Reinventar-se para um outro

Narradora “imprudente” é a chave para Javier Marías conduzir com leveza trama e reflexões sobre morte e paixão
Javier Marías, autor de “Os enamoramentos”
01/03/2013

María Dolz é uma funcionária de cerca de trinta anos de uma editora em Madri e tem poucas perspectivas para sua vida. Por algum tempo, desenvolveu uma estranha maneira de se confortar e começar bem o dia: observando diariamente um casal tomar café da manhã. A personagem cria uma admiração pela maneira com que os dois aparentam se amar, o modo como se tratam e até sua aparência física. Pensa nos filhos e em uma provável vida afetuosa e feliz entre eles. Imagina sua rotina e tem certa dependência do casal para se sentir bem.

A narrativa de Os enamoramentos, de Javier Marías, começa, porém, com María falando sobre a morte de Miguel Desvern, o homem do casal que observou ao longo de alguns anos. A personagem só descobre o assassinato depois de um tempo sem vê-los (acreditou que estariam de férias), quando uma colega de trabalho, que também freqüentava o café, comenta sobre a tragédia e o fim violento que ele teve.

Pesquisando depois, María se depara com as notícias sobre as facadas que Desvern sofreu na rua e sobre sua morte rápida. Descobre também que o homem era uma figura importante da indústria do cinema na Espanha, negócios de família aparentemente não relacionados à sua morte.

Ainda assim, depois de ter se acostumado a tomar café naquele lugar específico, María continua a se sentar todos os dias na mesma mesa. Ela nutre também a esperança de rever a viúva, Luiza, que de fato um dia volta a aparecer no local habitual do casal. A editora pensa então no que dizer e se apresenta a Luiza, desejando pêsames. Depois de algumas breves palavras, a viúva a convida para visitá-la em casa, e a narradora do livro deixa de ser apenas uma espectadora do casal.

Pela noite, María vê Luiza lamentando a morte e a ausência do marido. A narrativa mostra como é possível que os mortos continuem de certa forma presentes no cotidiano dos vivos. Nessa mesma noite, Luiza revela que o casal também observava María e a chamava de “a jovem prudente”. A viúva parece frágil e com necessidades de desabafar uma mesma história, mesmo que com diferentes pessoas. Ainda nessa noite, María conhece Díaz-Varela, amigo de Miguel e da família, e Rico, que parece ter caído de paraquedas na história e na casa.

De um jeito inesperado, María consegue chegar cada vez mais perto dos acontecimentos acerca da morte de Miguel depois da noite na casa de Luiza. Mesmo não procurando por isso, ela se depara com possíveis verdades dos fatos e com sentimentos contraditórios.

A mente de María
O livro é narrado em primeira pessoa por María, fazendo com que o leitor conheça os fatos mas também se depare com os pensamentos da personagem. Assim, ela narra detalhes sobre os quais não pode ter certeza — como o que teria acontecido com outros personagens depois da morte de Miguel (ou até antes). Sua imaginação cria cenas, diálogos e maneiras com que as outras pessoas conduziriam a vida ou situações específicas. Se antes imaginar a vida do casal era apenas uma maneira de acalento, o leitor passa a perceber María como alguém que tem necessidade de pensar sobre os outros todo o tempo.

A leitura do livro apresenta também alguns momentos de incerteza para o leitor. Como María cobre com seu pensamento tantos aspectos dos outros personagens e da história que viveu, diversas versões dos fatos são possíveis. Em algum momento, o leitor é capaz de distinguir o que a personagem pensou daquilo que de fato ouviu, viu ou sentiu, mas as imagens formadas pela narradora complementam a história e a deixam mais rica. Assim, tem-se certeza de certas coisas sobre Luiza porque essa contou para María, mas o leitor sabe também o que María imaginou da viúva, o que pensou que ela teria feito, o que acha que deveria ter feito e se foi certo ou não.

Essas narrativas complementares, mesmo que imaginadas, levam o leitor a ter um conhecimento da história pelos olhos de María, compartilhando das mesmas dúvidas, suposições e sentimentos. Assim, além de uma narrativa principal, o que Javier Marías faz é a construção de uma personagem enquanto ela se depara com acontecimentos fora do comum em sua vida. A maneira com que ela reflete sobre os acontecimentos acerca da morte de Miguel, além das reflexões sobre a própria morte, faz com que o leitor se aproxime muito mais de María, com suas convicções, crenças e vontades, do que de qualquer outro personagem.

Sua construção é muito mais que apenas uma descrição. O livro traz poucas informações sobre aspectos físicos da personagem-narradora, mas sabemos muito mais sobre o que ela deseja ou não para si. A editora não gosta muito de seu trabalho e apresenta várias reclamações sobre ele durante a narrativa, mas não muda de local ou carreira. María é construída também pela maneira com que se relaciona com o casal — apesar de sempre vê-los, nunca conversou ou tentou manter um relacionamento mais próximo com eles.

Com isso, o autor constrói uma personagem apática e conformada. Isso é confirmado, ainda, pela maneira com que ocorre o desfecho da história e pelo modo da narradora lidar com as divergências apresentadas a ela em determinado momento da história.

O autor tem também uma maneira de quebrar alguns dos capítulos no meio de uma cena, continuando do mesmo ponto no capítulo seguinte. Esse artifício parece deixar o pensamento em suspenso, como que fazendo com que o leitor tenha tempo para digerir e aceitar determinados fatos ou opiniões. Javier Marías também usa algumas palavras de maneira inesperada [um exemplo: “(…) eu tinha a sensação de que ele não podia se abandonar comigo…”], o que faz parte da construção da personagem.

Intertextualidade
Uma imagem forte do livro é a relação de alguns dos personagens com o romance O coronel Chabert, de Balzac. O coronel da novela francesa é dado como morto depois de uma determinada batalha, e, ao se recuperar e tentar voltar para sua vida, sente dificuldades em se inserir novamente. Sua esposa já se casou outra vez e o mundo parece existir da mesma maneira, mesmo sem ele, até o momento em que acredita que talvez realmente devesse estar morto.

Essa história é mostrada à narradora por Díaz-Varela, de certa forma como uma introdução para um aspecto do personagem que só será revelado depois para o leitor. Ainda assim, a relação que tenta fazer é de que aos mortos cabe somente à morte, e que é inevitável que os vivos sigam em frente.

Enamoramento
Para os personagens do livro, o enamoramento é um sentimento que altera a maneira com que vêem o mundo. Para a própria María, as pessoas enamoradas são capazes de assumir sinceramente vários interesses do outro, não apenas para agradar, mas por criar fortes laços com a pessoa. E os personagens de Javier Marías parecem estar, pelo menos em algum momento, enamorados de outros, fazendo com que se interessem por algo diferente.

Assim, além de ser um livro sobre a ausência e a morte, Os enamoramentos aborda a maneira com que os personagens se transformam diante de um outro, como passam a ver o mundo de maneiras diferentes.

Os enamoramentos
Javier Marías
Trad.: Eduardo Brandão
Companhia das Letras
344 págs.
Javier Marías
Nasceu em Madri em 1951 e estreou como autor em 1971, com Os domínios do lobo. Já escreveu mais de trinta livros entre romances, ensaios e coletâneas de contos, traduzidos para cerca de quarenta línguas. É formado em letras e especializado em filologia, e já lecionou na Universidade de Oxford e na Complutense de Madrid.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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