Sobre os ombros

O romance "Ao pó", de Morgana Kretzmann, traz a leveza da escrita para lutar contra a violência e tentar aliviar o fardo da memória
Morgana Kretzmann, autora de Ao pó
01/08/2020

Em Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino nos diz que a literatura possui vocações opostas que se confrontam através dos séculos: “uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas”, a outra “tende a comunicar peso à linguagem, dar espessura”. Calvino recupera inúmeros exemplos como o de Ovídio que, através da leveza, nos deixou as metamorfoses. Importa fixar, apesar do oximoro, esse caráter dúbio da escritura e a ideia, segundo Calvino, da “escrita como metáfora da substância pulverulenta do mundo” para ler Ao pó.

Embora o título do livro evoque a imagem da matéria leve, Morgana Kretzmann trata de um assunto árduo, árido. Um problema que pesa sobre os ombros não apenas da narradora, mas da sociedade: o assédio intrafamiliar, a violência sexual e a devastação que irradia no perímetro dessas vidas. A narrativa de Sofia nos é dada em três etapas: Recomeço, Suspensão, Reparação, mais prólogo e epílogo. O trauma é apresentado no prólogo.

Estamos em 1999 e Sofia, com quase quinze anos, está na festa de aniversário de onze anos da irmã Aline. Ao fim da festa, a mãe sente falta de Aline e pergunta à Sofia se a havia visto. A pergunta ativa o choque e Sofia sai à procura da irmã, que vem “dobrando a esquina” de mãos dadas com o tio Luiz. Cena conhecida por Sofia. Para Aline, a irmã é a única que poderia protegê-la e Sofia faz isso quando tenta intimidar o tio Luiz, mas este se impõe pela truculência e, fiado na vergonha que cala as famílias nestas situações, zomba da menina. O prólogo encerra a seguinte cena: “Ele riu e caminhou lentamente até a casa, me deixando lá fora, estática, derrotada, impotente”. Eis o estigma que a narradora irá carregar ao longo da história e contra o qual ela lutará para se livrar. Saltamos para 2014, fase em que vemos Sofia em seu estágio mais crítico afirmar para si a decisão de acabar com o tio abusador. Antes de seguir para o Recomeço, a autora nos deixa uma cena de infância sob o título de Romãs e cigarros.

A cena mostra quão forte pode ser a impressão de um gesto gravado na infância. Essa força também está no ritmo das frases, raramente longas. Uma economia necessária diante de um assunto que transtorna a experiência do sujeito.

Sob o pé de romã “a tragédia deu seu primeiro sopro”. Curta e visceral, a historieta nos conta de uma menina (Sofia) surpreendida pela avó diante de um gesto de criança solitária. O flagrante faz da menininha de nove anos uma refém da anciã e da culpa. A avó costumava dizer que a menina carregava maldade e perversão, queria provar sua tese. Certa tarde, sozinha com a neta, resolveu sair. Deixara na casa, como iscas, uma revista pornográfica, um maço de cigarros, um pouco de dinheiro sobre a cômoda. Saiu dizendo à neta que poderia ficar em casa vendo televisão. Na ausência da avó, a menina explora a casa como qualquer criança poderia ter feito sem maldade. Entra no quarto da tia, passa batom, calça sapatos, pega a carteira azul, não mexe no dinheiro, e com a revista e os cigarros vai para a sombra do pé de romã imitar as poses da revista com cigarro na boca. A avó retorna sorrateira e tem o que precisava para justificar as acusações contra a criança: uma pequena devassa.

A historieta é uma espécie de anamnese que traz à luz aspectos do caráter da narradora que em vários momentos se sente devastada, mas creio que ela nos diz mais. Morgana Kretzmann não escolhe a árvore gratuitamente. A menina senta-se sob a fronde da romãzeira em plena primavera, próxima das raízes que representam ciclos atávicos da natureza. A romã nos remete ao rapto de Perséfone; a descida ao inferno, o purgatório e o retorno à superfície. Não é demais tomar estes gestos narrativos como analogia ao percurso de Sofia e, não obstante, com a própria estrutura romanesca e sua unidade tripartite. O relato mencionado acima é um confim a partir do qual temos passagem para o ano de 2006.

Imagens do passado
Em Poussière, um breve texto publicado na revista Documents Nº5 e editado no Brasil pela Cultura e Barbárie, Gorges Bataille escreve acerca da persistência da poeira, da “triste camada de poeira” que invade os sótãos e casarões como que preparando-os para a chegada dos fantasmas, das assombrações. É como escrever sobre uma superfície coberta de pó, como a fotografia anônima da mulher no Kansas após as tempestades de poeira (Dust Bowl) que assolaram o estado nos anos 1930. A aparente fragilidade da matéria torna-se uma avalanche sem alumbramentos. O vento e a poeira, no caso de Sofia, são as imagens do passado.

O ano é 2006. É o ano do Recomeço e Sofia está no Rio de Janeiro atuando profissionalmente no teatro com a peça Casas de pó. O espetáculo lota o teatro da Gávea. A vida segue aparentemente equilibrada. É neste cenário que surge Carlos Ilhas, reconhecido diretor de teatro com quem Sofia passa a ter uma relação bastante tóxica. Carlos habituado a relacionamentos abertos e Sofia buscando alguma estabilidade emocional. A narradora novamente se vê diante de um comportamento abusivo por parte de Carlos, o que a faz lembrar do tio Luiz. As placas tectônicas da narrativa se abalam. A viagem para o Sul é iminente. Sofia tentara escrever uma vida nova, mas o passado, como poeira leve e lenta, recobre os dias deixando entrever no palimpsesto a imagem de Aline em Tenente Portela.

A angústia e a crise com Carlos parecem se equilibrar quando decidem morar juntos, mas o fato é que Sofia se anula e se acomoda tomada por um sentimento de incapacidade e apatia. Praticamente abandona a carreira para seguir Carlos Ilhas, mas se perde como à deriva nesse arquipélago. A situação faz com que outro acontecimento venha complicar ainda mais a autoestima de Sofia, arremessa-a outra vez para o inferno.

Em certa noite, sai com seu melhor amigo Humberto para um chope e conhece Fredi, músico de uma banda que veio de Belo Horizonte. Sofia insiste em conhecer o jovem. A turbulência da vida contribuiu para buscar o excesso. Bêbada em uma apresentação da banda de Fredi, acaba indo para o camarim no fim do show na Boate 66 e o resultado vaza em um vídeo nas redes sociais. Faz lembrar o Poema sobre os meus direitos, da afro-caribenha June Jordan, ativista feminista admirada por Tony Morrison, autora de O olho mais azul — de temática próxima ao romance de Morgana.

A atriz deixa cair todas as máscaras, a gravidade é praticamente insuportável. Carlos troca as chaves do apartamento, deixa-a na rua. Sofia se isola do mundo, como Perséfone, retorna à escuridão, deixa a poeira cobrir seu cotidiano, quer desaparecer, viver em suspensão, quase invisível, mas chega a hora de reparar o passado. A unidade tripartite do livro se desdobra em três missões de reparação. A primeira acontece em São Paulo, o alvo é Carlos, a segunda contra Fredi, em Belo Horizonte, e a última e redentora será a volta pra casa, o reencontro com Aline e o acerto de contas com o tio Luiz.

Com apoio de Humberto e Kátia, Sofia chega a Tenente Portela. O retorno é tenso. A protagonista vai ao encontro dos acontecimentos, mas estes vêm em sua direção obedecendo outra lógica. O passado jamais é estático. Encontra o que não esperava, tem um sobrinho, fica suspensa diante do gesto e do olhar vazio de sua mãe, que passa agora a habitar o seu. Esse olhar herdado, preso numa distância irrecuperável, tentando compreender como é possível viver com toda a violência em um mundo muitas vezes surdo. Recapitula o seu desejo de reparação, que a motivou sair do inferno e voltar à superfície, Perséfone melancólica, atravessando camadas de poeira sedimentadas na memória. Sofia irrompe desse solo como a flor no asfalto do poema de Drummond, atravessa o asco, o nojo e talvez se pergunte: quanto aos “crimes da terra, como perdoá-los?”.

P.S.: Depois da última página da narrativa e dos agradecimentos, Morgana deixa um poema que parece condensar o romance e, como se fosse um posfácio ao modo de Tamara Kamenszain em La novela de la poesia, poderíamos dizer que o livro é o romance da poesia. Se pensarmos o poema como lugar de aberturas, se a autora deixa essa porta entreaberta, vale dizer, o livro não termina.

Ao pó
Morgana Kretzmann
Patuá
164 págs.
Morgana Kretzmann
Nasceu em Tenente Portela, no interior do Rio Grande do Sul, e vive em São Paulo (SP). É atriz, roteirista e produtora cultural, com prêmios nacionais e regionais. Ao pó é seu romance de estreia.
Cristiano Moreira

É poeta, professor e tipógrafo. Nascido em Itajaí (SC), em 1973, criado em Navegantes (SC). Estreou na poesia com Rebojo (2005). Dente de cachorro (2018) é seu livro de poesia mais recente. Editor da Papaterra Edições e Produções Culturais, dirige uma hospedaria com uma biblioteca rural e a Oficina Tipográfica Papel do Mato.

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