Que saudade da aurora de minha vida!

Marcelo Rubens Paiva volta à literatura com Malu de bicicleta. Muito sexo e nada mais
Marcelo Rubens Paiva: overdose de sexo
01/11/2003

Nos anos 80, Feliz ano velho — romance autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva — povoou o imaginário de uma juventude que começava a assistir à gradual (e hoje massacrante) banalização do sexo como produto, libertação, necessidade imposta, sinais de uma tendência que se consolida agora. O drama do personagem-narrador ao ficar condenado a uma cadeira de rodas, após um mergulho malsucedido de encontro a uma pedra no meio do caminho, comoveu, chocou, revoltou, causou compaixão naqueles que se identificavam (e muito) com o jovem autor. Não posso negar que o romance me acompanhou em minha adolescência/juventude. Um imenso prazer seguir as adaptações daquele novo homem às condições impostas. Era um vencedor, imaginava em minha salutar ingenuidade. Mas penso isso agora, após centenas de livros e milhões de dúvidas criadas. À época — assim como muitos de minha geração — estava mesmo interessado nas cenas de sexo, de masturbação, de posse. Identificava-me com o personagem, mesmo movendo-me com destreza pela neblina de Curitiba. Não se pode negar que o “esforço” masturbatório sob o chuveiro empolgava a piazada onanista — como toda piazada.

Portanto, Feliz ano velho (ganhador do Jabuti de 1982 — mas isso não tinha, e não tem, a menor importância para os, perdão pela palavra, punheteiros de plantão) cravou-se em nosso imaginário e ainda tem lugar garantido nesta algaravia que nos esforçamos para manter viva. No embalo, mergulhamos em seguida em Blecaute, esperado com ansiedade pela prole amante do novo ídolo literário (sei que cometo exageros; sou mesmo um pessimista-otimista). Para alegria da moçada, lá estava Marcelo Rubens Paiva e seu talento de encantar a galera. Hoje, ao reler trechos do livro, começo a sentir saudades daquele tempo de poucas preocupações e quando me deleitava com a história dos três jovens que ao saírem de uma caverna após três dias encontram um mundo totalmente paralisado. Não há movimento; apenas os três e o mundo às suas mercês. A sensação de liberdade total contagia, passando ao desespero da solidão, sentimentos muito presentes na adolescência e pela vida afora.

Sigamos neste nostálgico périplo até chegarmos a Bala na agulha (de 1992), quando a liberdade total rasgava todos os cantos do país. É um romance que envolve políticos, traficantes, incestos — um resumo dos telejornais de agora. A leitura já não causava mais o impacto de antes, apesar de ser uma grande diversão, mesmo com expressões do tipo “passar em brancas nuvens” e uma infinidade de pequenos deslizes gramaticais. Ferpas sem maior importância para quem pouco se importava com as construções literárias. Mas, temos de admitir: o encanto foi-se desmanchando no ar; rarefeito a ponto de ignorar Não és tu, Brasil (de 1996) e também a carreira como dramaturgo de Marcelo Rubens Paiva.

Num misto de nostalgia e obrigação profissional — a agonia de ser, muitas vezes, um leitor-profissional é fardo por demais pesado — aventuro-me, sem muita pretensão ou esperança, agora por este Malu de bicicleta. Numa olhada rápida pelo romance (orelha e a leitura de alguns parágrafos), vê-se que estamos diante do mesmo Marcelo Rubens Paiva. A curiosidade vence. Entremos, pois. Mas, antes de qualquer comentário, é preciso esclarecer: a literatura de Rubens Paiva é, quero crer, despretensiosa (tudo bem que a despretensão não exista), sem grandes intenções estilísticas, não deseja a perenidade — é claro que há de marcar muitos adolescentes, como foi meu caso. Então é perene? Nem tanto. Vejamos por quê?

O sexo move a literatura de Marcelo Rubens Paiva. Neste Malu de bicicleta não é diferente. Ou melhor, só o sexo existe. Nada mais. O encanto quebra-se aos poucos. No meu caso, é claro. Mas com certeza o adolescente que abrir o livro (sempre me pergunto se há adolescentes que abrem livros) vai sentir-se em casa. Sem nenhum esforço. A história é banal e previsível. Luiz é um galinha — vive para o sexo; seus esforços estão todos voltados à conquista do corpo disponível; não mede conseqüências, pois “um galinha precisa afirmar sua autoridade, anunciando claramente que não é homem de uma mulher só, mas deve deixar a esperança de que pode ser consertado por uma especial. Um galinha nunca deve prometer compromisso, fidelidade. Deve ser desafio para as mulheres, que nem sabem se querem namorá-lo, mas com certeza testam a sua opção de vida” (p. 125). É isso, Luiz é um galinha com todos os méritos e esforça-se muito para manter o status.

