Todas as formas jornalísticas são investigativas. Mas a expressão “jornalismo investigativo” se refere normalmente à vigília dos poderes públicos, principalmente a banda podre. Se nesse escopo estivessem incluídos os “poderes privados”, o próprio Quarto Poder teria de ser vigiado com procedimentos mais amplos que os de um ombudsman e menos ideológicos que os das organizações de media watch. Mas não é bem assim.
Já o bom Jornalismo Literário, embora construído com pesquisa e conversação intensivas, não costuma ser comparado ou confundido com o investigativo. Uma resposta possível para essa diferenciação seria a que o JL possui uma característica intrínseca extra: a linguagem artística. O literário e o investigativo, porém, coexistem há séculos e, a priori, nada impede um repórter de fundir os dois conceitos numa mesma reportagem.
Operação Massacre, do argentino Rodolfo Walsh, vigésimo terceiro título publicado na coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras, é uma clássica mescla de investigação de atos do Poder Público com o uso deliberado, calculado, da expressão literária. Quase dez anos separam esta obra do icônico A sangue frio (1966), de Truman Capote. Mas Operação Massacre, embora publicado antes daquele (1957), é bem menos conhecido.
Ao contrário de Capote, Walsh escreveu o seu relato-denúncia durante um regime de exceção, quando as liberdades democráticas na Argentina estavam suspensas. Enquanto A sangue frio contou com um plano de marketing arrojado e uma revista de grande circulação (The New Yorker) antecipando os capítulos, as reportagens e posteriormente o livro de Walsh foram sistematicamente rejeitados devido ao seu explosivo conteúdo político.
Operação reconstitui as horas que antecedem a prisão (antes da meia-noite do dia 9 de junho de 1956, fato importantíssimo) de pelo menos doze homens, seus fuzilamentos e o processo judicial movido por um dos sobreviventes. Como a imprensa tradicional ignorava o caso, Walsh acabou conseguindo publicar sua série no periódico Mayoría, de pequena circulação, entre maio e junho de 1957.
Contexto
Para absorver plenamente a narrativa, é preciso conhecer o contexto histórico que a gerou. Em junho de 1956, o peronismo, deposto nove meses antes, fez sua primeira tentativa séria de retomar o poder mediante uma revolta de base militar com algum apoio ativo de civis. Uma proclamação assinada pelos generais Juan José Valle e Raul Tanco fundamentava a rebelião com uma descrição bastante exata do estado de coisas na Argentina da época.
O país, proclamavam, vivia uma tirania impiedosa e cruel. Perseguia-se, prendia-se, confinava-se. “Excluía-se da vida cívica a força majoritária.” Havia ainda o totalitário decreto 4161 (que proibia a simples menção do nome de Perón). Queriam ainda suprimir o artigo 40 da Constituição a fim de impedir “a entrega dos serviços públicos e das riquezas naturais ao capitalismo internacional” e evitar que o país “regredisse à condição abjeta de feitoria colonial”.
A proclamação do general Juan José Valle, embora destituída de hipocrisia, era inconsistente. Sacrificava o conteúdo ideológico em favor do impacto emocional. Propunha em suma um retorno crítico ao peronismo e a Perón através de meios transparentes: eleições em até 180 dias com a participação de todos os partidos. No plano econômico, o programa declarado se contradizia ao assegurar “plenas garantias aos capitais estrangeiros investidos ou por investir”.
“Valle agiu e, como era de se esperar, pagou com a vida, o que é muito mais do que qualquer palavra”, escreve Walsh. A história da rebelião, porém, é curta. Entre o início das operações e a redução do último foco revolucionário passam-se menos de doze horas. Às 21h30 do dia 9 de junho de 1956, no Campo de Mayo, sem a participação popular, um grupo de oficiais e suboficiais comandados pelos coronéis Cortínez e Ibazeta dá início aos ataques.
Naquele momento, a Rádio Estado, porta-voz oficial do governo, transmitia composições de Haydn. Até quase a meia-noite, calcula Walsh, 99 de cada cem habitantes do país ignoravam o que estava se passando no Campo de Mayo, em Avellaneda, em Lanús e em La Plata. Às 23h56, a Rádio Estado parou de reproduzir Stravinsky e pôs no ar a marcha que habitualmente encerrava as transmissões. Essas e outras rotinas constavam do livro de locutores, como era de praxe, “à página 51, rubricada pelo radialista Gutenberg Pérez” (outra prova valiosa levantada por Walsh).
Ou seja, a Rádio não pronunciou uma só palavra sobre os acontecimentos subversivos; não se fez a mais remota alusão à lei marcial (segundo a qual revolucionários comprovados poderiam ser executados sem julgamento). Mas, como toda lei, aquela também deveria ter sido promulgada e anunciada publicamente antes de entrar em vigor. Às 24 horas do dia 9 de junho, portanto, a lei marcial ainda não vigorava em nenhum ponto do território argentino.
Mas, no calor dos combates, a tal lei já estava sendo aplicada. Antes da meia-noite, alguns líderes rebeldes em ação já haviam sido presos e fuzilados sumariamente. O pior foi que pessoas desarmadas (capturadas sem provas concretas de participação no levante) também foram assassinadas. É o caso de oito homens presos numa casa de Florida, bairro do município de Vicente Lopez, a meia hora de Buenos Aires.
Incompetência e acobertamento
Os oito sujeitos ouviam pelo rádio a luta pelo título sul-americano de boxe entre o campeão Lausse e o chileno Loayza. A casa, na qual entraram primeiramente os personagens Carranza e Garibotti, era na verdade composta por duas. Uma na frente e outra nos fundos. A dos fundos era alugada para um sujeito que seria decisivo na investigação jornalística do repórter. E a da frente pertencia a Horacio di Chiano (leia trecho do livro).
Walsh penou para provar que, quando a luta de boxe se iniciou, estavam na casa Carranza, Garibotti, Díaz, Lizaso, Gavino, Torres, Brión, Rodríguez e Livraga. Por volta das 22h45 aparecem dois desconhecidos. Torres achou que eram amigos de Gavino; Gavino, que eram amigos de Torres. Só mais tarde compreenderam que eram espiões. Estavam ali para sondar se havia armas e verificar se a entrada estava desimpedida.
Minutos depois a polícia invade o local com violência. “Onde está o Tanco?”, “Onde está Tanco?”, repetiam os guardas enquanto davam buscas e espancavam. Entre os ouvintes da luta de boxe havia sim alguns simpatizantes do peronismo, mas nenhum revolucionário. Pior: não escondiam ali general nenhum. Depois de horas apertados numa cela todos são levados a um campo escuro distante do município. É quando pressentem que serão “massacrados”.
Mas a incompetência dos policiais em executá-los só é comparável à maneira esdrúxula com que foi conduzido o processo movido por Juan Carlos Livraga, um dos sete sobreviventes. Com identidade falsa (adotou durante a investigação o nome de Francisco Freyre), Walsh acompanhou passo a passo as tramas judiciais para acobertar mandantes e executores.
Durante o julgamento, alegou-se que não existiram fuzilados, e Walsh, sobre este ponto, preenche o absurdo com seu próprio espanto:
Gostaria de pedir ao leitor que não creia naquilo que relatei, que desconfie do som das palavras, dos possíveis truques verbais a que todo jornalista recorre quando quer provar algo, e acredite somente naquilo que afirmou Fernández Suárez [chefe de polícia responsável pelas prisões e fuzilamentos], concordando comigo.
Isto porque o próprio chefe de polícia, num deslize, declara perante a Junta Consultiva, em 18 de dezembro de 1956, que “com respeito ao sr. Livraga, quero deixar registrado que na noite de 9 de junho de 1956 recebi a ordem de dar busca pessoalmente numa casa… Nessa propriedade encontrei várias pessoas… Entre elas, estava esse senhor”. Em seguida tentam argumentar que as cicatrizes dos ferimentos a bala (na boca, na bochecha e na perna) de Livraga não eram prova de que ele era um “fuzilado”, mas sim um “revolucionário”.
Houve outras argúcias, desmentidos, comunicados. Desmenti-os, um por um, durante a campanha jornalística. Sua análise já não é necessária. A prova reunida em vários meses de investigação permitiu que eu acusasse Fernández Suárez de assassinato, coisa que fiz incansavelmente, sem que ele se dignasse a querelar contra mim.
Walsh confronta duas investigações sobre o caso Livraga: a sua própria e a do juiz Belisario Hueyo em La Plata.
Elas praticamente se superpõem e se completam. Em alguns aspectos, a minha era mais detalhada: incluía declarações dos sobreviventes Troxler, Benavídez e Gavino, que estavam exilados na Bolívia e não puderam prestar depoimento ao doutor Hueyo; entrevistas com Horacio di Chiano, Torres, Marcelo e dezenas de testemunhas menores que não passaram pelo gabinete do juiz; e uma cópia fotostática do livro de locutores da Rádio Estado, estabelecendo a hora em foi promulgada a lei marcial.
A tal lei foi promulgada e comunicada à nação pela Rádio Estado às 0h32 do dia 10 de junho de 1956. Portanto, Livraga foi preso quando vigoraram as leis comuns, e, ao prendê-lo, os policiais não o acusaram formalmente de nada. Quem o deteve foi um funcionário civil, Fernández Suárez, o chefe de polícia da província. “Enquanto está preso, Livraga naturalmente não comete crime nenhum. Esse dia acaba — como todos — à meia-noite.”
O argumento central de Walsh é o de que Livraga, preso no dia anterior (antes da meia-noite), não podia ser julgado nem punido senão em conformidade com o Código Penal vigente no momento de sua prisão, que previa garantias, defesa, um juiz natural, um processo. Mas o parecer do procurador e a sentença da Corte resultaram numa sinistra corrupção das normas jurídicas, ocorrência terrivelmente comum em países afundados em violência política.
Esta narrativa incrível nos remete a absurdos kafkianos, com a diferença de que se trata do real. Um real tão insano que não podia ser descrito como ficção. Embora narre fatos que aconteceram de verdade, o relato é eminentemente político e não tem nem mesmo como se misturar com o “realismo”. “O realismo precisa de visão”, afirma com precisão a pesquisadora Natalia Brizuela, no posfácio. “Operação Massacre e outros textos posteriores de Walsh se constituem a partir do que não se vê, do que não se sabe, do impossível, dos mortos que vivem.”
Questão central da obra é a ausência de sentido, o nonsense. Em lugar do detetive Daniel de seus romances policiais (Walsh antes publicara alguns), o investigador aqui é o próprio autor, talvez o primeiro detetive literário da Argentina moderna. (Talento para tal não lhe faltava. Mestre da criptografia, Walsh decifrou um telegrama norte-americano que pretendia ser comercial, mas que na verdade continha detalhes sobre a invasão de Cuba pela Baía dos Porcos, em abril de 1961. Graças a esse trabalho, a invasão não tomou Cuba de surpresa e fracassou.)
Nesta obra jornalística magnífica, o mítico Walsh trabalhou com afinco e afeto as memórias fotográficas de Livraga e os sentimentos de viúvas, órfãos, conspiradores, asilados, fugitivos, delatores presumidos, heróis anônimos e outros sobreviventes que adotaram identidade falsa ou se exilaram na Bolívia. A apuração é tão minuciosa quanto impressionante.
Com mais de 40 edições na Argentina, o livro figura hoje entre as obras mais importantes da literatura histórica latino-americana e inspirou autores importantes como Ricardo Piglia. Walsh estremeceu a divisão ortodoxa que separava a literatura e o jornalismo em seu país. Por outro lado, a experiência afastou-o para sempre da ficção e o vinculou à política. Foi dado como desaparecido dede 1977, quando escreveu uma carta de repúdio à Junta Militar golpista encabeçada por Jorge Rafael Videla.