Ele já foi ao inferno e agora tenta redimir-se dos pecados de ter apertado a mão do demônio. Não que tais pecados sejam capitais. Muito pelo contrário. Tais “pecados” nos atiçaram a gana de vislumbrar a cara do tinhoso. Mas como a empreitada — a de descer aos confins do inferno — exige o fim do corpo para a salvação da alma (esse espectro a que muitos almejam), necessita-se que esse ocaso seja, pelo menos, num consenso coletivo, já que as individualidades são tidas como mesquinhas (não todas, é claro). Nada melhor do que o apocalipse para extirpar do mundo — o nosso —, todos nós, amantes que somos de bombas aos quatro cantos. Quando Nelson de Oliveira — nosso guia por entre labaredas — viajou ao inferno (Subsolo infinito, Companhia das Letras, 2000), espantou-nos com sua capacidade de também fabular sobre o insólito que esconde-se nas profundezas, pois já sabíamos de sua habilidade do insólito entre nós (Naquela época tínhamos um gato, Companhia das Letras, 1998; Treze, Ciência do Acidente, 1999) ou na lua, traduzida em sonhos, em Os saltitantes seres da lua (Relume Dumará, 1997). Em todos esses livros, sentíamo-nos encurralados: “Dênis, sobrenome Pênis, estava encurralado”, do conto Éramos todos bandoleiros.
Agora, vêm a redenção, o fim, o apocalipse. Ou a “fraude” de um fim que aspira a eternidade, em O filho do crucificado (Ateliê Editorial, 173 págs.). Nas seis propostas para o fim dos tempos — dos nossos, pelo menos —, compostas de uma novela, que dá o nome ao livro, e cinco contos (?), o insólito que tão bem permeia a obra de Oliveira está revigorado e com a brutal força que traz à sua obra uma esperança inquieta de que a literatura brasileira tem a força da renovação de tempos em tempos. Oliveira não é um artífice de histórias lineares e, aí, aproxima-se de João Gilberto Noll (sem dúvida, um dos melhores escritores da atual leva literária); é, sim, um habilidoso escritor em busca da inquietação que só a escolha da palavra certa pode causar.
Assim como em toda obra de Nelson de Oliveira, em O filho… não deve-se buscar um caminho que conduza à compreensão, escancarada por alguns escritores em tramas medíocres. Deve-se, sim, enfiar a cara no livro e desfrutar do que tem de mais inquietante: uma organizada confusão de linguagem e enredo que pode levar os mais desavisados a um embaralhar absurdo. Os personagens têm ares de normalidade que servem apenas para ludibriar e esconder uma perfídia desmesurada. Homens e mulheres atiram-se pelas janelas do edifício em busca da salvação. Um espetáculo ou um embuste? Tudo é possível na obra de Oliveira. Até mesmo fazer-nos acreditar em suas armadilhas, que são muitas e boas. Utiliza de todos os recursos possíveis — ironia, sátira, citações etc. — para avolumar tal inquietação. Mas não seria assim o caos que nos levaria ao nosso fim, pois só boas armadilhas podem conduzir o homem ao seu extermínio? Quando os personagens entregam-se a orgias insanas, movidas a estranhas substâncias, estão escancarando o nefasto que, muitas vezes, esconde-se atrás do prazer. O sexo, nas narrativas, cumpre o importante papel de aplacar as dores que o fim dos tempos pode causar. Ou então é a redenção do pecado original, pois, mais uma vez, remete a ele, como se fôssemos Adão e Eva a copular, para sermos expulsos desse perigoso paraíso que criamos para viver. Tal proposta pode estar escondida na ironia, camuflada em frases popularescas como: “Se um cego, num país de cegos, inventasse que tem um olho, que o céu é vermelho e o fogo verde, quem no seu país poderia negar tal afirmação?” (pág. 17, da novela O filho do crucificado). É a possibilidade da criação de um novo mundo. Ou, então, a negação do existente tal qual ele nos parece.
Quando Nelson de Oliveira “rouba”, em Ana Maria dos Espíritos, o inesquecível começo do romance O Estrangeiro, de Albert Camus: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”, está colocando, mais uma vez, a morte e o sexo como protagonistas para o nosso fim. Sem pretensões existencialistas, como o fez Camus, O filho do crucificado mostra-nos um torvelinho narrativo em que o homem busca o seu fim e o encontra naquilo que mais admira: o seu mesquinho egoísmo. Mesmo quando não perscrutam tal busca, os personagens estão, num cotidiano encoberto de uma névoa de falsidade, em busca de respostas para si mesmos, para suas existências, para suas angústias, para suas vidas. Ou seria para nossas vidas?
A empreitada de Nelson de Oliveira de manter uma coerência em sua obra — por mais incoerente que ela possa parecer para alguns — coloca o autor como um dos principais contistas brasileiros, sem muitos a seu lado, talvez único na linguagem, longe de arquétipos a cada dia mais comuns nesse zoológico em que sobrevivemos.