Poesia ao pé da letra

Na poesia de E. E. Cummings, o olho do leitor precisa estar sensível a cada letra ou espaço em branco
E. E. Cummings, autor de “Poem(a)s”
01/02/2012

Na capa azul escuro do livro que reúne as traduções do norte-americano E. E. Cummings, um perfil do rosto do poeta, sereno, de olhos fechados, confronta a tradução de um de seus poemas, numa acareação a princípio desigual, entre poeta e tradução — e não entre o poema original e a tradução. Parece tratar-se de uma ironia e de uma homenagem. Uma ironia porque, na tradução deste poema, Augusto de Campos consegue tantos jogos de linguagem que acaba superando tecnicamente a versão original. O que não deixa de ser uma homenagem: a Cummings, que ganha uma tradução mais “cummingsiana” que o original, e à língua portuguesa, que realiza a obra — e o estilo — de um poeta da língua inglesa.

A tradução-arte a que se propõe Augusto de Campos procura traduzir o conteúdo e a forma do poema relacionados. Como em cada língua essa relação se dá de modos diferentes, poucas vezes é possível manter a mesma relação original entre forma e conteúdo. Assim, o tradutor, se quiser produzir, na tradução, um poema (em vez de uma paráfrase em outra língua), precisa responder o poema original com novas relações de forma e conteúdo, compensando a traição do traduzir. É necessário, portanto, criar mais uma vez aquele poema, exigindo, do tradutor, habilidade — e dom — de poeta.

Na tradução que se lê na capa do livro, por exemplo, a imagem (que constitui todo o poema) de um floco de neve sobre um túmulo é sintetizada, com imaginação tipográfica, no trecho final.

sobre um t
ú
um
l
o

(No original: “is upon a gra// v/ es/ t// one”.) A consoante “t”, isolada, ressalta, pela pronúncia oclusiva (ou seja, que interrompe momentaneamente o fluxo de ar da boca para se pronunciar), os sinais de interrupção da morte, ao mesmo tempo em que desenha uma cruz no papel. Já a vogal que segue, “ú”, é a única no poema que recebe um acento gráfico, recurso inexistente em língua inglesa. Com isso, ela acaba sugerindo, pelo desenho, o detalhe (fundamental, para o poema) do floco de neve, branco e efêmero, sobre um túmulo. E se o original termina, no último verso, enfatizando a unidade do floco de neve (“one”), a tradução devolve, embora com menos ênfase, a consoante “l” isolada no penúltimo verso, muito semelhante ao algarismo correspondente ao número um.

Minúcia construtiva
Tal minúcia construtiva contamina inclusive os sinais de pontuação, cujos desenhos servem a uma imaginação poética que prescinde da tradução. Num poema que descreve a fase nova da lua, o desenho do parêntese, destacado num verso, sugere a lua minguando, prestes a se tornar nova:

(lua começa A
)

A poesia de E. E. Cummings se aproxima curiosamente das pesquisas científicas que, na primeira parte do século 20, investigaram o mundo do muito pequeno: atômico, subatômico. Primeiro porque ela se baseia, em muitos poemas, na decomposição das palavras a um nível, digamos, submórfico (ou seja, menor do que o nível dos radicais, afixos e desinências). Assim, fragmentando o núcleo semântico das palavras, outros sentidos se irradiam, à semelhança da grande liberação de energia que a divisão de um núcleo atômico produz.

O trecho que representa as migalhas com que uma velha alimenta os pardais numa praça é exemplo disso: “mig alha/ sumaa umaado/ istrêsq uatroc/ inços eisp/ ard ai// s”. Nele, os grupos de letras são divididos independentemente da unidade das palavras (“migalhas uma a uma três quatro…”), seguindo, em vez disso, a lógica do número de letras (três letras, quatro letras, cinco letras…).

Outro motivo de aproximação com as pesquisas científicas subatômicas encontra-se no fato de que, quanto menor for o objeto observado, maior será a interferência do observador em seu posicionamento, já que luz emitida para visualizar uma partícula é uma onda eletromagnética que exerce uma força sobre a partícula, deslocando-a. Na poesia de Cummings, o olho do leitor precisa estar sensível a cada letra ou espaço em branco, de modo a movimentar o sentido dessas formas mínimas.

Mas tanto essa relação com a ciência do muito pequeno quanto o desafio da tradução tipográfica constituem uma herança da leitura que os poetas concretos construíram da obra de Cummings. Especificamente no caso de Augusto de Campos, que tem a carreira de tradutor marcada pela obra do norte-americano: seu primeiro livro de tradução, Dez poemas de E. E. Cummings, foi publicado em 1960, e desde então o poeta vem reunindo, praticamente a cada década, novas traduções, chegando a 74 poemas na coletânea recém-lançada pela editora Unicamp. Trata-se, portanto, de um trabalho tradutório que já dura pouco mais de meio século e parece fundamental na constituição da escrita de Augusto.

Microestrutura do poema
A princípio, a obra de Cummings interessou ao poeta paulista pelo que se poderia chamar, tecnicamente, de uma inteligência isomórfica na microestrutura do poema. É que ela, em sua vertente mais experimental, é composta por poemas que descrevem elementos simples do mundo: trem, lua, espelho, gafanhoto, gato, chuva, camisa, formigas, estrelas, pássaros, mosca, névoa, botão, jornal, abelhas. Ao descrever esses elementos, através do recurso da fragmentação das palavras e da motivação tipográfica, o poema procura imitar a coisa representada sem utilizar nenhum artifício além da língua e da tipografia.

Por exemplo, num poema que ecoa a cantiga “brilha, brilha estrelinha”, a cada aparição do verbo brilhar, uma letra diferente é destacada em maiúsculas, como a sugerir a cintilância inconstante do brilho das estrelas no céu: “brIlha”, “bRilha”, “Brilha”, “briLha”. Este procedimento foi privilegiado pela vanguarda concreta em detrimento do caligrama, um tipo de poema formulado pelo francês Guillaume Apollinaire que propunha que a mancha gráfica do poema desenhasse o objeto a ser representado, sobrepondo à escrita o artifício do desenho. O mérito de Cummings estaria em manter a autonomia tipográfica do poema em face da suposta facilidade do desenho.

Daí que a edição das traduções de Cummings vem acompanhada, nos diversos prefácios de Augusto de Campos para cada edição, de uma defesa da “verdadeira”, da “necessária” revolução poética de Cummings. Embora o valor histórico e a inteligência dessas leituras sejam muito evidentes, as transformações por que a poesia brasileira vem passando nos últimos 40 anos mostraram que a via única das vanguardas não garante a qualidade da poesia do futuro, sendo, na verdade, uma via possível — mas não inevitável — para a poesia.

Por isso a leitura de E. E. Cummings em nova edição dirige a atenção do leitor para a beleza dos poemas que não utilizam o recurso da fragmentação das palavras, mas, em vez disso, se compõem em versos longos, numa prosa experimental, lírica e seca, o que transforma a recepção que o poeta tem tido no Brasil. Tais poemas muitas vezes são imagens da própria obra de Cummings, como o do espelho quebrado, que se pode ler como metáfora das palavras quebradas do poeta.

cacos(no mais escuro
que mínimo é mais sujo
da cidade o menor
beco)de espelho
são cada qual(por que
a gente diz que é des
graça quebrar um)
céu por sua vez

Torna-se importante notar, portanto, que o privilégio inicial de Augusto de Campos na tradução dos poemas mais descritivos e fragmentados estava fundado na noção, fundamental à época para o programa da poesia concreta, de que o poema consistia num objeto de palavras. Como objeto, ele era produto de uma inteligência poética que investia nele técnicas inovadoras. Como objeto, era preciso reconhecer, por exemplo, o “equívoco” do surrealismo, que estava “comprometido até os dentes com o formal sintático convencional”. Como objeto, era preciso contrapor o poema à experimentação subjetiva que não implicasse experimentação formal.

Ora, em lugar de centralizar a novidade do poema na exclusiva experimentação formal, podemos entender que, como a forma e o conteúdo estão, em poesia, relacionados, a experimentação do conteúdo onírico do surrealismo também é um modo de experimentar a forma da arte. O poema como objeto sai de cena; o poema como performance é uma imagem que entende qualquer poema, por ser poema, como uma experimentação.

Eu lírico
No caso de Cummings, seus poemas líricos e de reflexão não abrem mão do testemunho de um eu lírico, de modo que, no conjunto de sua obra, é possível afirmar que ela se aproxima mais — teoricamente — das propostas do “Manifesto Neoconcreto” do que daquelas presentes no “plano piloto da poesia concreta”. Não será à toa que encontramos, no último livro de poemas de Ferreira Gullar, pequenos trechos “cummingsianos”, como no poema Abduzido, em que o apagar da luz se confunde com os versos cada vez menores:

e
apa
go
a
luz

Afinal, já encontrávamos a presença de Cummings — ainda que muito discretamente — na obra de Manuel Bandeira, que, no livro Mafuá do Malungo, compõe um poema à maneira de Cummings dedicado a Elizabeth Bishop. Além disso, em 2007 foi publicada uma pequena coletânea de traduções de poemas de Cummings, realizada por Adalberto Müller, Mario Domingues e Mauricio Cardozo (chama-se O tigre de veludo: alguns poemas). Nela, uma proposta tradutória um pouco diversa da de Augusto de Campos comparece, como um modo de reler a recepção do poeta no Brasil. Os mesmos versos de um poema são mais coloquialmente traduzidos por Mario Domingues (“curto meu corpo quando junto ao teu/ corpo”) do que por Augusto (“eu gosto do meu corpo quando está com o seu/ corpo”).

A curiosa dispersão da obra de E. E. Cummings pelo Brasil é, sem dúvida, fruto do pioneirismo de Augusto de Campos, que, com esse livro, produz a antologia mais completa do poeta em língua portuguesa. Com isso, a leitura do poeta norte-americano vai se descolando aos poucos da visão interessada e excelente que a poesia concreta produziu dele. Percorrer as superfícies textuais de Cummings é uma experiência única, de muita surpresa e sensibilização poética. Um laboratório do poema, a leitura deste moderno retorna como um jogo de equilibrar o poema na corda bamba da língua, no fio tênue que sustenta a relação infra-semântica de uma letra a outra.

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Poem(a)s
E. E. Cummings
Trad.: Augusto de Campos
Unicamp
248 págs.
E. E. Cummings
Edward Estlin Cummings, que assina E. E. Cummings, nasceu em 1894, em Massachusetts, e faleceu em 1962. Especializado em literatura grega em Harvard, foi voluntário na Primeira Guerra Mundial. Seu primeiro livro, The enormous room (1922), narra sua experiência de guerra. Também foi dramaturgo, mas é como poeta que sua obra se afirma, de 1923 a 1983, como uma das principais contribuições modernistas em língua inglesa.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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