O rumor do tempo e Viagem à Armênia são duas obras em prosa de um dos maiores poetas russos do século 20. O rumor do tempo teve sua primeira edição em 1925 e traz as memórias da juventude do poeta na década de 1910. Viagem à Armênia, publicado em 1933, mostra a contrariedade de Mandelstam diante de uma ordem do governo para que escrevesse um relatório sobre a República Soviética. Naturalmente sua produção não foi bem recebida pelos mandatários.
As obras reunidas ostentam o caráter memorialístico ao qual este aprendiz desconfiado acrescenta a ficção.
No ensaio Komissarjévskaia (atriz russa), diz o poeta:
Não quero falar de mim mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado.
Quem segue o século? Ora, ora, ingênuo leitor, quando o fotógrafo faz seu registro, também registra o seu olhar. Não estaria falando de si?
Entendo que Mandelstam não aborde as questões comezinhas do seu dia a dia, mas ao discorrer acerca de suas impressões fala de si. Um exemplo:
Não sei como é para os outros, mas para mim o encanto de uma mulher aumenta se ela for uma jovem viajante, se houver enfrentado cinco dias nos bancos duros do trem de Tashkent durante uma viagem científica, se entender bem o latim Carlos Lineu e souber defender sua posição na discussão entre lamarckistas e epigeneticistas, se não for indiferente à soja, ao algodão ou à Chondrilla.
Atente para o breve trecho. O autor, que diz não falar de si, apresenta suas exigências no que se refere à mulher: jovem, sofredora, culta. Mandelstam não confessa, deixa pistas.
Gênero da ambiguidade
Escrever sobre si mesmo. Produzir obras aparentemente inclassificáveis, escritas mestiças que não pertencem totalmente ao gênero da autobiografia nem ao registro da ficção. Essa prática heterodoxa da escrita, a escrita de si, portadora de uma legitimidade estética e que reúne escritores bastante diferentes como, Louis-Ferdinand Céline, Amélie Nothomb, Philippe Forest, Annie Ernaux, Serge Doubrovsky, entre outros. Incluo O rumor do tempo no gênero da ambiguidade, a autoficção.
O assunto é amplo, praticamente inesgotável, e a imensa quantidade de títulos classificados como autoficção já rendeu ao gênero o codinome de “vassoura”, graças à característica de a tudo recolher deste chão de incompreensões.
Vale lembrar Cortázar: “não há nada no humano que seja puro”. Incluindo as expressões artísticas. Entendo a autoficção como um roteiro romanesco da própria vida — lembranças, fantasia e a imaginação atuam de forma destacada nesse cenário.
Importante lembrar que um livro narra os passos de um ser de linguagem que em alguns momentos permite ao leitor identificá-lo ao autor.
No cenário que encerra as escritas de si, merece atenção os textos de cunho memorialístico. Eles frequentam o espaço localizado entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. Não está livre do questionamento básico: até que ponto o relatado tem compromisso com a verdade? Mas até que ponto a verdade é importante? Até que ponto apontar esta ou aquela verdade é mais importante que refletir sobre determinados fatos? A literatura memorialista é como uma peça teatral onde o narrador, que é o ator protagonista, representa mais de um papel.
A capacidade de não se definir, de não optar por ficção ou realidade. Tarefa para o leitor, caso entenda-a necessária. Prefiro me alinhar àqueles que entendem a arte, bem como a linguagem literária, como obra em permanente construção — jamais acaba, exigindo constante evolução na forma de trabalhar essa construção.
A memória, as escritas de tom memorialístico, se equilibra no espaço exíguo que separa a mentira e a confissão. Restará sempre a pergunta: até que ponto a lembrança pode ser uma ilusão?
O rumor do tempo, embora seu autor negue, é — sempre lembrando que para este aprendiz trata-se de autoficção — um documento sobre a constituição ideológica de Mandelstam. Sua admiração pelo populismo russo, a expressão não tem nada a ver com a nossa utilização, pejorativa, do termo; sua aproximação, mas não aprofundada, ao partido socialista revolucionário, seu apreço por determinados autores de música erudita, Tchaikovsky e Rubinstein, por exemplo.
Escrita memorialista
É importante deixar a ingenuidade de lado, visto que toda forma de escrita implica forjar uma realidade, não a realidade em si. Segundo Philippe Lejeune, a coincidência identitária entre autor, narrador e personagem permite que o leitor questione o que foi narrado, jamais a identidade do escritor.
Tudo tem um custo, as escritas de tom memorialístico são caríssimas e, diferente da maioria das narrativas onde aspectos da vida pessoal do autor chegam à narrativa, a escrita de Mandelstam evita sentimentalismo. É uma lâmina afiada escolhendo, secionando, uma fase de sua vida. Difícil, quando sabemos que o material de trabalho do autor nunca é neutro, traz consigo um quantum significativo de emoções. A leitura de textos dessa ordem sempre me faz lembrar Shakespeare, to be or not to be. A realidade ou a ficção, qual escolha o levaria à lucidez?
Para concluir, em Viagem à Armênia:
Ainda não foi escrita uma novela sobre a tragédia dos semieducados. Acho que, em nossos dias, a biografia de um professor de escola rural pode se tornar um livro de cabeceira, como outrora o foi o Werther.
Semieducados, professor, o fim das humanidades em nossas escolas. To be or not to be?