A construção do romance também não apresenta nada de novo. É, por sinal, das mais simples. Logo no início, Luiz conhece Malu, ao quase ser atropelado por ela em uma ciclovia beira-mar no Leblon, Rio de Janeiro. O encontro tem o cheiro das novelas das seis da Globo. O esbarrão, o pedido de desculpas. Ele, paulista; ela, carioca de erres e esses puxados, infinitos. Ela, em direção ao analista. Ele, vadiando. Apaixonam-se na ciclovia. Logo após o encontro, acompanhamos um infinito deambular de Luiz pelos vãos de pernas disponíveis e ávidas pelo prazer proporcionado pelo amante de plantão. Os flashbacks mostram como se construiu o galinha Luiz. Da cópula (palavra mais antiquada!) com a empregada doméstica aos 14 anos, passando pelas putas de meio-fio e pela professora na universidade, até chegar às inumeráveis mulheres da noite e do dia. Há uma para cada ocasião, para cada necessidade. Luiz é um fenômeno. Bem ao estilo dos sonhos adolescentes — período em que se deseja transar com todas as mulheres do mundo, mas que, quase sempre, a mão acaba sendo a melhor — ou única — fiel amante. Tudo na vida de Luiz parece fácil. Ganha a vida como empresário da noite. Mantém um grande grupo de mulheres à sua mercê peniana. É um ídolo para a rapaziada.

Mas ele vai se estrepar. Está na cara. É muito previsível. O galinha se apaixona, casa-se e se ferra. Portanto, não há surpresa alguma. O autor, parece, não deseja prender a atenção do leitor pela possibilidade de. Tudo está à mostra. Escancarado. A intenção é segurar pela exposição excessiva de conquistas. O problema é que tudo vai bem durante umas 30 páginas (50, tudo bem, sejamos mais pacientes). Mas é duro (sem trocadilhos, por favor) agüentar 222 páginas de cópulas. Em tempo: a leitura é rápida, a letra é grande, o espaçamento generoso. Mas o tédio chega. Cansa ouvir o ressonar a cada página que “bocetas falam. Têm lábios, caixa de ressonância, cordas vibratórias. Em restaurantes, em feiras, em filas de cinema, escutei e conversei com muitas delas. As tímidas falavam comigo monossilabicamente. Falavam comigo e olhavam para o meu pau. Às vezes, abriam-se, como cauda de pavão, suas donas abriam as pernas, e lá estavam elas, esmagadas em calças apertadas, sufocadas” (p. 43). Isso, aliado a uma filosofia de alcova do tipo “trepar com alguém anos depois é como recomeçar um sonho interrompido, uma visita a um museu em que já se esteve”, causa um dolorido tédio, uma sensação de perda de tempo. Enfim, estamos diante de algo muito descartável.

Podemos tentar uma leitura mais audaciosa de Malu de bicicleta — mas tenho certeza de sua inutilidade, levando-se em consideração a obra do autor. Mas já que aqui estamos, sigamos por este caminho. Imaginemos que o romance tem também, além de entreter, a intenção de escancarar a vulgarização do sexo. Tudo bem, mas e daí?, pergunto-me. Para quê, se tal coisa já é por demais propagada? Qualquer cidadão vê isso em toda esquina. O leitor de livro, espera-se, enxerga tal fenômeno com mais agudeza. Não. Não pode ser isso. Talvez a insipidez/frugalidade das relações amorosas. Ou quem sabe, traçar o protótipo do homem pós-moderno (ele existe?). Besteira. Nada disso. Fiquemos com a idéia do entretenimento puro e simples. A questão é: quem há de se divertir com as peripécias de Luiz? Com certeza, os adolescentes e aspirantes a Don Juan.

Aos adolescentes de outrora, cujos corpos são invadidos pela flacidez e as rugas, fica apenas a sensação de saudade. Como diz Luiz, o galinha: “Que merda esta vida! Que merda amar alguém!”

Malu de bicicleta
Marcelo Rubens Paiva
Objetiva
222 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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