neuróticas redações de jornal. Muito de suas experiências são visíveis em suas literaturas realistas. Há alguém que possa torcer o nariz ao ouvir a palavra realista ou realista-naturalista, tão em voga entre muitos dos novos escritores brasileiros, principalmente entre a chamada Geração 90, reunida em torno de antologias organizadas por Nelson de Oliveira. Impregnar a literatura da realidade é transformá-la num mero simulacro, como fazem os incautos escritores. Encharcar a obra de realidade, digamos, jornalística é subterfúgio dos incompetentes, como reclama com apuro o escritor Luiz Ruffato. Não é isso que faz Marçal Aquino, como tampouco foi isso que fez João Antônio. Há um lapidar de personagens, mesmo quando construídos com secura e escassez de traços. Os caminhos são traçados com estratégias; não é um jogar na página, adaptar algumas falas cotidianas e está pronto. Por trás da aparente facilidade estética há um aprofundamento na exclusão que espreita em cada beco, em cada esquina, em cada fresta de bueiro ou ranger de cama nos moquiços à margem.

Se nos textos longos — como as novelas O invasor e Cabeça a prêmio —, temos uma panorâmica que toma o rumo do crime, é em seus contos que nos deparamos com mais força com a derrota do ser humano. A ironia do título da antologia de Famílias terrivelmente felizes já nos avisa em que mundo hemos de adentrar: a felicidade é apenas uma possibilidade que não se concretiza, eis o terrivelmente. Ou quando se concretiza, é para em seguida esboroar-se. A reunião dos contos possibilita uma excelente idéia de como se constrói a obra de Aquino (infelizmente o livro não traz contos de O amor e outros objetos pontiagudos (1999) e Faroestes (2001), nos quais figuram textos significativos; mas em compensação apresenta ao leitor contos de As fomes de setembro (1991) e Miss Danúbio (1994), há muito desaparecidos das livrarias; além de quatro inéditos.)

Os personagens sonham com a felicidade, buscam-na o tempo todo, mas são abraçados com sofreguidão pela derrota, nem que esta chegue no finzinho da vida. É o caso de Impotências, conto que abre a antologia. Aí, apresenta-se um tio que “morreu no hospício numa tarde de segunda. Conversando com seus fantasmas, a única coisa que aprendeu na vida”. Vê-se um derrotado, um homem que nunca alcançou o mínimo — pelos menos nos conceitos que nos são impostos —, “que nunca teve um cão. Não ouviu Lennon e McCartney, não leu Drummond ou fumou charutos. Nunca ouviu falar da bossa nova e nem assobiou qualquer trecho de Anything goes. Não bebeu gim no Bar Paulista, nem discutiu futebol nas mesas de pensão portuguesa”. Enfim, um derrotado. Assim como o personagem de Impotências, todos os demais vão se moldando, numa aura de desesperança e escorregões pela encostas lamacentas. É como se todas as crias de Marçal Aquino se comportassem como o protagonista de Para provar que o escritor, provocações à parte, está liquidado, que se entrega e “espera, solene, pelo carteiro. E por um câncer”.

Não se pode deixar de notar a ironia trágica de alguns contos, como em Boi, no qual em uma disputa por um barraco sob um viaduto, dois homens brigam: um pensa que o outro morrera ao bater a cabeça em uma pedra. O engano custa-lhe a vida com um tiro, o assassino fica preso a uma cadeira de rodas, babando feito um boi, e herda o apelido do adversário. Ou então, em A face esquerda, no qual um homem é assassinado por engano pelo matador de aluguel (seu ex-amigo) porque voltou à casa onde morava para buscar um passarinho. Ou ainda em Recuerdos da Babilônia, em que um homem numa cadeira de rodas consegue um emprego ao chantagear o “amigo” que se casara com uma prostituta. Tudo acaba muito mal.

Pela literatura de Marçal Aquino, os personagem circulam como descreve Toni Roy, do conto Toni Roy Show, de João Antônio: “Viaja feito gado, essa gente nem vive. Pasta”. E como!

Cabeça a prêmio
Marçal Aquino
Cosac & Naify
189 págs.
Famílias terrivelmente felizes
Marçal Aquino
Cosac & Naify
232 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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