A respeito do festival de besteiras surgido em torno da imputação de racismo ao Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, uma dos mais comuns foi afirmar que a culpa era da “mentalidade da época”, que era preciso compreender o “contexto”, etc. etc. Tudo isso só demonstra a violenta incapacidade de raciocinar que se dissemina entre nós.
Quando Monteiro Lobato escreve: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão”, o que ele faz é usar duas comparações, uma retirada do reino animal, para descrever a ação, e outra de elementos da natureza, para descrever a cor. Se eu escrevesse, apenas como exemplo: “Zumbi corria e saltava entre os seus guerreiros como um jaguar de ébano”, ninguém encontraria racismo nenhum na frase, embora eu estivesse fazendo a mesmíssima coisa que Lobato. Um macaco é um animal que sobe muito velozmente numa árvore ou num poste, assim como um jaguar é um animal que salta e corre com grande agilidade, e tanto o carvão como o ébano são negros. A única diferença é que o “contexto” do meu texto adrede inventado é épico, e o de Lobato é cômico, e, por ser cômico, lança mão do natural recurso ao ridículo. Se a diversas pessoas for perguntado qual animal sobe rápido em troncos, nove entre dez citarão o macaco. E Tia Nastácia, uma das personagens mais queridas e simpáticas da literatura brasileira, era uma senhora negra. Terá alguma etnia — ou qualquer outro grupamento humano — o privilégio de não poder ser exposta ao cômico ou ao ridículo?
O curioso é que quase todas as chamadas minorias afirmam querer ser reconhecidas como o que são, mas quando o são, acham-se ofendidas. Certa vez, já há alguns anos, resenhei três livros sobre Marcel Proust, escritor pelo qual tenho a mais profunda veneração. Um dos livros, do famoso Edmund White, se limitava de tal maneira a tratar total e exclusivamente da homossexualidade de Proust, quase ao nível de uma revista de fofocas, que afirmei ser mais lógico que o colocassem numa estante de literatura gay do que nas de crítica literária ou biografia. Por isso, fui chamado de “homofóbico” por um leitor. Ora, as grandes livrarias têm estantes para temas gays, o livro só falava de Proust por ter sido homossexual, onde está a minha “homofobia”? E aposto que, após a saída deste artigo, outros me acusarão de homofóbico pelas claríssimas linhas que vocês acabam de ler. Do mesmo modo, se eu chamar de negro a algum indivíduo que caminhe pela rua com a ridícula camiseta onde está estampado “100% Negro”, muito provavelmente serei processado.
Há quatro anos foi publicado, com apoio público, um luxuoso livro chamado Quilombolas, tradições e cultura da resistência (de André Cypriano e Rafael Sanzio Araújo dos Anjos), onde se pode ler a seguinte maravilha, sob a rubrica Enfrentar a mobilidade espacial e a miscigenação:
Do mesmo modo a união entre quilombolas e pessoas externas à comunidade se mostra como conflituosa para a organização dessas sociedades, em virtude das diferenças históricas e de pertencimento. Assunto de abordagem difícil dentro das comunidades, a miscigenação deve ser pensada entre esses povos, com a finalidade de manter a consciência de seu valor, de sua luta, de sua condição histórica, para dialogar com esta ameaça de descaracterização do povo quilombola.
Leram bem? Estamos no mesmo território das leis de pureza racial do III Reich, a miscigenação como “ameaça de descaracterização do povo quilombola”, ou seja, nenhum membro dos autênticos ou pretensos quilombos deve casar-se, mesmo muito apaixonado, com um branco ou um pardo, para não “descaracterizar-se”, e assim se conservar como um maravilhoso fóssil étnico-social para gáudio dos autores. Os idiotas que escreveram tal texto, e que bem mereciam ser enquadrados na Lei Afonso Arinos, devem ser da mesma estirpe dos que chamam Monteiro Lobato de racista.