Romance impressionista

Sem jamais se revelar por inteiro, "Era meu esse rosto", de Marcia Tiburi, captura o leitor pelas sensações
Marcia Tiburi. autora de “Era meu esse rosto”
01/09/2012

Uma velha senhora morre em sua fazendola ao sul da Itália. Após tomar as primeiras providências para o velório, o marido empreende uma longa e penosa caminhada até a agência dos correios, de onde telegrafa aos três filhos para dar a notícia da morte da mãe. Um guri o acompanha. De volta a casa, sentam-se os dois diante de uma forma de queijo, o velho saca do bolso sua britola (espécie de canivete usado na colheita da uva) e com ela corta um bom naco, que em seguida vai partindo e compartindo enquanto comem calados, o garoto exemplarmente contido em respeito à dor do nonno. Assim começa o belíssimo Tre fratelli, filme de 1981 dirigido por Francesco Rosi. A trama central é o conflito que se estabelece quando os três irmãos do título se reencontram na casa onde nasceram, mas a cena do lanche nunca mais me saiu da cabeça desde que a assisti pela primeira e única vez, há mais de 30 anos. Porque também eu, bisneto de imigrantes italianos, assistia ao nonno numa cena idêntica, sacando a britola do bolso para cortar o que fosse, em especial o queijo que nunca faltava em sua dieta.

Essa digressão deveria terminar aqui, inclusive em consideração ao leitor, que não terá obviamente interesse algum na vida do resenhista. Mas uma herança que se preze está sempre agregando novos capítulos em nossa história, e há um bom motivo para eu compartilhar outro deles: meu nonno nasceu em Vacaria, na Serra Gaúcha, e escolheu viver em Caxias do Sul, na mesma região, onde nascemos meu pai e eu. Eis que a história se repete, a começar pelo fato de que Vacaria parece ser também um dos dois cenários de Era meu esse rosto, novo romance de Marcia Tiburi, ainda que no livro ela apareça identificada por um simples “V.”: uma cidade serrana do sul do Brasil, de clima frio, colonizada por imigrantes italianos e onde são mantidos alguns hábitos da vida rural. Poderia ser Veranópolis, que também se encaixa à perfeição nesse perfil, mas o fato de Tiburi ser vacariana leva a tal especulação, via de regra inapropriada — e na ficção tudo o que se tenta ocultar acaba iluminado. O outro cenário está na Itália: uma cidade turística erguida sobre um arquipélago cujas pequenas ilhas são interligadas por canais; esconde-se igualmente atrás de um “V.”, mas aqui não resta dúvida a que nome corresponde a inicial. Dois relatos correm em paralelo e vêm através da mesma voz masculina em primeira pessoa: o primeiro, e mais substancial, trata da infância do narrador no sul do Brasil, a ligação dele com os avós, em especial com o nonno e suas galinhas, sua fixação na morte e outros dramas familiares; o segundo, que vem indicado entre parênteses no final de cada um dos 36 capítulos, refere a viagem do narrador já adulto à outra V., em busca de um elo perdido de sua história.

É irrelevante o fato de eu ter me identificado instantaneamente com o primeiro cenário do livro, descrito de forma tão primorosa que me fez recordar minha própria infância e uma cena de filme. O que realmente importa aos demais leitores, à parte as coincidências factuais e geográficas, é o exitoso trabalho da autora em recriar um universo real e nele inserir elementos de ficção que, por mais disparatados que possam parecer numa avaliação menos cuidadosa, fazem todo sentido quando assentados sobre uma estrutura sólida e verossímil. Além disso, Era meu esse rosto tem uma riqueza narrativa que permite múltiplas leituras. O enredo é trabalhado de forma tão cifrada que ele está sempre a nos escapar. Mesmo o final, que esclarece alguns aspectos mais nebulosos, não consegue — e nem quer — explicar toda a complexidade envolvida.

