Livros em que o autor desdobra a narrativa em múltiplos pontos de vista são até certo ponto comuns. Na maior parte dos casos, porém, cada personagem tem o seu momento específico, com divisões bem específicas e claras ao leitor. Cada parágrafo ou capítulo pertencem a uma única pessoa especificamente.
O Buda no sótão, de Julie Otsuka, apresenta uma outra maneira de se contar uma mesma história pela versão de diferentes personagens. Julie mistura todas as vozes de uma vez só e constrói uma narrativa, que a princípio parece um amontoado de frases desconexas e testemunhos díspares, em um único texto. Longe de parecer uma cacofonia incompreensível, porém, há uma harmonia enorme e intensa entre todas as versões, criando um conjunto forte e impactante ao leitor.
O Buda no sótão é um livro sobre mulheres imigrantes. Mais especificamente, sobre as “noivas de fotografia”, mulheres que eram enviadas do Japão para casarem com seus conterrâneos que haviam emigrado para os Estados Unidos. O processo de escolha dos pares era feito por agências especializadas e envolvia a troca de fotografias dos interessados e de recomendações da família, nada mais. No caso das mulheres que partiam do Japão, algumas ainda meninas, muitas famílias as enviavam em troca de dinheiro ou por não terem condições financeiras de sustentá-las, ou ainda eram mulheres que tinham uma vida torta e desejavam recomeçar tudo em um outro continente.
O pano de fundo histórico do livro é esse. Porém, Julie não fala da história, mas sim dos dramas e emoções de várias, muitas mulheres que cruzaram o Pacífico para se casar. Desde o embarque, em algum porto no Japão, acompanhamos diferentes relatos, uns trágicos (a maioria), uns poucos felizes, sobre como a vida dessas mulheres mudou. Julie usa a mistura dos depoimentos, em que uma narradora única assume múltiplas personas. Apesar disso, há uma cronologia clara nos acontecimentos, e a narradora múltipla conta o que cada uma sente em cada momento — as sensações durante a viagem no navio, o primeiro contato com o marido prometido, a primeira relação sexual como casada, a vida na cidade etc. Não temos uma única trilha a seguir, Julie mapeia todas as possibilidades que escolheu para poder dar vida e voz a essas mulheres que foram reais e permaneciam anônimas até então.
Destaques
São oito capítulos que abordam desde o embarque no Japão até a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, época em que muitos japoneses que viviam no Brasil foram levados para campos de concentração, com o medo de que eles pudessem ser espiões a serviço do Imperador. Todos os capítulos são ótimos, mas há dois que merecem destaque. Um deles é quando as mulheres relatam o desprezo que seus filhos mostram em relação à sua herança cultural e sua história. Nesse capítulo, temos o drama dos imigrantes ao verem seus filhos mais apegados ao país onde nasceram que à cultura dos ancestrais, algo particularmente importante para os nipônicos. Outro capítulo, o derradeiro, mostra o efeito que a ausência dos japoneses provoca nas pessoas que os viram ser encaminhados aos campos de concentração. Nesse momento, Julie troca as narradoras pelas americanas, que contam o que viram e como não reagiram ao ver seus vizinhos serem levados à força para longe de suas casas. É só nesse momento que essas mulheres constatam que os japoneses, longe de serem apenas imigrantes que estavam ali para os servir, eram também seres humanos. Mas já era tarde demais para isso, e aos poucos todos vão se esquecendo de seus antigos vizinhos que trocavam o “r” pelo “l”.
Se o leitor procura um livro com um personagem definido, passos sequenciais e uma voz única, não é aqui o seu lugar. No entanto, vale deixar de lado essa necessidade e encarar as múltiplas vozes de O Buda no sótão. Alice Stephens, do Washington Independent Review of Books, afirma que o livro, ainda que classificado como romance pelo seu editor, seja mais como um emakimono, painéis horizontais pintados à mão que retratam uma série de cenas e que, em conjunto, contam uma história única com fragmentos congelados no tempo. A sequência de frases curtas e precisas muitas vezes lembram uma poema épico, e por que não dizer que a saga dessas mulheres não foi uma epopeia? Em certos aspectos, elas foram heroínas não reconhecidas.
Para conseguir tantos relatos, Julie fez muita pesquisa, como atestam os agradecimentos ao fim do livro. O trabalho compensou. O Buda no sótão venceu o prêmio PEN/Faulkner de 2012 na categoria ficção, e o prêmio francês Prix Femina Étranger do mesmo ano, além de ter sido finalista de outros prêmios e ser relacionado por diversos jornais como um dos melhores livros daquele ano. É um romance curto em termos de páginas, mas isso não reduz a sua intensidade nem o seu impacto.
História
O movimento das noivas de fotografia foi intenso entre 1907 e 1920, devido a um ato do governo norte-americano proibindo a emissão de vistos de trabalho para japoneses. Uma brecha na lei, no entanto, permitia a reunião de famílias com a emissão de vistos para os cônjuges. Os casamentos eram feitos ainda no Japão, por procuração. Cerca de 10 mil mulheres foram para a Califórnia no período. Em 1920, desejoso de manter uma boa relação com os Estados Unidos, o governo japonês proibiu a prática da emissão do passaporte para as noivas de fotografia.
Em relação aos campos de concentração, em 1983 uma comissão do governo norte-americano divulgou um relatório afirmando que os campos nipo-americanos não eram necessários nem do ponto de vista militar e que o seu isolamento foi baseado em preconceito de raça, histeria de guerra e falha de liderança política (o presidente à época era Franklin Roosevelt). Essa comissão recomendou uma desculpa oficial do governo, o pagamento de vinte mil dólares para cada um dos sobreviventes e um fundo de educação pública para evitar que fatos semelhantes acontecessem no futuro. O Ato das Liberdades Civis de 1988, que efetivou esse plano, foi assinado pelo presidente Ronald Reagan.