Somos ruínas em qualquer Rio

Rodrigo Lacerda muda o rumo de sua obra e mostra total domínio sobre os caminhos literários
Rodrigo Lacerda está mais econômico com as palavras para alongar a imaginação Foto: Elaine Ramos
01/04/2004

O Rio de Janeiro (a cidade) é uma maquete do demônio. Com seus dedos longos — sempre imaginei o infeliz de mãos delicadas e dedos afilados —, dispõe cada peça com devoto esmero. Alinha os morros, as avenidas; com uma pá, feito criança feliz na areia, delineia as praias, pinta o sol ao fundo, estica o horizonte a perder-se por encostas verdes. É um artista a compor a sua obra-prima. Deixa-nos extasiados com tamanha perfeição e arrasta-nos para sua armadilha. E eis que nos vemos ali na barafunda do trânsito, na avenida Brasil — estrada rumo ao sem-fim —, nas coxas roliças do samba, no calor eterno das tardes, no petisco farto dos bares de meio-fio, etc., feito moscas atraídas para a armadilha que lhe cola as asas. Não há saída: estamos no paraíso do demônio. O fogaréu é logo ali na esquina, onde espocam algumas saudações ao coisa-ruim. Nem dá tempo do corpo tombar e já é espetado e levado às profundezas do Corcovado, onde as almas estão aprisionadas.

(Simplista e fácil pintar o Rio de Janeiro como um inferno, nestes tempos em que a vida vale menos do que um passeio pelo calçadão de Copacabana. Mais fácil ainda aqui da poltrona de arame chamada Curitiba. O Rio é um mistério que nem o capeta consegue desvendar. Nem os tiros conseguem expor os verdadeiros músculos da cidade. Há uma crosta protetora. Nunca saberemos de que é feita esta cidade: se de sonhos ou de escombros.)

Do Rio, assim como de qualquer buraco deste mundo, podemos tecer as mais estapafúrdias considerações, como estas aqui apresentadas. O jornalismo não dá conta. A literatura, tampouco, deve atrever-se a tal sortilégio. Que fique em seu canto a fabular que já estará prestando desmedido serviço ao homem! Mas como leitores, não nos agüentamos quietos quando nos chega às mãos um romance com o sugestivo título Vista do Rio, como este de Rodrigo Lacerda. A primeira pergunta, mesmo antes de abri-lo, inevitavelmente será: estaremos diante de mais um daqueles livros-quase-verdade que ambicionam dissecar a realidade por meio de personagens, incursões do autor por vielas, ruas, gentes, etc. para nos mostrar do que é capaz a literatura? O autor vai subir o morro, escarafunchar barracos, pegar em armas, cheirar carreiras de cocaína, prostituir-se para mostrar como “a vida é de verdade”. Só de pensar nisso dá um sono danado e uma imensa vontade de deixar o livro na pilha dos “quem sabe um dia serão lidos”, que aumenta a cada dia. Cá entre nós, autor a pisar na realidade — principalmente os mais jovens (Rodrigo Lacerda tem apenas 34 anos) — com seus sapatos de detetive social já está a expor a literatura brasileira ao ridículo.

Mas deste “mal” não padece Vista do Rio — apesar de o título menosprezar a importância e a vitalidade do romance. O título é, no mínimo, infeliz, por inúmeros motivos. Entre eles (e o mais forte) é que o livro trata de uma grande amizade entre Virgílio e Marco Aurélio, indiferente ao Rio de Janeiro. Desconsidero o vôo em asa-delta de Virgílio sobre a cidade como simbolismo crucial. Poderia ter sido feito sobre qualquer cidade que teria o mesmo e intenso significado: o de liberdade, o contraponto ao beija-flor preso no liquidificador do primeiro capítulo, tentando desesperadamente esquivar-se das lâminas afiadas. É neste início que podemos situar as intenções e a grandeza da obra: o que pode parecer apenas uma diabólica brincadeira de meninos — prender um azarado beija-flor no liquidificador, para vê-lo lutar contra a morte — vai nortear toda a condução do romance. O aprisionamento, a morte definida, a falta de saídas, o azar, a tentativa de sobrevivência são questões permanentes.

A cena do aprisionado beija-flor também insinua uma violência que, felizmente, não se estende na continuação. (Cheguei a lembrar-me da desarvorada galinha a fugir de seus algozes no início do filme Cidade de Deus, baseado no livro homônimo de Paulo Lins). A morte do beija-flor serve para definir quem vamos encarar no decorrer da leitura, quem são estes personagens, e como se transformaram em sonhadores sem perspectivas. Vírgilio “desde cedo, um escapista irônico, inteligente, ousado, malicioso, ácido, frágil, desconfiado da parte boa de seu caráter”. Mais tarde o veremos como o bissexual com Aids, teatrólogo incompreendido, nostálgico de um tempo que — como nos acontece a todos — escapou-lhe por entre os dedos. Marco é o poeta de pouca inspiração e filho enjeitado pela mãe que vê sua amizade com Virgílio, assim como quase tudo que o cerca, esfacelar-se, sem muita força para mudar a rotina das coisas. Ao fim, torna-se um burocrático escritor e entusiasmado pai. São dois beija-flores a lutar contra lâminas afiadas.

Nesta amizade, é importante o ângulo, o ambiente escolhidos pelo autor. Não estamos nas mazelas da favela, mas no suntuoso edifício Estrela de Ipanema, que, como o nome transpira, trata-se de um símbolo de uma época em que os prédios ainda eram sinônimos de status e segurança — um lugar que ensinou Marco a “não aceitar minhas próprias limitações, a querer crescer mais rápido e ser consciente e íntegro mais cedo — dono do meu nariz”. Nesta redoma, todos se sentem seguros e fazem do isolamento uma máscara resistente aos inimigos externos, como aquele mendigo que na calçada ousa cumprimentar alguns moradores. Mas aos poucos, sente-se o Estrela de Ipanema se transformar no liquidificador de muitos beija-flores, principalmente ao moleque sodomizado pelo pai.

Se de um lado temos o intimidante edifício — cheio de vida, sonhos, realizações: um portentoso exemplar da capacidade do homem —, do outro vemos o hospital onde Virgílio definha: “aqui não era a arquitetura dando forma ao homem, mas o homem plasmando a arquitetura”. Durante todo o romance, teremos chispas de discussão sobre a arquitetura, ou melhor, sobre o hábitat que o homem constrói para proteger-se. Enquanto o Estrela de Ipanema está próximo ao céu pela sua pomposidade, o hospital é um breve caminho ao inferno. Os detalhes na construção — cada pastilha colada na fachada deste edifício ficcional faz grande diferença — são os alicerces deste romance que confirmam em Rodrigo Lacerda a capacidade criadora e o domínio sobre os caminhos literários. Ele conhece os atalhos, faz as escolhas corretas, conduz com segurança os personagens, principalmente se se levar em consideração as sua obras anteriores.

A opção por uma literatura muito próxima a sua vida — os tormentos de uma geração classe média afundada em frustrações — destoa muito do fabular-farsesco de O mistério do leão rampante (1995), ganhador do Prêmio Jabuti, e de A dinâmica das larvas (1996). Nestes romances, o humor impera com força avassaladora. O riso sarcástico aflora a todo instante. Agora, em Vista do Rio (triste título a tamborilar), Lacerda investe num “romance entre os pares de seu tempo”, para mostrar a amizade com um sentimento, se não indestrutível, resistente a pavorosas intempéries. Não se pode deixar de notar que as frases longas, tão significantes em O mistério…, dão lugar à oração curta, ao corte seco, à economia. Rodrigo Lacerda está mais econômico com as palavras para alongar a imaginação. Este sobrevôo pelo Rio, ou por que lugar seja, fez bem a sua literatura, pois ele conseguiu surpreender, tirou da algibeira algo que dele não se esperava. Arriscou e acertou. Poderia cair numa lengalenga infinita sobre os problemas sociais do Rio de Janeiro, encarar uma favelinha, deslizar pelos morros, deixar corpos estendidos na avenida Brasil, mas preferiu universalizar seus propósitos. Tomou a amizade de Virgílio e Marco Aurélio — recuso-me a fazer qualquer referência aos nomes dos personagens — como o grande centro para discutir o esvaziamento das relações entre vizinhos, amigos e familiares (leia-se, todos nós), para mostrar as fissuras que se abrem todos os dias em nós. Somos edifícios prestes à demolição.

Vista do Rio
Rodrigo Lacerda
Cosac & Naify
199 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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