Ordem do tempo
Buscar metáforas é um caminho óbvio, ainda que incontornável neste caso. Muito além do evidente diálogo entre os dois relatos, que acabam imbricados, o que propõe Tiburi é um jogo de dualidades. De um lado, as recordações da infância sob a ótica de um narrador adulto, para quem os fatos se embaralham, mas as sensações permanecem cristalinas ao longo do tempo. E não há limites para a imaginação de quem desestrutura a linearidade da vida real para narrar a infância do próprio avô como se pudesse tê-la testemunhado, ou que tem a ousadia de inserir nessa realidade ficcional outra ficção: Il Gattopardo, nome que leva ao protagonista do romance homônimo de Tomasi de Lampedusa (O leopardo) e do magistral filme que sobre ele fez Luchino Visconti. O Gattopardo de Tiburi é um personagem da fantasia infantil, diversas vezes referido no decorrer do romance mas nunca suficientemente caracterizado; pode ser um bicho-papão, um duende, um animal selvagem ou mesmo um homem velho: vale o papel que essa espécie de eminência parda desempenha na história, e não sua caracterização. Do outro lado do Atlântico, uma experiência concreta da vida presente do narrador: sua viagem em busca da resposta para uma questão familiar não resolvida. Na V. italiana, ele foge de forma quase compulsiva do encontro que é o único objetivo da empreitada.

Inevitável pensar que se trata de duas viagens: uma, temporal e introspectiva; a outra, geográfica e extrospectiva. Mas a segunda não existiria sem a primeira, e elas acabam também por se confundir:

Logo percebo que a cidade não é real, que nela só se pode flutuar, que estou mareado desde o avião, que aqui tudo é miragem, que terei de observar a alucinação que me procura como a carta que falta ao baralho, devo lembrar que a ordem do tempo define um lastro e que é nele que devo sustentar o medo do qual venho fugindo como se o Deus de um mundo sem nome.

Essas primeiras impressões do personagem ao desembarcar em V. levam a outro elemento emblemático da narrativa, muito bem observado por Miguel Sanches Neto em recente resenha publicada no jornal Gazeta do Povo. Para o escritor e crítico, Era meu esse rosto é um “romance sobre o tempo, e conseqüentemente sobre a morte” que “apresenta uma dissolução cronológica”. O narrador que acredita ser a ordem do tempo a definidora de um lastro é o mesmo que subverte a cronologia ao contar sua história, refém de um círculo vicioso, o da vida que “vem em ondas como o mar” do célebre poema de Vinicius de Moraes. Ou da morte, sua irmã gêmea, no jogo proposto por Tiburi. A idéia se corporiza na figura de um meio-irmão gêmeo do narrador, filho do mesmo pai com mãe diferente, ambos nascidos na mesma data. Esse irmão, que não se sabe se é real ou também fruto da imaginação infantil, morre ainda criança, igual destino que teve um tio, que também é gêmeo de outro, e assim a história se repete e se perpetua.

Atmosfera sensorial
Tiburi, com sua prosa sempre elegante, muitas vezes de frases lapidares e arrojada em soluções lingüísticas, constrói uma narrativa diferente de tudo o que se costuma ver na literatura brasileira contemporânea, ainda que não seja de fácil assimilação. Talvez frustre um leitor que não abra mão do canônico início-meio-fim. Custei eu mesmo a compreender por que uma obra que me emocionava em pequenas passagens, às vezes contidas numa frase ou numa linha, e que me levava a toda hora a reviver situações conhecidas fugia sempre que eu tentava buscar o fio da meada. É que à autora não interessa que o leitor tenha uma compreensão racional da trama, mas que ele experimente as mesmas sensações ambíguas vividas pelo narrador.

Noutras palavras, trata-se de um romance impressionista, na melhor acepção do termo. De maneira análoga ao impressionismo na pintura, onde o conceito surgiu, os elementos perdem a nitidez ao refletir a percepção humana sobre o que eles representam no todo, e as sombras ganham cor, porque também elas têm o poder de nos atiçar os sentidos. Ou então, na analogia com a tradução do mesmo conceito pelos impressionistas da música, a estrutura dispensa a forma clássica do desenvolvimento temático para iluminar os detalhes, criando assim uma atmosfera, que passa a ser o elemento mais importante.

Era meu esse rosto é mais do que um romance original e bem urdido. Sua concepção aponta para uma possibilidade, se não nova, muito pouco explorada na literatura.

LEIA PARTICIPAÇÃO DA AUTORA NO PAIOL LITERÁRIO.

Era meu esse rosto
Marcia Tiburi
Record
208 págs.
Marcia Tiburi
É graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros de filosofia e de literatura, com destaque aos romances Magnólia, A mulher de costas e O manto. É professora de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura na Universidade Mackenzie e colunista da revista Cult.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho