Se há uma luz, quero tocá-la

“Almádena”, de Mariana Ianelli, apresenta interessantes possibilidades poéticas
Mariana Ianelli: poesia com leveza, elegância e charme.
01/08/2007

O que é poesia? “Tinhas a idade dos búzios/ E a euforia dos idiotas.” Quem sabe o que é ou pode vir a ser poesia? “Um cheiro, um sabor,/ Ou talvez um ruído.” A academia sabe o que é poesia? “Amanhã era o teu destino.” Os poetas sabem o que é poesia? “E tu és a resposta.” Os críticos sabem o que é poesia? “Nada mais a construir,/ Nada por ser destruído.” O leitor sabe o que é poesia? “Em ti, o que te rodeia./ Fora de ti, bem-vindo seja.” O que é poesia? O que pode ser poesia? “Porque é sempre despedida,/ Todas as noites, desde o princípio.” O que é mesmo poesia?

Poesia, no Brasil, é aquilo que dialoga com o legado Drummond-Bandeira-João Cabral? “Porque é sempre uma ponte,/ Um banco de jardim, um navio.” Não-poesia, ou melhor, poesia no Brasil é tudo aquilo que traz ecos da experiência concretista? “Morrer de ter sido, quantos não morreram.” Poesia no Brasil é o que rompe com tudo aquilo que já foi feito na poesia no Brasil? “Porque, entre cinzas, o grão do possível.” Poesia é aquilo que os professores de poesia dizem que é poesia? “Sempre menos e a esfinge do exílio.” Poesia é tudo aquilo que os professores de poesia dizem que não é poesia? “O que paira, o que silencia.” O que é, afinal, poesia? Tudo aquilo que alguém que escreve poesia diz que é poesia? “O que resta do cordeiro/ É pasto dos chacais.” Poesia é protesto? “Gritem, escandalizem.” Poesia é afago? “Mel, leite, licor e azeite.” Poesia é o que mesmo? Poesia?

Intervalo
Silêncio. Acima de tudo, e antes de qualquer prosa, silêncio. Há ruídos demais nesta contemporaneidade. Não apenas um minuto de silêncio. Horas de silêncio. Silêncio contínuo para ler, em silêncio, Almádena, mais recente livro de Mariana Ianelli. Silêncio, pode ser? Silêncio, pelo prazer que é a leitura — a prazerosa, única, incomparável e insubstituível aventura que é a leitura em silêncio. Silêncio, por favor: silêncio.

Dirá, dirás
A poesia de Mariana Ianelli é de fácil compreensão. “Eterno ao que vier, e serás tu.” A poesia de Mariana Ianelli se quer clara, transparente (apesar de nomear o inominável). “Tanto que te pensei em horas largas,/ Meu exemplo ungido, Domus áurea,/ Menos terrível não haver te desvendado.” A poesia de Mariana Ianelli irradia sensualidade e sutileza. “A clava e o castiçal, porque estremeço,/ Todo o plasma fluindo para baixo”. A poesia de Mariana Ianelli apresenta sonoridade, dinâmica (musical) que leva em consideração o não-dito — o tal do silêncio. “Pergunto por que agora e não distante,/ Por que lado a lado e outrora indócil./ Dentro, o guizo das madrugadas,/ À tona, branca ausência e desacato.” A poesia de Mariana Ianelli é feita, e pode ser caracterizada, por surpresas. “Está desfeito o badalo do tempo,/ Refeita a verdade do incontável”. A poesia de Mariana Ianelli sintoniza com as profundezas do ser. “Poeta, discerne-me entre as bestas:/ Loucura, água benta e mãos atadas/ Escuta-me uivar enquanto escreves:/ Palavra alma, corpo de atalaia.” A poesia de Mariana Ianelli é, também, cinema transcendental (epifania). “Eu digo, homem de fé: tu matarás.”

Entre forma e conteúdo, a poesia de Mariana Ianelli tem conteúdo e forma. Conteúdo e forma dialogam na proposta estética desta autora. A poesia que ela faz, pratica, inventa enfim, a poesia ianelliana se embrenha por sinuosidades que, assim, inacreditavelmente, soam, lembram, se fazem prosa. Sim. É possível, também, ler todo texto presente neste Almádena como se fosse prosa. A autora tem noção, e competência, narrativa. A poesia que ela apresenta é, então, também, uma prosa, entre outras coisas, narrativa. Poesia com DNA de prosa. Mas, sobretudo, poesia, poesia, poesia. Com leveza. Elegância. Charme. Uma raridade. Mesmo.

Aspeamento e luz
É possível ler a poesia de Mariana Ianelli e esquecer as epígrafes de Antonio Vieira que sugerem algo no início de cada um dos capítulos de Almádena. É importante ler a poesia de Mariana Ianelli sem a obsessão de localizar as possíveis influências e os diálogos que a autora estabelece com a poesia que a antecede. É fundamental ler a poesia de Mariana Ianelli com olhos de primeira vez e, de repente, ser nocauteado pela beleza: “Dói a falta de recato?/ Pois a dor os recompense,/ Faça-os gemer mais alto./ Misturem-se as partes siamesas./ Dobre-se o ventre para o lado de fora”.

Se a nossa fala é toda aspeada, se o nosso discurso traz toda a história de nossas leituras, não é necessária a angústia em busca do DNA da poesia ianelliana. O texto poético primoroso que ela oferece chega carregado de leituras e de releituras. Mariana Ianelli, enfim, ainda, também, inventa a sua própria dicção, abre a sua estrada pessoal — já inconfundível. E, se o nosso tempo é de obscurantismo, e é mesmo, a poesia de Mariana Ianelli ilumina. Ilumina o quê? Tudo.

Almádena
Mariana Ianelli
Iluminuras
102 págs.
Mariana Ianelli
Natural da capital paulista, nascida em 1979. Graduou-se em jornalismo. Concluiu mestrado em Literatura e Crítica Literária na PUCSP. Escreveu e publicou os seguintes livros: Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003) e Fazer silêncio (2005). Todos, inclusive o recém-lançado Almádena, saíram com o selo da Iluminuras. Fazer silêncio postou-se entre os finalistas dos prêmios Jabuti 2006 e Bravo! Prime de Cultura 2006. Ela mantém atualizado o site www.uol.com.br/marianaianelli.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho