Sobre a descoberta de si em outro

Resenha de “Quando ia me esquecendo de você”, de Maria Silvia Camargo
Maria Silvia Camargo, autora de “Quando ia me esquecendo de você”
01/10/2013

Carla de Souza, personagem principal de Quando ia me esquecendo de você, tem quase cinqüenta anos, uma relação mal resolvida com o marido, está em licença maternidade do seu segundo filho e acha que será demitida assim que voltar para o trabalho como editora. O leitor a conhece quando ela resolve escrever um diário, uma espécie de resposta aos 288 diários que recebeu de sua amiga Ana.

Ana é quase o oposto de Carla. Escritora famosa e jornalista, deixou uma carta dizendo que os cadernos deveriam ser encaminhados para Carla em caso de doença grave ou morte. Sem notícias da amiga por algum tempo, Carla resolve investigar e descobre que Ana está internada em um hospital suspeito do Rio de Janeiro com uma doença ainda não diagnosticada que a deixa bastante debilitada.

Enquanto lê os diários de Ana e escreve o seu próprio, Carla precisa enfrentar várias situações críticas. Um filho ainda bebê, a situação estranha com o marido, a falta de trabalho e a doença de Ana fazem com que ela precise sair da sua zona de conforto.

Redescoberta
No início da leitura, a narradora deixa de evidente o quão diferente são as duas: enquanto Carla é cuidadosa e pensativa, mesmo que atrapalhada, Ana é impulsiva, rápida e certeira, mesmo com seus altos e baixos. Em algum momento da amizade, Ana apelida Carla de “Aiai”, referindo-se principalmente à postura desta frente ao mundo. Ao mesmo tempo em que lê, pensa e escreve sobre isso, Carla descobre um novo ponto de vista sobre si mesma naquilo que a amiga escreveu sobre o seu passado.

Em um momento crítico, Aiai sai de São Paulo e vai para o Rio de Janeiro ajudar a amiga, e precisa lidar com coisas que não esperava, como a mãe de Ana extremamente debilitada e a amiga sem querer esclarecer o que de fato aconteceu.

Ao longo da narrativa, Aiai personifica a mulher que carrega tudo nas costas sem querer fazê-lo, mas de certa forma assume a responsabilidade das coisas que ninguém mais quer fazer. Apesar de isso a tornar mais ativa do que o apelido sugere, no fim a impressão que fica é que ela aceita as missões por não ser forte para recusar.

Ainda assim, é nesse percurso de entender e ajudar a amiga que ela acaba descobrindo (ou lembrando) do que é capaz, de tudo o que pode fazer e do quanto valoriza sua família.

Fraquezas
O livro é inegavelmente um romance de estréia. Transborda vontade e boas intenções, mas mostra uma falta de amadurecimento da história e dos personagens. As protagonistas são interessantes e antagônicas — a certinha Aiai, que se perde com as coisas que acontecem sem planejamento, contra Ana, impulsiva e rápida. Ainda assim, os dilemas que vivem são curtos e breves, sem um desenvolvimento profundo. Aiai parece aceitar tudo na vida sem questionar ou sequer pensar, mesmo aparentando ser metódica.

Algo semelhante acontece com a transformação de Ana: a personagem passa de um surto psicótico para uma calma responsável em apenas uma conversa de cinco minutos com a amiga. A falta de verossimilhança e a incoerência nas ações das personagens causa um estranhamento durante a leitura e até uma certa decepção em relação ao personagem, que quebra a expectativa criada (e não de uma maneira surpreendente e positiva).

Um dos méritos do livro é conseguir manter a leitura rápida e fluida, com uma sensação de suspense (afinal, o leitor quer saber o que está acontecendo com as personagens), através da tensão — e a autora consegue organizar o enredo para que coisas novas aconteçam nos momentos certos.

Podem existir dois tipos de escrita diários: um mais objetivo e direto, feito para que se lembre de informações do dia, ou aquele mais descritivo e reflexivo, feito mais como um momento de digestão de tudo. Aiai fica no meio — descreve o que acontece em sua vida em detalhes, mas sua personalidade e vontade nem sempre transparecem naquilo que escreve. Mesmo contendo alguns momentos de reflexão e perguntas, isso se perde enquanto a narrativa se torna mais ativa em acontecimentos. Ao mesmo tempo em que isso pode ser compreensível (a quantidade de coisas que acontece na vida é inversamente proporcional ao tempo para se escrever), o leitor pode sentir falta de saber o que ela pensa e sente.

Além disso, como autora de um diário, a narradora é uma fonte muito subjetiva das informações — e é justamente isso que se espera dela. Sua narrativa deve estar pontuada de emoções, reflexões e questionamentos; presentes em muitos momentos, são esquecidos no final.

Um estranhamento acontece também com o desfecho de Aiai. Depois de tudo o que passou, e até por se sentir mais forte e confiante, espera-se uma transformação em sua vida. Mas isso não acontece, e ela aceita seu fim conservador com tamanha conformidade que assusta.

Ainda quanto ao enredo, a maneira com que temas do passado das duas personagens são abordados de maneira explicativa e ampliada faz transparecer um didatismo quanto à compreensão de quem elas são. Apesar da vantagem de se tornar um leitor integrado e conhecedor da história, por vezes o texto não se parece tanto com um diário.

Diário inconstante
Apesar do desenvolvimento confuso de alguns personagens, a escrita da autora é mais experiente e trabalhada. Assim é possível criar ótimas estruturas de frases e escolhas de palavras interessantes (receber os diários de Ana vira um “recebi toneladas de você”; a passagem do tempo em uma década é exemplificada com a frase “da coca-cola à cocaína”). A escrita funciona como diário, principalmente pensando que o diário não é um gênero amplamente pensado e editado, mas sim escrito de maneira mais rápida. A sinceridade na escrita da personagem é cativante — expressões e jeitos de falar com uma certeza de que ninguém mais vai ler é um dos pontos altos do texto.

Na edição, um ponto simpático é a inserção de imagens de diários nos começos dos capítulos, tentando acentuar a diferença de momento das personagens — alguns têm uma letra mais bonita, enquanto outros são mais parecidos com garranchos.

O livro é, enfim, inconstante: ao mesmo tempo em que tem uma escrita interessante, a adequação ao gênero proposto pode ser questionada. O enredo com suspense e ritmo acaba atropelando o desenvolvimento e a transformação das personagens, que são em alguns momentos incoerentes, tornando o desfecho um pouco fraco e sem graça. Com seus altos e baixos, a fruição do livro pode depender muito do leitor e da empatia e identificação que criará com os personagens e o enredo.

Quando ia me esquecendo de você
Maria Silvia Camargo
7Letras
134 págs.
Maria Silvia Camargo
É jornalista e escritora. Já publicou livros de ensaios e prepara a publicação do seu primeiro livro infantil. Quando ia me esquecendo de você é o primeiro romance.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho