Sonhar acordado: realidade ou ficção?

Em Caligrafia dos sonhos, o espanhol Juan Marsé alcança o grau máximo na excelência de narrar
Juan Marsé, autor de “Caligrafia dos sonhos”
09/05/2015

Juan Marsé, em Caligrafia dos sonhos, registra no microcosmo que orbita o bar da senhora Paquita vidas marginalizadas, histórias de gente esquecida: Barcelona em meados dos anos 40, sob a ditadura de Franco. Homens e mulheres subjugados pelo poder. Logo na primeira cena, temos o falso suicídio da Senhora Mir (Vicky). O episódio é narrado de forma patética. Ela deita-se de maneira teatral no meio da rua, sobre os trilhos de um bonde que há anos deixou de passar pela via, que está “morta”. A força simbólica do texto do escritor catalão reside, neste trecho, em mostrar os trilhos emergindo de uma pequena ilha de paralelepípedos melancólicos, formando uma “linha truncada que não vai a lugar nenhum”, pois ilustra a vida da maioria das personagens, indivíduos que nunca saem daquele microcosmo e parecem irremediavelmente presas a um determinado tempo.

Entre as testemunhas do falso suicídio está o jovem Ringo. Com apenas 15 anos, na pré-adolescência, o menino tímido, calado, melancólico e observador dividi-se entre as aulas de música e a leitura voraz de histórias de faroeste americano. O jovem descobre aos poucos seu caminho no mundo: iniciação ao desejo do corpo e da escrita. Como uma maneira de fugir da realidade, Ringo passa a escrever sobre seus arredores em uma melancólica caligrafia sobre uma geração perdida. Escrita essa com a marca de Marsé: palavra e frases buriladas como um artesão. Narra tudo de forma minuciosa, muito clara, muito visual. Marsé gosta de mostrar as coisas ao leitor. Ele não diz, mostra. Consegue, portanto, o grau máximo na excelência de narrar. Seus narradores não dizem como as coisas são, mas nos dão a entender o que se passa através da ação.

A família, que depois descobriremos não ser realmente a sua família, vive sob tensão: ameaça da polícia franquista, o racionamento de alimentos e o pai que trabalha à noite em uma atividade proibida.

Além disso, acompanha o drama de Vicky Mir, vizinha da família, mulher gorda de feições carregadas, mas de lindas pernas. Vicky é a última das românticas. Tem a vida estraçalhada após ser abandonada pelo amante. Vicky vive sozinha com a filha, Violeta. Ringo se apaixona pela jovem enquanto assiste à degradação mental da senhora Vicky.

As histórias de Ringo funcionam como homenagem à ideia de literatura. Num determinado momento, um dos meninos do grupo de amigos de Ringo questiona a maneira um tanto fantasiosa como Ringo narra as histórias. Diz o menino que se um cavalo tem quatro patas não lhe podemos atribuir cinco, e que não faz sentido imaginar um combate contra índios nas praias do Arizona, porque no Arizona não há praias. Ao que Ringo responde da única forma possível. Ou seja, explicando que nas suas histórias existem praias onde ele muito bem entender.

A carta de amor inventada por Ringo provoca efeitos drásticos na vida de outras pessoas. Eis o núcleo da obra, um romance de aprendizagem. Questionamo-nos o que leva um jovem honesto a mentir e de que maneira essa mentira o reconcilia com uma realidade que sempre desprezou, ou da qual se sentia excluído.

Armas narrativas
O romance termina com a descrição de Rino como um “menino tão observador”. Ele passou a vida sentado, ouvindo o que acontecia na vida cotidiana dos outros. Aqui, Marsé saca outra de suas armas narrativas, a ironia. Pois, Ringo, agora com 25 anos, descobre a verdade sobre a história de amor em que se viu envolvido. E essa verdade refuta a sua versão dos acontecimentos. De modo que ele não era afinal um observador assim tão bom. Eis a última lição do seu processo de aprendizagem: é preciso ter cuidado com a realidade, porque as coisas raramente são aquilo que parecem ser.

A história atravessa três momentos do período pós-guerra. Grande parte da narrativa se refere ao ano de 1948, alguns episódios que remontam a 1946 — que aparecem às vezes na forma de flashbacks — enquanto o Epílogo (que coincide com o último capítulo da novela) está localizado em 1958. A variação temporal corresponde à trajetória do herói — Ringo — infância, adolescência e idade adulta.

Abrangendo três diferentes intervalos de tempo, o escritor traça o caminho da vida de Ringo, dividi-lo em três etapas fundamentais (infância, adolescência e idade adulta), mantendo em cada um destes intervalos de uma conexão entre a vida do menino e a da senhora Vicky Mir.

Caligrafia dos sonhos apresenta uma dualidade, traço da obra do escritor catalão, composta da seguinte forma: masculino e jovem / feminino e adulto. Um jogo de sutilezas onde a ligação entre elementos opostos se encaixa perfeitamente ao estilo da narrativa de Marsé, feito de contrastes e sobreposições, incoerências e comparações.

Finalmente, voltando ao “poder das palavras”, o trecho da fogueira de livros, em que toda a família de Ringo e seus vizinhos em conjunto para se livrar dos livros “proibidos”, Juan Marsé inclui uma alusão sugestiva: “Estes papéis comprometedores […] têm até agora sido escondidos em um porão na Fahrenheit Street”. (O nome contém uma menção clara de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953, romance, cujo título refere-se à temperatura na qual o papel se inflama. Este é um romance distópico em que o governo ordena a população a queimar todos os livros.) A menção contém uma amarga ironia amarga. Destaca o fato de que a realidade pode ser tão absurda ou até mesmo mais tola do que a ficção, o que confirma a ideia que cruza Caligrafia dos sonhos, que “a ficção pode ter mais peso do que a realidade”.

Caligrafia dos sonhos

Juan Marsé
Trad.: Paulina Wacht e Ari Roitman
Alfaguara
290 págs.
Últimas tardes com Teresa
Juan Marsé
Trad.: Luís Carlos Cabral
Alfaguara
422 págs.
Juan Marsé
Nasceu em Barcelona, na Espanha, em 1933, com o nome de Juan Faneca Roca. Após a morte da mãe no parto, foi adotado pela família Marsé e passou a se chamar Juan Marsé. Na infância trabalhou numa relojoaria. Entre suas obras mais conhecidas estão os romances O feitiço de Xangai, Rabos de lagartixa, Últimas tardes com Teresa. Em 2008 conquistou o Prêmio Cervantes, o mais importante da literatura hispânica.
Rodrigo Celente

É jornalista e mestrando em Escrita Criativa (PUCRS).

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