Resistir em tempos indigentes

Em “A resistência”, Ernesto Sabato presta tributo à vida na sua abundância de “instantes absolutos”
Ernesto Sabato por Ramon Muniz
01/06/2008

Em Paris, há quase vinte anos, um escritor argentino e um filósofo romeno encontraram-se para uma longa conversa durante a qual descobriram afinidades um tanto desconcertantes. Esse encontro entre Ernesto Sabato e Cioran está presente no livro Antes do fim como parte de um comovente testamento que Sabato dedica aos jovens de seu tempo. Reconstituindo as conquistas e as desilusões que marcaram sua história pessoal, o escritor expõe em primeiro plano, sem eufemismo, sua angústia em relação a um fim de século fraturado pelo barbarismo tecnológico e a penúria espiritual.

Pois é com a mesma honestidade e inteiro coração que Sabato se dirige mais uma vez aos seus leitores e publica A resistência, em 2000, prestes a completar noventa anos. Lançado somente agora em edição brasileira, o livro, no entanto, mantém absolutamente intacta a pertinência dos questionamentos que o autor faz em relação ao chamado mundo pós-moderno, em forma de carta às novas gerações.

Embora retome boa parte dos temas já abordados em Antes do fim, Sabato dá um passo além e, nesse passo, promove o salto que afinal o distancia de Cioran, com quem naquela tarde de 1989, próximo ao boulevard Saint Germain, compartilhara opiniões bem semelhantes, como “a necessidade de desmistificar o racionalismo” e “a imbecilidade dos que crêem no progresso e no avanço da civilização”.

Se o escritor reforça no livro sua denúncia à tecnolatria, ao individualismo e à atrofia do espírito, ele o faz desta vez com redobrada coragem, assumindo o desafio de, no lance final de sua própria vida, ultrapassar o pessimismo e conceder um voto de confiança no homem.

A cultura ocidental testemunha sua falência, a banalização dos desejos se generaliza, a vida é malbaratada pelo automatismo, a violência social e a corrupção da justiça andam par a par com a destruição planetária: tudo isso Sabato reconhece, ao que revida com um golpe de afeto, pois “toda desgraça é frutífera, quando o homem é capaz de suportar o infortúnio com grandeza, sem claudicar em seus valores”. Essa medida da força humana, atestada na adversidade, serve também como emblema da resistência de um dos grandes poetas do início do século 20 — Rainer Maria Rilke, que “ousou tocar a lira,/ mesmo na escuridão”.

Superfície da vida
Tal paralelo não é gratuito. Ao mesmo tempo em que A resistência chega às livrarias brasileiras, Os cadernos de Malte Laurids Brigge, único romance escrito por Rilke, reaparece em nova tradução de Lya Luft (Editora Novo Século), após décadas fora de catálogo. Uma casualidade, à primeira vista, não fosse a citação de uma das memoráveis passagens do romance já na segunda das cinco cartas que compõem o réquiem de Sabato: “Será possível que, apesar de tantas invenções e avanços, apesar da cultura, da religião e do conhecimento do universo, tenhamos ficado na superfície da vida?”. Para essa pergunta, Rilke e Sabato encontram a mesma resposta afirmativa, que transpõe a distância de quase um século entre os livros desses dois autores para atualizar a urgência de uma só tarefa: resistir em tempos indigentes.

Diante de uma era paradoxalmente globalizada e cindida, informatizada e alienante, quando antigas cosmogonias se pulverizam e o homem vai perdendo o pouco que resta da sua memória, Sabato aposta no ressurgimento de valores que ainda podem restaurar um senso de comunidade. Onde impera o utilitarismo, a pressa e as conveniências individuais, ele ousa falar em transcendência, serenidade, amor desinteressado. Nas terras do menosprezo, ele planta as raízes da solidariedade, à espera de que amanhã sejam fortes o bastante para concretizar o dever de uma responsabilidade histórica.

Próximo da morte, o autor presta tributo à vida na sua abundância de “instantes absolutos”, que o tempo dos relógios desconhece, e o consumismo em larga escala desmorona. Foram esses instantes que alimentaram não apenas a vida de Sabato, mas sua escrita como um todo, e, em especial, este seu ânimo em convocar a juventude de uma época dessacralizada à escuta da alma, no apelo a que cada um cumpra o dom que lhe é misteriosamente reservado, em respeito a si mesmo, ao outro e aos seus antepassados. Assim o escritor pressente uma chance, talvez a derradeira, de construção do novo homem, repatriado às origens do mito e à consciência da dignidade.

Em diversas páginas, ao longo das cartas, o leitor se depara com o mote que sintetiza a força de uma obra e uma existência, lado a lado: “a fidelidade ou traição ao que sentimos como destino ou vocação a cumprir”, o que se traduz, nas palavras de Rilke, em “uma direção pura do coração”, da qual irradia a capacidade humana de admirar as coisas e estabelecer com elas uma inviolável relação de pertencimento, que une a tudo e a todos em um plano além do alcance da razão. Foi a partir dessa direção pura, aliás, desse retorno para dentro de si mesmo, que Sabato, fiel ao seu destino, abandonou aos 30 anos uma respeitável carreira de físico, indo viver em um rancho no meio das serras de Córdoba, onde uma tarde conheceu Che Guevara, ainda um jovem médico, que passava por ali, também a caminho de sua vocação.

O problema do mal
Criticado por seus colegas cientistas a ponto de ser acusado de charlatanismo, Sabato perseverou na certeza íntima de optar por um caminho dentro da literatura e da vida que, malgrado todas as dificuldades materiais, recolocava-o no centro de uma existência verdadeira, devotada à criação. Em duas principais vertentes, a do romance e a do ensaio, ele se dedicou simultaneamente a refletir sobre o papel do escritor na contemporaneidade e a fixar em sua própria literatura um olhar atento sobre o problema do mal.

Os abusos do racionalismo, a permissividade moral, a febre da eficácia são diferentes sinais de uma mesma doença do espírito que o escritor vê se alastrar desde as altas esferas do poder e da ciência ao cotidiano das pessoas comuns. Mesmo nos interstícios da atividade literária, a palavra “transcendência” carece de adesão. E, no desprestígio do pensamento mágico, em meio à esterilidade geral em que o sagrado se corrompe e se esvazia, o resgate de uma unidade perdida é o porto de chegada a que Sabato aspira em sua descida aos abismos da linguagem. “O momento de maior empobrecimento de uma cultura é esse em que o mito começa a ser popularmente definido como uma falsidade”, diz ele. O poeta, se continua a cantar, canta agora em uma língua estrangeira.

A leitura do epílogo de A resistência emociona, dada a trajetória de um homem que, tendo titubeado algumas vezes em sua fé, mas nunca em seus valores, alcançou enfim o sentido elevado da esperança. Relutante em se despedir, Sabato transforma sua tenacidade em gratidão:

Esqueci grandes trechos da vida e, em compensação, ainda palpitam em minhas mãos os encontros, os momentos de perigo e o nome daqueles que me resgataram das depressões e amarguras. Também o de vocês que acreditaram em mim, que leram meus livros e me ajudarão a morrer.

A resistência
Ernesto Sabato
Trad.: Sérgio Molina
Companhia das Letras
112 págs.
Ernesto Sabato
Nasceu em Rojas, província de Buenos Aires, em 1911. Doutorou-se em Física pela Universidade Nacional de La Plata, em 1938, tendo trabalhado na pesquisa sobre radiação atômica no Laboratório Curie, em Paris. Em 1940, dois anos após o nascimento de seu primeiro filho, voltou a Buenos Aires. Em 1943, abandonou a carreira científica para se dedicar à literatura e à pintura. Em 1945, ano de nascimento de seu segundo filho, publicou a coletânea de artigos Nós e o universo, apresentando suas primeiras críticas aos avanços abusivos da ciência e à desumanização de um mundo tecnicista, temas que irão marcar toda a sua obra ensaística, a exemplo de Homens e engrenagens, de 1951, e Heterodoxia, de 1953. Influenciado pelo existencialismo, publicou em 1948 seu primeiro romance, O túnel. Treze anos depois, lançou Sobre heróis e tumbas, considerado o melhor romance argentino do século 20. Entre seus relatos biográficos e reflexões sobre a atividade literária, destacam-se os livros O escritor e seus fantasmas, de 1963, e Antes do fim, de 1998. Em 1983 foi eleito presidente da Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), cuja investigação deu origem ao relatório Nunca más. Ao longo de sua vida literária, recebeu diversos prêmios, entre os quais o Prêmio Médici, em 1977, o Prêmio Cervantes, em 1984.
Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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