O livro Para ser escritor, de Charles Kiefer, é um conjunto de “crônicas” cujo tema gira em torno da escrita, do escritor, do texto, das vicissitudes do aprendiz de escritor e do professor. O autor pincela idéias gerais e muitos lugares-comuns sobre o assunto, o que torna as “crônicas” cansativas.
Ilustrarei o dito acima, citando e comentando passagens de algumas delas. Em Para ser escritor, temos uma afirmação categórica sobre quem é o “autor”:
O autor, ao contrário do escritor, corre rapidamente em direção a outra mutação — transforma-se no profissional de literatura, no cronista, no contista, no romancista. E este, esquecido de sua origem e de sua completa inutilidade, alienado e vencido, organiza sessões de autógrafos, faz palestras e contrata assessores de imprensa.
Embora a assertiva possa ser analisada e discutida, ela não é adequada num contexto generalizante, já que está colocada como fato e não como apenas uma possibilidade dentre outras de se definir o autor.
Nessa condição descrita por Charles Kiefer, encontraremos enorme variedade de escritores: bons, ruins, artistas, comerciais etc. Isso demonstra que o autor de Para ser escritor pouco se aprofunda nas questões sobre as quais delibera.
A nova estética é uma apologia da internet que culmina na previsão de um novo gênero: “ainda sem nome, retorcendo-se na tela do computador”.
Gêneros textuais são criados e recriados constantemente no processo da comunicação. Gêneros literários também sofrem inovações. A internet é uma ferramenta de comunicação, portanto, permite ao indivíduo exercitar suas possibilidades expressivas.
O que na verdade está ocorrendo, de modo geral, é a utilização do computador e da internet como ferramentas para uso consumista e diversão. Isso foi colocado muito fortemente no último seminário da ALB, ocorrido na Unicamp, em julho passado. Vários profissionais da área de comunicação e educação apontaram o problema e o ilustraram com pesquisas feitas em escolas de ensino fundamental e médio.
Voltando à questão de “um novo gênero”, preconizá-lo não é o fundamental, já que por si só ele não garante qualidade artística. Na internet já temos vários novos gêneros textuais que poderão ser artísticos ou não, a depender somente da competência criativa de quem os manipula.
Passagens infelizes caracterizam os textos da coletânea Para ser escritor. Uma que me incomodou em particular:
Num concerto em Paris, Franz Listz tocou uma peça do (hoje) desconhecido compositor, junto com outra, do admirável, maravilhoso e extraordinário Beethoven (os adjetivos aqui podem ser verdadeiros, mas — como se verá — relativos). A platéia, formada por um público refinado, culto e um pouco bovino, como são, sempre, os homens em ajuntamentos, esperava com impaciência…
O termo “bovino” não remete a agrupamentos e sim a bois, que são animais pacatos e indefesos contra a crueldade humana. Os bois que nos perdoem!
Mas há no mesmo texto uma passagem importante que ilustra bem como muita gente aplaude rótulos e não arte:
A música de Pixis, ouvida como sendo de Beethoven, foi recebida com entusiasmo e paixão, e a de Beethoven, ouvida como sendo de Pixis, foi enxovalhada. Esse episódio, cômico se não fosse doloroso, deveria nos tornar mais atentos e menos arrogantes a respeito do que julgamos ser arte.
Claro que não precisamos ir tão longe para criticar os que se levam apenas pela aparência, pelo marketing, pelo que está estabelecido. Há exemplos fartos na nossa realidade cotidiana, em todos os campos da arte e da ciência. De todo modo, vale a lembrança.
As afirmações de Charles Kiefer, em geral, trazem no bojo as próprias incoerências. No texto Ainda sobre lançamentos em bares e assemelhados,ele afirma o seguinte: “Para ser escritor profissional é preciso ter postura e comportamento de escritor profissional. O resto, como dizia um escritor gaúcho, talvez o mais profissional dos que já houve por estas plagas, Erico Verissimo, o resto é silêncio”.
Ora, afinal o que o professor de escrita pensa? Em Para ser escritor, ele afirma:
Um escritor somente é escritor quando menos é escritor, no instante mesmo em que tenta ser escritor e escreve. Na absoluta solidão do seu ofício, enquanto a mente elabora as frases e a mão corre para acompanhar-lhe o raciocínio, é escritor. Aí e somente aí. Depois, já é o primeiro leitor, o primeiro crítico de si mesmo e não mais escritor. Explodida a bolha de sabão, começa a surgir o autor, essa derivação vaidosa e arrogante do escritor.
Relacionando tais passagens, é possível se concluir que o escritor (que nada tem a ver com o autor, segundo Charles Kiefer), para ter sucesso profissional, necessariamente passará pela etapa da vaidade e da arrogância, terá que se submeter aos ditames do mercado e ser alguém movido a conveniências.
Custa-me a crer que os poucos grandes artistas da história do mundo se encaixem nas receitas proféticas de Charles Kiefer sobre a arte literária.